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quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Camões. A sua Vida e a sua Época. Mário Domingues. «… os pais tiranos daquela época, refreara-o muito nos seus ímpetos juvenis, que já então faziam da mocidade ciombrã a mais tumultuosa de todo o reino. Se alguma vez por outra lograra escapar-se à apertada vigilância…»

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Como Luís de Camões teria obtido o grau de bacharel latino
«(…) Tem muito interesse o cerimonial que o Regimento dado por João III à Universidade ordenava para a obtenção do grau de Bacharel. Diz o curioso documento:
  • Item, ordenamos que o Bacharel  em qualquer ciência pague para a Arca do Estudo uma dobra de ouro de banda, e uma ao escrivão e bedel e um barrete com um par de luvas ao padrinho que lhe há-de dar o grau e luvas ao Reitor e Lentes que presentes forem ao Auto [Acto]; e será obrigado o Reitor com a Universidade e o Bedel diante com a sua maça, ir pelo graduado à sua pousada se for no bairro, e o trarão às Escolas honradamente, onde logo em princípio do Auto [Acto] fará uma arenga, e depois lerá uma lição, e acabada a lição e disputa se for em Artes... pedirá o grau arengando [discursando]; e depols disto dará as luvas aos sobreditos e fará juramento em as mãos do escrivão ou bedel, segundo abaixo se dirá, e, isto acabado, o Doutor ou Mestre lhe dará o grau, e depois de reeebido o grau, o graduado dará graças a Deus e aos presentes. E o que houver de receber grau tomará do Doutor ou Mestre da Universidade que lhe aprouver, e logo o tornarão honradamente para sua casa donde o trouxeram; e assirn havemos por bem que qualquer que se graduar arme [ornamente] o Geral de panos finos por honra do Auto [Acto].
Festejava-se assim, como ainda hoje se festeja por maneiras diferentes, a obtenção da Licenciatura. Luís de Camões devia ter-se submetido, talvez com espírito faceto, a todas estas praxes. Assim era preciso para obter o grau de Bacharel em Artes. Deduz-se que,
se o graduado iniciou o seu curso aos treze anos (admitindo que realmente nasceu em 1524), cursou durante três anos, de 1537 a 1539, Gramática e Retórica; depois, mais dois anos de Lógica e Filosofia Natural, isto é, de 1539 a 1542. Teria sido assim, de facto, que teria beneficiado de uma prerrogativa concedida pelo aludido Regimento, que permitia considerar os escolares habilitados a receber o pretendido grau, desde que testemunhas juradas provassem perante o escrivão do Estudo e o Reitor ou Mestre que o há-de graduar, que frequentara o Curso pela maior parte do ano? Esta porta escusa do Regimento facilitou o abuso de alguns pseudo-estudantes se diplomarem ràpidamente, sem chegarem a pôr os pés nas aulas, apesar de se submeterem a um suposto exame em que tinham de ler três lições disputadas, apontadas de um dia para o outro.
Luís de Camões, porém, revelou desde cedo uma bagagem de conhecimentos tão vasta e tão profunda que não nos permite a hipótese de ter recorrido a estes subterfúgios para obter o seu grau-de Doutor em Letras ou de Bacharel Latino, se acaso o obteve. Sabia tanto eomo os mestres e possuia a mais do que estes uma imaginação criadora, que se pode educar, mas que nunca se adquire nas escolas por mais eficientes que elas sejam.

Como o poeta viu e descreveu a vida devassa de Lisboa
Em 1542, contaria Luís de Camões entre dezoito e vinte anos, quando alcançou o seu grau de Bacharel e regressou a Lisboa, a casa de seus pais. Devia trazer a mente repleta de formosos projectos, bem próprios da sua idade. Sentia-se vigoroso, mais culto do que a maioria dos jovens, garboso, saudável e trazendo na bagagem alguns poemas da sua lavra que já o tinham notabilizado em Coimbra. Parece, não há a certeza que, terminado o seu curso, não quisera seguir a carreira eclesiástica para o qual o tio Prior Crastense gostaria de vê-lo encaminhar-se. Bento de Camões, certamente ainda mais austero do que os pais tiranos daquela época, refreara-o muito nos seus ímpetos juvenis, que já então faziam da mocidade ciombrã a mais tumultuosa de todo o reino. Se alguma vez por outra lograra escapar-se à apertada vigilância daquele tutor atento e severo, por via de regra ver-se-ia punido pela mais leve falta e mantido numa disciplina férrea, da qual estaria ansioso por libertar-se». In Mário Domingues, Camões, A sua Vida e a sua Época, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1968.

