«(…) Dantes, pelo menos, tentava manter
a sua forma por uma contínua releitura dos grandes papéis que sempre desejara interpretar.
Passava de Norah a Judith, de Medeia a Teza, com uma renovada ilusão; porém, essa
ilusão fora vencida, finalmente, pela tristeza dos monólogos declamados frente ao
espelho. Na impossibilidade de fazer coincidir normalmente as nossas vidas, as horas
da actiz não são as do empregado, acabámos por dormir cada um em seu lado. Ao
domingo, pelo fim da manhã costumava passar uns momentos na sua cama, cumprindo
com o que eu considerava um dever de esposo, sem saber, no entanto, se na
realidade esse meu acto correspondia a um verdadeiro desejo de Ruth. Era
provável que ela, por sua vez, se julgasse obrigada a entregar-se a essa prática
física semanal em virtude de uma obrigação contraída no momento da assinatura do
nosso contrato matrimonial. Eu, por meu lado, agia impulsionado pela ideia de
que não devia ignorar a possibilidade de uma necessidade que me era dado
satisfazer, calando assim, por uma semana, certos escrúpulos de consciência. O certo
era que esse amplexo, ainda que maquinal, voltara a apertar, uma vez mais, os laços
frouxos pela divergência das nossas actividades. O calor do corpo restabelecia uma
certa intimidade, que era como um breve regresso ao que fora nos primeiros tempos
a nossa casa.
Regávamos o gerânio esquecido desde
o domingo anterior; mudávamos um quadro de lugar; fazíamos as contas dos gastos
domésticos. Porém, os sinos de um carrilhão vizinho advertiam-nos de que a hora
da reclusão era chegada. E ao deixar a minha mulher no palco, ao princípio da tarde,
tinha a impressão de a devolver a uma prisão onde cumprisse uma condenação perpétua.
Ouvia-se o disparo, o falso pássaro tombava do segundo terço de bambolinas, e dava-se
por terminado o Convívio do Sétimo Dia. Hoje, no entanto, alterara-se o preceito
dominical, por culpa daquele soporífero ingerido de madrugada para conseguir um
sono rápido, que não me chegava como dantes, quando vendava os olhos, a
conselho de Mouche. Ao despertar, dei-me conta que a minha mulher tinha
partido, e a confusão de roupas meio saídas das gavetas da cómoda, os tubos de maquilhagem
atirados para um canto, as caixas de pó-de-arroz e os frascos de perfume abandonados
por toda a parte, denunciavam uma inesperada viagem. Ruth regressava, agora, do
palco, acompanhada por um rumor de aplausos, desatando pressurosamente os colchetes
de seu corpete. Fechou a porta com um coice que, de tanto se repetir, desgastara
a madeira, e a crinolina, lançada por sobre a sua cabeça, esparramou-se na alcatifa
de uma ponta à outra. Ao libertar-se dessas rendas, o seu corpo branco causou-me
uma agradável revelação, e já me aproximava para o acariciar, quando sobre a sua
nudez caiu um veludo que tinha o odor dos retalhos que minha mãe guardava, na minha
infância, nas profundezas da sua arca de mogno. Uma onda de cólera subiu-me à cabeça,
contra o estúpido papel que sempre se interpunha entre as nossas pessoas como a
espada do anjo das hagiografias; contra aquele drama que dividira a nossa casa,
arrastando-me para a outra, aquela cujas paredes se adornavam de símbolos astrais,
onde o meu desejo encontrava sempre um espírito propício ao abraço. E fora para
favorecer essa carreira nos seus difíceis começos, para ver feliz aquela que
então muito amava, que dei um rumo diferente à minha vida, procurando a segurança
material no oficio de que era escravo, assim como ela do seu! Agora, de costas para
mim, Ruth falava-me através do espelho, enquanto manchava o rosto inquieto com as
cores gordurosas da maquilhagem: explicava-me que, depois da representação, a
companhia empreenderia, de seguida, uma digressão à outra costa do país e que por
essa razão trouxera as suas malas para o teatro. Perguntou-me distraidamente pelo
filme apresentado na véspera. Ia contar-lhe do êxito alcançado, lembrando-lhe
que o fim desse trabalho significava o começo das minhas férias, quando bateram
à porta. Ruth pôs-se de pé, e eu vi-me perante quem, uma vez mais, deixava de
ser a minha mulher para se transformar em protagonista; prendeu uma rosa artificial
à cintura, e, com um ligeiro gesto de desculpa, encaminhou-se para o palco,
cujo pano à italiana acabava de abrir-se levantando no ar um cheiro a poeira e
a madeiras velhas.
Entretanto, voltou-se para mim,
num aceno de despedida, e tomou a vereda das magnólias anãs... Não me senti com
coragem de esperar pelo intervalo seguinte, em que o veludo seria trocado pelo
cetim, e uma nova camada de cosméticos se espalharia sobre a anterior. Regressei
a nossa casa, onde a desordem da partida pressurosa revelava ainda a presença
da ausente. O peso de sua cabeça imprimira-se sobre a almofada; havia, na mesa-de-cabeceira,
um copo com água meio bebido, com um precipitado de gotas verdes, e um livro aberto
num fim de capítulo. A minha mão podia sentir a mancha ainda húmida de uma loção
derramada. Uma folha de agenda, que eu não vira quando entrara no quarto anteriormente,
informava-me da inesperada viagem. Beijos.
Ruth. P S. Há uma garrafa de xerez na secretária. Senti uma terrível sensação
de solidão. Era a primeira vez, em onze meses, que me via sozinho, fora da cama,
sem uma tarefa a cumprir no momento, sem ter de correr para a rua com medo de
chegar atrasado a algum sítio». In Alejo Carpentier, Os Passos Perdidos,
2008, tradução de António Santos, Saída de Emergência, 2010,m ISBN
978-989-637-244-6.
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