Um
rei, um reino, uma religião
«(…) A estes, como castigo, foram
retiradas à força duas mil crianças, de dois a dez anos e entregues a Álvaro
Caminha, em 1493, para as levar
consigo depois de baptizadas à capitania da ilha de S. Tomé que lhe fora
oferecida pelo rei. Grande parte dos meninos de S. Tomé, nome pelo qual
ficaram tristemente conhecidos, pereceu devido às terríveis condições da ilha,
para onde ninguém queria ir. Para além da conversão das crianças, o objectivo
era povoar a ilha, o que acabou por acontecer através daqueles que conseguiram
resistir aos lagartos, serpes e outras muitas peçonhentas bichas (...) que os
tragaram quase todos. Aos sobreviventes, Álvaro Caminha deu em testamento em 1499, herdades, gado e escravos negros
trazidos de África, conseguindo assim estabelecer a primeira economia açucareira
dos Trópicos.
Que os judeus e mouros forros se saiam
destes reynos...
Com a morte de João II e a subida
ao trono de Manuel I, em 1495, a
situação melhorou inicialmente para os judeus, em particular através da
libertação, por ordem real, dos judeus castelhanos feitos escravos. A inscrição
da lápide da sinagoga em Gouveia, datada de 1496 e descoberta em 1967,
mostra a confiança que os judeus sentiam no início do seu reinado: … a glória desta última casa será maior do
que a primeira. Mas essa confiança depressa se desvaneceu. Interessado
no casamento com dona Isabel, a filha mais velha dos Reis Católicos, o monarca Manuel
I cedeu à sua chantagem: casamento, sim, mas apenas em troca da expulsão de
todos os judeus de Portugal. A própria infanta escreveu a Manuel I recusando-se
a entrar em Portugal enquanto o país não estivesse esvaziado de todos os
hereges.
Contra a vontade de uma parte
significativa do seu próprio conselho, receoso da perda de uma comunidade
laboriosa e economicamente importante, e em total contradição com a sua própria
política anterior, Manuel I assinou o tratado de casamento a 29 de Novembro
de 1496. E poucos dias mais tarde, a
5 de Dezembro, decretava em Muge,
perto de Santarém, a expulsão de todos os judeus e mouros no prazo de dez meses:
... Determinamos, e Mandamos que da
pubricaçam desta Nossa Ley e Determinaçam atá, per todo o mez de Outubro do
anno do Nacimento de Nosso Senhor de mil e quatrocentos e nouenta e sete, todos
os Judeus, e Mouros forros, que em Nosso Reino ouuer, se saiam fóra delles, sob
pena de morte natural, e perder as fazendas... Em troca comprometia-se
a deixá-los sair liuremente com todas as
suas fazendas e a assegurar-lhes transporte; pera sua hida lhe Daremos todo o auiamento, e despacho que cumprir.
No édito de expulsão, Manuel I não
se preocupa em fornecer grandes explicações. Defende que a salvação dos
cristãos passa pela expulsão dos judeus e mouros forros porque obstinados no
ódio da nossa Santa Fé Católica de Cristo Nosso Senhor. Cita os grandes males
e blasfémias que os judeus filhos da maldição, cometiam desde sempre contra a
fé cristã, o mau exemplo que davam a muitos cristãos e finalmente outros motivos
consideráveis e urgentes, não especificados. Um pequeno texto, uma tragédia
imensa. O édito de expulsão foi o golpe de misericórdia no judaísmo ibérico que
durante mais de mil anos florescera na Península, e o culminar de um caminho
iniciado em Espanha pelos Reis Católicos com a instauração da (maldita) Inquisição
espanhola em 1481, e o decreto de
expulsão de 1492. O objectivo era a
unidade religiosa e política, um Rei, um Reino, uma Religião.
Aparentemente tinha sido conseguido.
… e ali lhes deitatam a sua água de
baptismo...
Contrariamente
aos Reis Católicos que cumpriram o estipulado, Manuel I não manteve a sua
promessa de deixar sair de Portugal os judeus que o quisessem. A sua decisão,
provavelmente já anterior à assinatura do decreto de expulsão, era outra: mantê-los
no reino e aos seus cabedais, não como
judeus, mas sim como cristãos». In Esther Mucznik, Grácia Nasi, A judia
portuguesa do século XVI que desafiou o seu próprio destino, A Esfera dos
Livros, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-626-244-0.
Cortesia
de ELivros/JDACT