Cortesia de LRTorres/JDACT

Camões. A sua Vida e a sua Época. Mário Domingues. «E quando acontecer o dito Cancelário ser ausente, ou ter outro impedimento, tenha suas vezes em o dito ofício Religioso que as tiver em a governança do dito Mosteiro. … e mando que daqui em diante tudo seja e se chame uma Universidade, e todos juntamente hajam e gozem de uns mesmos privilégios…»

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Como Luís de Camões teria obtido o grau de bacharel latino
«A profunda reforma do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra começou em 1527, quando Luís de Camões contaria três ou quatro anos de idade. Ao mesmo tempo que os cónegos regrantes se sujeitavam à clausura claustral, desenvolviam o ensino por meio de mestres que estudaram em Paris, o que tornava o colégio desse mosteiro o centro mais importante de cultura da mocidade lusitana de então. Segundo Teófilo Braga, foi este progresso pedagógico que determinou João III a trasladar a Universidade de Lisboa para Coimbra em 1537, suavisando a violência de aplicar uma grande parte dos rendimentos de Santa Cruz aos gastos da Universidade. Durante o lapso que vai de 1527 a 1539, sucederam-se por períodos de três anos, vários priores crasteiros e, nesta última data, findo o triénio de Miguel Araújo (1536 a 39),o monarca, querendo honrar o mosteiro que muito cooperara com a Universidade com o prestígio do seu ensino e os rendimentos da sua comunidade, concedeu então o título de Cancelário da Universidade de Coimbra aos Priores crasteiros de Santa Cruz. Ora, precisamente em 5 de Maio de 1539, no capítulo geral dos conventos augustinianos, Bento de Camões, pela sua ilustração e virtude, foi eleito Prior Geral, do que resultou vir ele a ser automaticarrrente o primeiro Cancelário daUniversidade, para muita satisfação do rei João III. O encadeamento destes sucessos exerceu com certeza bastante influência na vida escolar de Luís de Camões.
Teria sido entre 1537 e 39, contando ele treze ou catorze anos, o máximo, que o jovem iniciou os seus estudos mais sérios, com vista à obtenção do grau de Doutor em Letras ou, mais provàvelmente, de Bacharel Latino, como mais tarde viriam a classificá-lo. É de presumir que já sua mãe se tivesse retirado para a companhia do marido, em Lisboa, deixando o filho totalmente entregue à austera vigilância do tio. A coincidência de ser este o Cancelário da Universidade só beneficiaria o moço estudante, não por lhe criar uma situação de favor, mas por lhe fazer sentir a sua autoridade e o orientar superiormente nos estudos. O mosteiro de Santa Cruz possuía então uma das bibliotecas mais ricas da Europa, se não do mundo, e o douto Cancelário não deixaria de indicar ao sobrinho as suas peças mais valiosas que solidamente o instruíssem acerca dos melhores clássicos, desde os Gregos e Romanos, Arábicos e Hebreus.
À margem das lições integradas no programa do curso, Luís Vaz devia ter-se enfronhado na leitura dos mais famosos autores de outrora, conforme o denuncia através da sua obra tão rica em erudição. Filósofos, Historiadores, Geógrafos, Poetas da Antiguidade poucos teriam escapado ao seu olhar curioso e à sua inteligência sedenta de saber. Essa sede de conhecimentos teve a mitigá-lo o mais evoluído corpo docente que, por feliz coincidência, leecionou em Coimbra exactamente nos anos em que ele fez os seus estudos mais importantes. Esses mestres, apelidados de parisienses, foram Pedro Henriques, Gonçalo Álvares, Vicente Fabrício, os gramáticos João Fernandes, Belchior Beliago, Inácio Morais, Máximo Sousa e Heliodoro Paiva. Com eles, a seguirem o exemplo dos famosos Gouveias gue tanto prestigiaram a cultura portuguesa em França, lidou Luís de Camões durante o seu curso de Humanidades, ao mesmo tempo que seu tio Bento exercia o alto cargo de Cancelário desde 1539 a 1542.
Das importantes funções de Cancelário podemos fazer uma ideia através de alguns passos da Carta régia de 15 de Dezembro de 1539, em que João III outorga esse cargo aos Priores de Santa Cruz. Eis um trecho bem significativo:
  • E mando que das portas a dentro do dito Mosteiro e da sua Capela de São João, e de todos os seus colégios, a saber, do Colégio de São João e do Colégio de Santo Agostinho e do Colégio de Todos os Santos, o dito Padre Cancelário haja e tenha toda a jurisdição em os Mestres, Estudantes e Oficiais que em eles lerem, estudarem e servirem. A qual jurisdição se entenderá em os Mestres somente em o que tocar às lições e falta dos lentes, e em o fazer dos exercícios e disputas, e em as horas que hão-de ler, e em lhes darem as licenças para irem fora, e para lerem outros por eles, e em lhes mandar pagar seus salários, e em os mandar multar em eles quando em as sobreditas coisas lhe forem desobedientes. E em os Estudantes e Colegiais em lhes dar licenças, e em os repreender e emendar, quando forem escandalosos, mal ensinados ou desonestos, e em as coisas que dão turvação a bem estudar. 
  • E quando acontecer o dito Cancelário ser ausente, ou ter outro impedimento, tenha suas vezes em o dito ofício Religioso que as tiver em a governança do dito Mosteiro, e pela dita maneira hei por unidos e incorporados, os ditos Colégios com a dita Universidade; e mando que daqui em diante tudo seja e se chame uma Universidade, e todos juntamente hajam e gozem de uns mesmos privilégios, assim dos que até aqui lhe são concedidos, como de todos os que ao diante se concederão à dita Universidade.
É de supor que Luís de Camões fora um bom estudante, embora, pelo temperamento inquieto que revelaria mais tarde, não se exclua a hipótese de ter colaborado, ou mesmo tomado a iniciativa, nas diabruras a que os escolares se entregavam com frequência. Esse espírito buliçoso e irreverente, que ainda hoje se mantém por tradição, apesar de mais atenuado, era, aliás, comum a todos os grandes centros estudantis da Europa e até por vezes, por cá se imitavam as facécias que se verificavam em Salamanca, Paris, Bolonha ou Mompilher». In Mário Domingues, Camões, A sua Vida e a sua Época, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1968.

