«Ninguém me é
estranho, se for bom. A natureza é só uma para todos; a diferença está no
carácter». In Menandro (342-C.242 a. C)
A morte da águia
«(…) A
celebração das cerimónias fúnebres pela morte da rainha Arsínoe Filadelfa
duraria dias, exéquias complicadas à maneira egípcia, com toda a pompa e
circunstância devidas a uma princesa real, sobrinha de Alexandre, mulher e irmã
de um faraó. Não fora Alexandre, o Grande,
ele próprio, recebido e coroado pelo clero de Amon como um verdadeiro faraó
divinizado? Dizia-se que o fundador da dinastia dos Lágidas, Ptolomeu Sóter,
pai de Filadelfo e de Arsínoe, era filho bastardo de Filipe da Macedónia, pai
de Alexandre, uma vez que a avó paterna da rainha agora falecida, também
chamada Arsínoe, ao casar com o velho Lagos por insistência de Filipe II, se
encontraria já grávida do monarca macedónio. Um parentesco secreto uniria
portanto os primeiros Ptolomeus ao sangue glorioso e infausto de Alexandre, ao
seu génio, aos seus excessos, ao seu talento a um tempo despótico e idealista
de governação.
Arsínoe
Filadelfa, terceira rainha da dinastia lágida, vivera os seus últimos dias numa
corte esplendorosa. Rodeada de artistas e sábios e de uma miríade de
funcionários reais, encarnava ela própria a grande sacerdotisa do sagrado
carneiro de Amon. Tinha grande fascínio pelas artes e pelas ciências em geral;
era, porém, a paixão política que a consumia, e a ela dedicara, com
extraordinária e selvática vitalidade, toda uma vida. Ao tornar-se rainha do
Egipto, devido ao matrimónio com seu irmão Ptolomeu, algumas vozes tinham-se
erguido discordantes, mormente entre os Helenos e Macedónios, que não viam com
bons olhos este casamento entre irmãos. Um poeta cretense, Sótades, atrevera-se
a desafiar o rei, criticando-o em tom mordaz e versos obscenos: …metes o pénis
onde não deves...!, chamava Sótades de olhar turvo, um sorriso escarninho a
rasgar-lhe o rosto. Mas longe iam os tempos de irreverência de filósofos e
poetas, quando Diógenes dava respostas impertinentes a Alexandre. Sótades pagou
com a cabeça a ousadia.
Afinal de
contas, o casamento entre irmãos era um costume faraónico. O poeta Teócrito,
esse, sempre a insistir no facto de o
ouro abundante não dormir nos cofres de Ptolomeu mas servir para recompensar os
poetas, não se poupara a fazer os maiores encómios ao enlace, salientando a
propósito que também Hera e o divino Zeus eram irmãos. Durante o seu reinado a
rainha sempre se abstivera de gastos inúteis e irreflectidos, tão ao gosto
sumptuário do monarca, e o povo estava contente. Foram levadas a cabo obras
notáveis, lá estavam o farol de Faros, com a sua estátua e a de Ptolomeu à
entrada, o Museion e a Biblioteca de Alexandria para o
comprovar, e não foram esquecidos o restauro e a edificação dos templos
indígenas.
Arsínoe, que
apostava no domínio dos mares como condição essencial para o comércio e as
conquistas do Egipto, reorganizou a armada, ampliou a frota, dilatou as
fronteiras. Engenheiros trabalhavam arduamente no nomo de Arsinoite, procurando
a maximização das colheitas e a irrigação perfeita. Glorificada nos templos
como synnaós theos, uma deusa
em companhia dos deuses ali presentes, depois da sua morte cunharam-se moedas
com a sua efígie e foi honrada por Calícrates com um templo próximo de
Alexandria consagrado a Afrodite Zefiritis. Mas não confiava em ninguém. E em
quem poderia ela confiar?» In Maria Lucília Meleiro, A Rosa de
Alexandria, tradução de João Lourenço, Grandes Narrativas nº 192, Editorial
Presença, Lisboa, 2002, ISBN 972-232-961-8.
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