domingo, 16 de agosto de 2015

Elogio do Silêncio. Marc Smedt. «Existe o silêncio da doença que, sozinhos no nosso leito, enfrentamos; o silêncio da depressão, até mesmo o do suicídio: o silêncio melancólico que se faz sentir quando se regressa, só e triste, a casa…»

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Os estados do silêncio
«(…) Revela-se uma excelente definição do segredo, facto perfeitamente ilustrado pela fórmula: a lei do silêncio; e também do esquecimento: o silêncio rodeou este caso. Aplicado de modo figurado, ele significa a calma, a ausência de ruído: uma floresta silenciosa, caminhar em silêncio. Assim como a ausência de agitação moral e interior: impomos o silêncio aos nossos sentidos, às nossas paixões, aos nossos pensamentos. Então chegamos a definições mais técnicas: interrupção de um ruído, pausa na música; distinguimos sete silêncios: a pausa, a meia pausa, o suspiro, o semi-suspiro, o quarto, a otrava e a décima sexta parte do suspiro... No domínio da fala, o vocábulo descreve uma suspensão no discurso (aposiopese); na escrita denomina as elipses; e, na pintura, define uma zona de tranquilidade na composição de um quadro. Por fim, também assinala uma interrupção numa transmissão telegráfica.
Mas a palavra silêncio é suficientemente rica para extravasar o quadro destas definições: encontramo-la no vocabulário do amor (amar em...), da dor (sofrer em...) e de diversas emoções: um silêncio pode ser, na verdade, eloquente, obstinado, marcante, sombrio, desgostoso, aprovador, contrariado, consternado, glacial, religioso, púdico, discreto, imposto, confuso, rancoroso, alegre, pesado, mortal, e vamos ficar por aqui. A lista pode tornar-se demasiado exaustiva: existem tantos silêncios como adjectivos ou estados psicológicos. É empregue como sinal de respeito e de garantia da memória no minuto de silêncio; como ordem, exclamativo: Silêncio, volver! Silêncio nas fileiras!; como placa de sinalização: Hospital, Silêncio; como publicidade: Hotel X..., pousada do silêncio... Usado por políticos que se refugiam na sua expectativa e por místicos para quem ele simboliza a comunicação absoluta, este termo, verdadeira palavra-chave, encontra-se em todo o lado, a toda a hora, empregue de todas as maneiras. Encontramo-lo até nas armas, o silenciador de um revólver abafando o disparo, ou nas ondas hertzianas, onde a zona de silêncio descreve um fenómeno curioso que ocorre quando as ondas curtas que se propagam no espaço encontram um obstáculo e são reflectidas nas camadas ionizadas da baixa atmosfera.
Também se encontram algumas expressões populares com ele relacionadas: enfiar a língua no bolso, rodá-la sete vezes na boca, calar o bico, silêncio e fecha a matraca, manter os dentes cerrados, fechar a boca. Podemos açaimar a boca, amordaçá-la, reduzir e condenar alguém ao silêncio. Existem juke-boxes que têm discos de silêncio: basta meter um franco para o ouvir. Além disso é um gesto bonico, o indicador sobre os lábios, usado desde a mais tenra idade, assim como um sentimento poético: uma noite, lembrava-se ele, vagueávamos em silêncio... (in Lamartine). Existem espaços de silêncio, um mistério de silêncio a conquistar. Existe, e é pungente, o silêncio de uma floresta devastada, o silêncio dos objectos que nos rodeiam, o silêncio das nossas casas e apartamentos, e o silêncio sempre rico de sentidos dos que nos são próximos. O silêncio da mãe que tricota para o bebé, o da avó que costura, o da criança que amua, o dos amantes que, de mãos dadas, se entreolham, e se inebriam um do outro. Existe o silêncio do atleta em pleno esforço, o dos tipos que fazem joging, o dos que correm atrás da bola ou o dos que visam o alvo a atingir.
Existe o silêncio da doença que, sozinhos no nosso leito, enfrentamos; o silêncio da depressão, até mesmo o do suicídio: o silêncio melancólico que se faz sentir quando se regressa, só e triste, a casa. Na linha SOS Amizade, a maior parte das chamadas provêm de pessoas (duas mulheres em cada três chamadas) que finalmente desabafam ao fim do dia, depois de terem saído do trabalho, e depois das vinte e duas horas, quando a noite verdadeiramente começa: em 1985 foram 573 000 aqueles que, em França, marcaram este número de sobrevivência a fim de romperem o nó do silêncio-solidão..., os silêncios da miséria. Existe o silêncio do confessionário, para aqueles que o frequentam, o silêncio da postura da meditação para aqueles que a praticam, e o da sepultura para todos nós. Gravado numa pedra à entrada de uma velha igreja: Deus terá em conta as vossas palavras inúteis. O silêncio no teatro, após as três pancadas, no museu, antes e durante um concerto. No cinema, o de Bergman, o de Tarkovsky, e o de outros..., gigantes». In Marc Smedt, Elogio do Silêncio, 1986, Sinais de Fogo Publicações, tradução de Sérgio Lavos, colecção XIS (livros para pensar), Público, 2003, ISBN 989-555-029-4.

Cortesia de Público/JDACT