Cortesia de LRTorres/JDACT

domingo, 25 de agosto de 2013

Garrett. Memórias Biográficas. Ao rei (jure uxoris) Fernando II. Francisco Gomes Amorim. «… aos treze annos, talvez guiado pelo archanjo da poesia, entrei na modesta residência de uma familia indígena; e encontrei lá, aberto, o livro do meu destino. Era o “Camões”, o immortal poema de Garrett»

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Introducção
«É como a luz do sol o génio dos grandes poetas. O seu clarão brilhante, espalhando-se na terra, aquece e alumia as almas de todos os que encontra. Manifestando-se no livro, astro da intelligencia, afugenta as trevas dos cérebros mais obscuros; esclarece e persuade, até os próprios que não querem convencer-se nem illustrar-se. Na poesia, enternece os insensíveis, arranca lagrimas dos corações mais seccos, risos dos lábios mais cerrados, gritos de admiração dos peitos mais frios e indifferentes. É uma força invencível, que transforma os indivíduos, subjugando a vontade aos mais rebeldes e o espirito aos mais pertinazes. Denuncia, emfim, a centelha divina, que o Creador poz na mente do homem.
Quando o escriptor se chama Homero, Virgílio, Dante, Milton, Camões ou Garrett, os seus poemas atravessarão, o tempo e o espaço, cada vez mais admirados e queridos. As suas idéas, similhantes aos raios fulgurosos do rei dos astros, brilharão com o mesmo esplendor com que foram enunciadas milhares de annos antes! Depois de terem commovido e enthusiasmado as gerações extinctas, demonstrarão ás presentes que nem os séculos depravados, nem as epochas de obscurantismo lhes alteraram a primitiva grandeza e a graça nativa! Filhas divinas do génio, só deixarão de existir quando Deus, destruindo o mundo e chamando a si o ultimo homem, volver tudo ao nada, de onde nos tirou a sua omnipotência.
Ha quarenta e três anos, em 1837, que o rigor da sorte me arremessou, creança, desvalido e ignorado, para as praias do exilio, nas margens do Guajará. A fortuna adversa, não contente de haver-me expatriado, internou-me em seguida nos sertões do Amazonas, talvez com o intuito de me tornar mais rude do que me fizera o acaso ao sair do berço. A primeira luz, que animou a solidão da minha alma exilada, foi produzida pela leitura dos Lusíadas. Deslumbrado por esse clarão intensíssimo, o meu espirito juvenil sonhou com as aventuras perigosas, que celebra o épico immortal, e arrastou-me para o seio das florestas. Ali, porém, a convivência com os índios e com as feras, bravas como elles, breve enfraqueceu a chamma de esperança redemptora, com que me aquecera o cantar de nossas glorias. Percorria já, sem enthusiasmo e sem pavor, as matas virgens e as solidões profundas, que circumdam a enorme bacia do rio gigante. Arrojava-me, unicamente como caçador ferino, através das selvas densas e sombrias, onde se acoutavam a anta e o porco bravo; feria sem dó nem repugnância os seios virginaes de arvores sagradas, derramando pelo solo, juncado de folhagem apodrecida, os óleos preciosos e as resinas odoríferas; destruía com prazer estúpido formosíssimas e prodigiosas flores, filhas dilectas d'esse paraizo encantado; e não tinha consciência de que estava mutilando, depois de as ter profanado com olhares de impia ignorância, as mais admiráveis maravilhas da creação!
Mas, um dia, aos treze annos, talvez guiado pelo archanjo da poesia, entrei na modesta residência de uma familia indígena; e encontrei lá, aberto, o livro do meu destino, a ordem que me enviava a Providencia, para que mais tarde se cumprissem os seus mysteriosos desígnios. Era o Camões, o immortal poema de Garrett.
Como e porque iria ali parar esse monumento litterario, a mãos de gente que não sabia ler, senão para que eu viesse a receber piedosamente o derradeiro adeus d’aquelle que o tinha levantado á gloria da sua pátria?! Olhando em torno de mim, depois de o ter lido, fiquei como que assombrado com o espectáculo grandioso que me rodeava. Abriram-se-me repentinamente os olhos da alma; de creança que era, acordava homem, e tão diferente do que fora até esse momento, que a mim próprio me desconhecia!»

In Francisco Gomes Amorim, Garrett, Memórias Biográficas, Ao rei-consorte Fernando II, Conservador da Biblioteca e Museu de Antiguidades Navaes, Sócio da Academia Real das Sciencias de Lisboa, do Instituto de Coimbra, da Real Academia Hespanhola de Historia, Imprensa Nacional, Lisboa, 1881.

Cortesia de IN/JDACT

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Década Quarta da Ásia. Diogo do Couto. «Para todos previu embarcações, soldos e mantimentos. Couto bate muito nesta tecla. Soldados contentes são aqueles a quem não faltam soldos nem mantimentos. Nuno da Cunha não consentia que, da fazenda dessa gente, se gastasse coisa alguma»


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Introdução à leitura da Década Quarta de Diogo do Couto
«São diferenças em toda a parte. Nas Molucas entre Garcia Henriques e Jorge Meneses, antigo e novo capitães de Ternate, em tempo em que os castelhanos disputavam connosco a supremacia naquelas ilhas. Jorge Meneses manda prender Garcia Henriques em ferros. Depois Garcia manda prender Jorge. Os sequazes de Jorge ameaçam obter a aliança dos castelhanos contra o antigo capitão.
Jorge Meneses vê-se livre de Garcia. No exercício do poder singulariza-se por vexações e crueldades, que o cronista acha indignas de portugueses. Sucede-lhe Gonçalo Pereira que o manda prender. O novo capitão descontenta os portugueses. Um português chamado Vicente Fonseca faz-se cabeça da conspiração. O capitão é assassinado, sucede-lhe -o conspirador.
É um tempo de revoltas. Não há soldados que queiram ir à Sunda, onde faz falta uma fortaleza nossa. Enganam os soldados. Dizem-lhes que vão às presas. Do que eles gostam é de ir às presas. Descobre-se o segredo. Os soldados amotinam-se e põem fogo à armada.
Couto nutre a maior admiração por Nuno da Cunha, governador que sucede ao usurpador Lopo Vaz. No primeiro Soldado prático aparece aquele como espelho de governadores. E todavia Nuno da Cunha, que parte de Lisboa em Março de 1528, só chega a Goa em Novembro de 1529. Teve uma viagem desastrada, envolveu-se em guerras pelo caminho. Os nossos quiseram submeter Barém, sofreram um desaire colossal. O primeiro objectivo assinalado pelo rei ao novo governador é a tomada de Diu e a construção de uma fortaleza nesta praça. Nuno da Cunha recebe verbas excepcionais, reúne armadas tremendas. Mas antes do seu exercício e durante perdem-se as ocasiões mais propícias. Em vez de Diu toma-se a ilha de Beth (como escreve Couto), onde somos causa directa ou indirecta de um massacre geral. É verdade que se constroem as fortalezas de Chale, de Baçaim, finalmente de Diu, que se obtêm (mas depois se devolvem) os territórios de Salsete e Bardês. E o rei de Cambaia, que, ameaçado pelos Mogores, nos faculta a tão almejada praça, acaba por morrer às nossas mãos. Couto atenua: por precipitação de um português de baixa sorte.
Estes são os factos. A edificação resulta da maneira como são contados. De como são interpretados e comentados, quando se prestam a isso. Em Cochim, Lopo Vaz Sampaio acaba de obter sentença em seu favor. É governador da Índia. Começa a dispor. A Cristóvão Mendonça, que foi seu adversário, fá-lo capitão de Ormuz. Atribui-lhe um galeão, uma caravela e dois bergantins. Nestes navios carregam-se os provimentos necessários àquela fortaleza, e muita fazenda de El-Rei para se lá vender.
Logo o contraste. Lopo Vaz procede como os governadores do tempo da virtude, não como eles vieram mais tarde a praticar: neste tempo [o de Lopo Vaz] não tratavam os governadores, nem tinham o dinheiro de El-Rei debaixo de suas camas, antes o meneavam em proveito da fazenda de El-Rei, e não no seu.
De Nuno da Cunha o ditirambo anuncia-se, logo que ele começa a preparar a conquista de Diu. Para a jornada, o governador mandou ajuntar e negociar mui grandes apercebimentos. Não dá ponto sem nó. Requisita todos os navios que naquele porto [de Cochin] houvesse assim de El-Rei, como de partes. Não havia, quando ele governava, salários em atraso. Ordenou que se pagasse a toda a gente que se pudesse achar, apta para o fim em vista. Para todos previu embarcações, soldos e mantimentos. Couto bate muito nesta tecla. Soldados contentes são aqueles a quem não faltam soldos nem mantimentos. Nuno da Cunha não consentia que, da fazenda dessa gente, se gastasse coisa alguma. Tratava bem os homens, e esse é o dever do bom governador. Fossem eles portugueses, ou da terra. Assim, passou provisões ao Vedor da Fazenda e a todos os oficiais para fazerem estas despesas, encomendando a todos que, à gente de El-Rei de Cochim, se lhes fizesse muitos mimos, e nenhum agravo

In Diogo do Couto, Década Quarta da Ásia, volume I, coordenação de M. Augusta Lima Cruz, Coimbra Martins, Fundação Oriente, 1999, ISBN 972-27-0876-7.

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sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Etnografia de Os Lusíadas. Alfredo Reis Borges. «As estrofes que se seguem denotam a curiosidade dos nossos marinheiros em face de estranhos povos contactados em regiões distintas, verificando-se também idêntica reacção por parte dos respectivos indígenas»

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Breve questionário etnográfico
«Não se trata rigorosamente de um questionário, isto é, de uma compilação metódica de perguntas como interessa a este tipo de método de investigação etnográfica. É, pois, um interrogatório oral baseado no método de inquérito directo, bastante empírico sob o aspecto etnográfico e de reduzidos requisitos. As estrofes que se seguem denotam a curiosidade dos nossos marinheiros em face de estranhos povos contactados em regiões distintas, verificando-se também idêntica reacção por parte dos respectivos indígenas.
Quando da chegada à ilha de Moçambique apareceram uns pequenos batéis e os marinheiros interrogavam- se:

Que gente será esta? (em si deziam)
Que costumes, que Lei, que Rei teriam?
(I,45)

E antes de completamente ancorados já subiam os negros pelas cordas da nau capitania onde foram bem recebidos pelo capitão (Vasco da Gama) e

Comendo alegremente, perguntavam,
pela Arábica língua, donde vinham,
quem eram, de que terra, que buscavam,
ou que partes do mar corrido tinham.
……………………………
(I,50)

Por via do intérprete Fernão Martins foi dada a seguinte resposta:

……………………………………….
Os Portugueses somos do Ocidente,
imos buscando as terras do Oriente.
(I,50)

Do mar temos corrido e navegado
toda a parte do Antárctico e Calisto,
toda a costa Africana rodeado,
diversos céus e terras temos visto.
……………………………..
(I,51)

.....................buscando andamos
a terra Oriental que o Indo rega;
………………………………
(I,52)

E depois destas respostas disseram:

…………………………
Mas já razão parece que saibamos
(se entre vós a verdade não se nega)
Quem sois, que terra é esta que habitais?
……………………………………
(I,52)

Responderam:

Somos (um dos das Ilhas lhe tornou)
estrangeiros na terra, Lei e nação;
que os próprios são aqueles que criou
a Natura, sem Lei e sem Razão.
Nós temos a Lei certa que insinou
o claro descendente de Abraão,
que agora tem do Mundo o senhorio,
a mãe Hebreia teve e o Pai Gentio.
(I,53)

Esta Ilha pequena que habitamos
É em toda esta terra certa escala
de todos os que as ondas navegamos,
de Quíloa, de Mombaça e de Sofala.
E, por ser necessária, procuramos,
como próprios da terra, de habitá-la;
e, por que tudo enfim vos notifique,
chama-se a pequena Ilha: Moçambique'.
(I,54)

E até ao dia seguinte, enquanto aguardavam a visita do sultão,

…………………………………….
Qualquer então consigo cuida e nota
na gente e na maneira desusada,
…………………………………….
(I,57)

Recebe o Capitão alegremente
 Mouro e toda a sua companhia:
………………………………..
(I,61)

Os marinheiros curiosos,

……………………………………
Notando o estrangeiro modo e uso
e a linguagem tão bárbara e enleada.
Também o Mouro astuto está confuso,
olhando a cor, o trajo e a forte armada;
e, perguntando tudo, lhe dezia
se porventura vinham de Turquia.
(I,62)

E mais lhe diz, também, que ver deseja
os livros de sua Lei, preceito ou fé,
pera ver se conforme à sua seja,
ou se são dos de Cristo, como crê;
e, por que tudo note e tudo veja,
ao Capitão pedia que lhe dê
mostras das fortes armas de que usavam,
Quando cos inimigos pelejavam.
(I,63)

Responde o valeroso Capitão,
por um que a língua escura bem sabia:
…………………………………
(I,64)

A Lei tenho d'Aquele a cujo império
obedece o visibil e invisibil,
aquele que criou todo o Hemisfério,
tudo o que sente e todo o insensibil;
que padeceu desonra e virtupério,
sofrendo morte injusta e insofribil,
e que do Céu à Terra, enfim, deceu,
por subir os mortais da Terra ao Céu.
(I,65)

Deste Deus-Homem, alto e infinito,
os Livros que tu pedes não trazia,
que bem posso escusar trazer escrito
em papel o que na alma andar devia.
Se as armas queres ver, como tens dito,
comprido esse desejo te seria,
como amigo as verás, porque eu me obrigo
que nunca as queiras ver como inimigo.
(I,66)
[…]

As estrofes aqui reunidas revelam bem a curiosidade inata que leva os Portugueses a interrogar-se a respeito das gentes que viam de costumes tão estranhos. Pela sua clareza não nos deteremos muito sobre as suas análises, fazendo apenas breves referências julgadas necessárias a algumas delas. Na ilha de Moçambique formulam o seguinte questionário oral, por quererem saber toda a verdade:
  • 1. Quem sois?
  • 2. Que terra é esta que habitais?
  • 3. Qual é a vossa Lei (religião)?
  • 4. Que Rei (organização social e política)?
In Alfredo Reis Borges, Etnografia de Os Lusíadas, Sociedade de Geografia de Lisboa, 1996.

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Cortesia de SG de Lisboa/JDACT

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Década Quarta da Ásia. Diogo do Couto. «As naus de Manuel de Lacerda e de Aleixo de Abreu, da carreira da Índia, naufragam à altura da ilha de São Lourenço, os esquifes conseguem arribar, a gente fica por aqueles descampados à espera de outra nau que suja e a recolha. Esperam, quase desesperam. Mas lá vem nova armada…»


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Introdução à leitura da Década Quarta de Diogo do Couto
«Guerra de Heitor da Silveira na costa de Cambaia. Um peão português derriba dois cavaleiros mouros, e, trazendo um dos cavalos à rédea, apresenta-se ao nosso capitão, pedindo-lhe que o arme cavaleiro. Couto dá largas ao seu entusiasmo:
  • ‘Louve agora Lívio o seu Marco Corvino, por-matar um francês em desafio [...]. Engrandeça o seu Torquato pelo colar que tomou a outro, que eu não farei mais que contar singelamente estes e outros feitos semelhantes, mais dignos de estátuas, que os dos seus Romanos’.
Subjacente a estrofe 3 do canto I d’Os Lusíadas:

'Cale-se de Alexandre e de Trajano
a fama das vitórias que tiveram,
que eu canto o peito
ilustre lusitano...’

Não só a ideia é afim, como a estrutura das expressões é a mesma: conjuntivo-exortativo (louve/cesse) conduzindo à proposição causal, justificativa da exortação: que eu não farei mais, que eu canto... Mesma estrutura na estrofe 11: ‘Ouvi, que não vereis com vãs façanhas...’ E ideia afim: ‘As verdadeiras vossas são tamanhas, que excedem as sonhadas, fabulosas’.

As naus de Manuel de Lacerda e de Aleixo de Abreu, da carreira da Índia, naufragam à altura da ilha de São Lourenço, os esquifes conseguem arribar, a gente fica por aqueles descampados à espera de outra nau que suja e a recolha. Esperam, quase desesperam. Mas lá vem nova armada. Nau ao largo, avista a gente, tenta acostar, aproxima-se, afasta-se, desiste, segue viagem. Os náufragos não esperam mais, organizam-se, metem-se pelo sertão... Desaparecem todos, nunca mais se sabe deles. Couto presume que tenham sido mortos pelos da terra.
Então, uma irrupção subjectiva, e já mesmo o estilo e a frequência destas são camonianos. Termos da Década:
  • Vejam agora os reis se há na vida cousa com que se satisfaçam tamanhos trabalhos, como seus vassalos passam nesta conquista da Índia: e que preço há com que se pague um só risco da morte, quanto mais tantos, quantos são os em que cada dia se vêem: no mar, tanta tormenta e perigos; na terra tanto risco entre pelouros e fogo, comendo mal, dormindo pior, pelejando todas as horas por honra de seu Deus e de seu Rei!...’
De novo, a ideia dos serviços mal pagos, ou nem sequer pagos, ou pagos com agravos em vez de mercês. E sobretudo a própria literalidade d’Os Lusíadas à transparência. ‘Vejam agora os reis’ (Década) é novamente aquele ‘Vede, Ninfas...’ da estrofe 82 do canto 7; é aquele ‘vós, ó Rei […] olhai...’ da 146 do canto 10. A expressão da Décadatamanhos trabalhos como seus vassalos passam’ lembra o verso 1 da estrofe seguinte do poema: ‘Olhai que ledos vão por várias vias...’
A consideração da Década, ‘no mar tanta tormenta e perigos, na terra tanto risco’, é evidentemente uma recordação dos primeiros heróicos da estrofe 106 do canto I:

‘No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!’

Da Década, a expressão ‘tanto risco entre pelouros e fogo’, decalca o verso 4 da estrofe 147 (outra vez esta!) do último canto: ‘A ferro, a fogo, a setas, a pelouros…’ O ‘comendo mal’ de Couto, neste contexto, é a expressão camoniana, da mesma estrofe,
dando os corpos a fomes…’.O ‘dormindo pior’ evoca as ‘vigias’ do mesmo verso do poeta: ‘Dando os corpos a fomes e vigias’. Como dissemos, é um nunca acabar…
Dissemos da vida de Couto, de como se tornou cronista, de quando escreveu a Década 4, que exemplo tinha em mente, quando redigiu a epístola dedicatória… Que autores leu, que textos utilizou, como as recordações da epopeia camoniana persistem e emergem, sem embargo da compilação que as exclui...»

In Diogo do Couto, Década Quarta da Ásia, volume I, coordenação de M. Augusta Lima Cruz, Coimbra Martins, Fundação Oriente, 1999, ISBN 972-27-0876-7.

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Cortesia da Fundação Oriente/JDACT

Década Quarta da Ásia. Diogo do Couto. «Quem tinha na ideia Os Lusíadas? Lopo Vaz ou Diogo do Couto? O primeiro não pode ser. A sua apologia teria sido recitada, ainda Luís Vai não completara dez anos. O governador-usurpador morreu, antes de o poeta ter começado o seu poema»


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Introdução à leitura da Década Quarta de Diogo do Couto
[…]
«Lucena volta a marcar distâncias: se é verdade... Couto não duvida do que escreve. Como o sabe? Viu? Lucena, esse leu. Se é verdade, como temos lido... Onde terá lido? Como? Quando? Em que condições?
A epístola dedicatória da sua Década 4, datou-a Couto de 20 de Novembro de 1597, vésperas de dar à vela para o reino a armada da carreira. Terá chegado a Lisboa em meados de 1598. Entretanto Filipe II decidira fazer publicar, primeiro que a continuação de Barros, as quatro Décadas do que tinham feito os próprios castelhanos naquelas partes das Índias. Compreende-se. E, enquanto a de Couto esperava, ao cuidado de Adeodato ou de outro, ou de outros, alguém no segredo dos livros e papéis do Oriente, terá assinalado ao de Trancoso que chegara de Goa um novo manuscrito com muitas coisas interessantes. Não duvidamos de que Lucena, cujo livro saiu em 1600, o tenha tido em mãos. Quando escreve sobre a sede do cravo, à fé do tem lido [se é verdade o que temos lido], o que tinha lido era certamente na Década 4 de Diogo do Couto.
Nenhum outro autor tinha escrito que o dito produto das Molucas secava as adegas e enxugava as casas. Assim se atenua a gravidade dos ‘plágios’ de Couto. Quem escrevia da Ásia inseria-se numa teia. Quem copiava era copiado. É verdade, porém, que, entre os copiadores, o novel cronista não fica atrás de nenhum.
Depois voltaremos à paráfrase d’Os Lusíadas... Planeámos atrás. Chegou o tempo. Apologia de Lopo Vaz, texto que só Diogo do Couto fornece. O apelo do maltratado a que se meçam a injustiça que se lhe faz, a desproporção entre os seus serviços e esses maus tratos não deixa de ter afinidades com os mesmos sentimentos expressos por Camões. Palavras de Lopo Vaz: ‘Veja Vossa Alteza, e ponha diante de si, tamanho agravo como este a um homem de minha qualidade e idade e de tantos e tao grandes serviços’; ‘E ainda, Ninfas minhas, não bastava...’ vem no canto 7; ‘Vede, Ninfas...’ Torna a pedir o poeta... Os que Lopo Vaz servia, maltrataram-no, agravaram-no, prenderam-no... Os que Camões cantava, meteram-no em trabalhos, reduziram-no a um estado imerecido e lamentável. N’Os Lusíadas:...

‘Aqueles que eu cantando andava
tal prémio de meus versos me tornasssem,
a troco dos descansos que esperava,
das capelas de louro que me honrassem,
trabalhos nunca usados me inventaram
com que em tão duro estado me deitaram’.

Lopo Vaz, segundo Couto: ‘Ora, veja Vossa Alteza o que me tem custado seu serviço...’. O que lhe tem custado? Aqui, a afinidade torna-se mais estreita: ‘muitos frios, muitas calmas, muitas fomes e sedes, muitos riscos de minha vida, dando a comer meu sangue aos tubarões no mar...’ No primeiro canto: “Ó grandes e gravíssimos perigos!” No último, a famosa estrofe 147:

‘Dando os corpos a fomes e vigias,
a ferro, a fogo, a setas e pelouros.
A quentes regiões e plagas frias,
[...] A naufrágios, a peixes, ao profundo’.

Frios e calmas, na Década; quentes regiões e plagas frias, no poema. Fomes e sedes, na Década; fomes e vigias, no poema. Dar o sangue aos tubarões, na Década; dar o corpo aos peixes, no poema…
Quem tinha na ideia Os Lusíadas? Lopo Vaz ou Diogo do Couto? O primeiro não pode ser. A sua apologia teria sido recitada, ainda Luís Vai não completara dez anos. O governador-usurpador morreu, antes de o poeta ter começado o seu poema. Donde uma inevitável conclusão:
  • se a influência e até a paráfrase d’Os Lusíadas neste passo não são um sonho, o documento respectivo, apologia de Lopo Vaz, não pode ser integralmente verdadeiro. Na mais favorável das hipóteses, Couto não teria apenas encurtado a fala. Tê-la-ia também rescrito, retocado, enfeitado...
Guerra de Heitor da Silveira na costa de Cambaia. Um peão português derriba dois cavaleiros mouros, e, trazendo um dos cavalos à rédea, apresenta-se ao nosso capitão, pedindo-lhe que o arme cavaleiro». 

In Diogo do Couto, Década Quarta da Ásia, volume I, coordenação de M. Augusta Lima Cruz, Coimbra Martins, Fundação Oriente, 1999, ISBN 972-27-0876-7.

continua

terça-feira, 3 de julho de 2012

Latino Coelho. Vasco da Gama, a sua Época e os seus Feitos. «Assim também os ventos, as borrascas, as correntes, que revolvem em ondas empoladas e em temerosos escarcéus a face do Oceano, quando parece que perturbam a branda quietação e o manso dormitar da natureza, estão fazendo o seu ofício beneficente e assegurando à terra madre a sua perpétua juventude e a sua inexausta fecundidade»


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Os Precursores de Vasco da Gama
«A Europa sente no XV século que mais altos destinos, que os da vida quieta e remansada, a estão apelidando para novas e grandíssimas empresas. Não lhe podem  já bastar à nervosa actividade as guerras interiores e as contenções domésticas sem fruto e sem valor. Pressente que uma nova transformação, vagamente suspeitada, é já agora necessária ao seu viver. É do Norte que desponta, com a imprensa, a primeira e grandiosa inovação, o instrumento precioso da cultura intelectual. Pois, ao contrário, será das terras europeias do Meio-dia e Ocidente que há-de brotar e florescer outra rama não menos inesperada da civilização universal. Descobre Gutenberg o aparelho, em que se corporifica e perpetua o pensamento. Mas é em Portugal que hão-de nascer as mais assombrosas maravilhas, que o prelo e os tipos móveis hão-de escrever e recontar.

O tempo dos Grandes Descobrimentos
Por uma singular contradição e paradoxo é o homem, quando chegado a um grau já eminente de progresso, de sua natureza aventureiro, quasi nómada como no primeiro alvorecer de agreste vida social. Apenas as gentes, que demoram num ínfimo estádio de cultura, achegadas na condição e nos costumes à bruteza de silvestres animais, se contentam de vagar pelas terras do seu berço, contraindo as vistas incuriosas a breves horizontes e cifrando em poucas léguas de contorno todo o seu mundo conhecido. Em todos os tempos e lugares, em que houve uns princípios já crescentes de cultura, a migração é lei e natureza dos povos adolescentes. Parece estreita a pátria ainda aos que mais a prezam e reverenciam. Mais se nos afiguram avantajados os penates, quando os transplantamos a distantes regiões, onde a pátria primitiva lance novas raízes e braceje rebentos mais viçosos e vergônteas mais opimas. Enlaça-se, como por instinto irresistível, a uma civilização adiantada este anseio insaciável por dilatar os confins da trra onde nasceu. É como se disséramos a aspiração porventura inconsciente para este venturoso cosmopolitismo, em que o homem seja afinal o cidadão e o cultor da terra inteira, e em que para um só globo, tornado em património universal e em lar comum, haja também uma só humanidade, uma só grei. Daí procedem as colonizações e as conquistas, daí estas correntes ora impetuosas, ora lentas, que desde a mais remota antiguidade têm vindo sem cessar sulcando a terra, transplantando com as tribos e os povos mais diversos, as instituições, os costumes, as indústrias, as ideias, os mitos, as religiões. À migração poderemos chamar-lhe a circulação da humanidade. Sem ela, o progresso, que é a vida das nações, ficaria inerte, infecundo, imobilizada. Assim também os ventos, as borrascas, as correntes, que revolvem em ondas empoladas e em temerosos escarcéus a face do Oceano, quando parece que perturbam a branda quietação e o manso dormitar da natureza, estão fazendo o seu ofício beneficente e assegurando à terra madre a sua perpétua juventude e a sua inexausta fecundidade. Do instinto natural da migração procederam na antiguidade as famosas expedições de assírios e de persas, de macedónios e romanos. Dele nasceram, depois de implantado o cristianismo, as irrupções dos bárbaros setentrionais, que transfundiram novo sangue no anémico império do Ocidente, já decrépito. Daí tiveram a sua origem as cruentas expedições dos muçulmanos, que hasteando o pendão de um novo credo, entusiasta, ardente, exclusivo, dilataram as suas conquistas desde as plagas meridionais da Espanha e da Sicília até aos extremos confins da Índia oriental. Daí se originou aquele tumultuoso movimento das cruzadas, em que a Europa cristã se foi arremessar contra o Levante, em demanda dos sagrados lugares, incunábulo e metrópole da fé. Daí vieram aquelas torrentes de bárbaros indómitos, que ao mando de Tamur-Lan e Gengis Khan revolveram a Ásia, destruindo as antigas monarquias e fundando novas dominações». In Latino Coelho, 1882, Vasco da Gama, Bertrand Editora, Lisboa 2007, ISBN 978-972-25-1614-3.

Cortesia de Bertrand Editora/JDACT

segunda-feira, 2 de julho de 2012

A Arte da Poesia. Os Lusíadas. Luís de Camões. «… Te roga que, de nada receoso, entres a barra, tu com toda armada; e, porque do caminho trabalhoso trarás a gente débil e cansada, diz que na terra podes reformá-la, que a natureza obriga a desejá-la»


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Canto Segundo

I
Já neste tempo o lúcido Planeta,
Que as horas vai do dia distinguindo,
Chegava à desejada e lenta meta,
A luz celeste às gentes encobrindo,
E da Casa marítima secreta
Lhe estava o Deus Nocturno a porta abrindo,
Quando as ‘infidas’ gentes se chegaram
As naus, que pouco havia que ancoraram.

2
‘Dantre’ eles um que traz encomendado
O mortífero engano, ‘assi dezia’:
 - Capitão ‘valeroso’, que cortado
Tens de Neptuno o reino e salsa via:
O Rei que manda esta Ilha, ‘alvoraçado’
Da vinda tua tem tanta alegria
Que não deseja mais que agasalhar-te,
Ver-te e do necessário reformar-te.

3
E, porque está em extremo desejoso
De te ver, como cousa nomeada,
Te roga que, de nada receoso,
Entres a barra, tu com toda armada;
E, porque do caminho trabalhoso
Trarás a gente débil e cansada,
Diz que na terra podes reformá-la,
Que a natureza obriga a desejá-la.

4
E se buscando ‘vas’ mercadoria
Que ‘produze’ o aurífero Levante,
Canela, cravo, ardente especiaria
Ou droga salutífera e prestante;
Ou se queres luzente pedraria,
O rubi fino, o rígido diamante,
Daqui levarás tudo tão sobejo
Com que faças o fim a teu desejo.

5
Ao mensageiro o Capitão responde,
As palavras do Rei agradecendo,
E diz que, porque o Sol no mar se esconde,
Não entra ‘pera’ dentro, obedecendo;
Porém que, como a luz mostrar por onde
Vá sem perigo a frota, não temendo,
‘Comprirá’ sem receio seu mandado,
Que a mais por tal senhor está obrigado.

Luís de Camões, in “Os Lusíadas”

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