terça-feira, 6 de novembro de 2012

Década Quarta da Ásia. Diogo do Couto. «As naus de Manuel de Lacerda e de Aleixo de Abreu, da carreira da Índia, naufragam à altura da ilha de São Lourenço, os esquifes conseguem arribar, a gente fica por aqueles descampados à espera de outra nau que suja e a recolha. Esperam, quase desesperam. Mas lá vem nova armada…»


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Introdução à leitura da Década Quarta de Diogo do Couto
«Guerra de Heitor da Silveira na costa de Cambaia. Um peão português derriba dois cavaleiros mouros, e, trazendo um dos cavalos à rédea, apresenta-se ao nosso capitão, pedindo-lhe que o arme cavaleiro. Couto dá largas ao seu entusiasmo:
  • ‘Louve agora Lívio o seu Marco Corvino, por-matar um francês em desafio [...]. Engrandeça o seu Torquato pelo colar que tomou a outro, que eu não farei mais que contar singelamente estes e outros feitos semelhantes, mais dignos de estátuas, que os dos seus Romanos’.
Subjacente a estrofe 3 do canto I d’Os Lusíadas:

'Cale-se de Alexandre e de Trajano
a fama das vitórias que tiveram,
que eu canto o peito
ilustre lusitano...’

Não só a ideia é afim, como a estrutura das expressões é a mesma: conjuntivo-exortativo (louve/cesse) conduzindo à proposição causal, justificativa da exortação: que eu não farei mais, que eu canto... Mesma estrutura na estrofe 11: ‘Ouvi, que não vereis com vãs façanhas...’ E ideia afim: ‘As verdadeiras vossas são tamanhas, que excedem as sonhadas, fabulosas’.

As naus de Manuel de Lacerda e de Aleixo de Abreu, da carreira da Índia, naufragam à altura da ilha de São Lourenço, os esquifes conseguem arribar, a gente fica por aqueles descampados à espera de outra nau que suja e a recolha. Esperam, quase desesperam. Mas lá vem nova armada. Nau ao largo, avista a gente, tenta acostar, aproxima-se, afasta-se, desiste, segue viagem. Os náufragos não esperam mais, organizam-se, metem-se pelo sertão... Desaparecem todos, nunca mais se sabe deles. Couto presume que tenham sido mortos pelos da terra.
Então, uma irrupção subjectiva, e já mesmo o estilo e a frequência destas são camonianos. Termos da Década:
  • Vejam agora os reis se há na vida cousa com que se satisfaçam tamanhos trabalhos, como seus vassalos passam nesta conquista da Índia: e que preço há com que se pague um só risco da morte, quanto mais tantos, quantos são os em que cada dia se vêem: no mar, tanta tormenta e perigos; na terra tanto risco entre pelouros e fogo, comendo mal, dormindo pior, pelejando todas as horas por honra de seu Deus e de seu Rei!...’
De novo, a ideia dos serviços mal pagos, ou nem sequer pagos, ou pagos com agravos em vez de mercês. E sobretudo a própria literalidade d’Os Lusíadas à transparência. ‘Vejam agora os reis’ (Década) é novamente aquele ‘Vede, Ninfas...’ da estrofe 82 do canto 7; é aquele ‘vós, ó Rei […] olhai...’ da 146 do canto 10. A expressão da Décadatamanhos trabalhos como seus vassalos passam’ lembra o verso 1 da estrofe seguinte do poema: ‘Olhai que ledos vão por várias vias...’
A consideração da Década, ‘no mar tanta tormenta e perigos, na terra tanto risco’, é evidentemente uma recordação dos primeiros heróicos da estrofe 106 do canto I:

‘No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!’

Da Década, a expressão ‘tanto risco entre pelouros e fogo’, decalca o verso 4 da estrofe 147 (outra vez esta!) do último canto: ‘A ferro, a fogo, a setas, a pelouros…’ O ‘comendo mal’ de Couto, neste contexto, é a expressão camoniana, da mesma estrofe,
dando os corpos a fomes…’.O ‘dormindo pior’ evoca as ‘vigias’ do mesmo verso do poeta: ‘Dando os corpos a fomes e vigias’. Como dissemos, é um nunca acabar…
Dissemos da vida de Couto, de como se tornou cronista, de quando escreveu a Década 4, que exemplo tinha em mente, quando redigiu a epístola dedicatória… Que autores leu, que textos utilizou, como as recordações da epopeia camoniana persistem e emergem, sem embargo da compilação que as exclui...»

In Diogo do Couto, Década Quarta da Ásia, volume I, coordenação de M. Augusta Lima Cruz, Coimbra Martins, Fundação Oriente, 1999, ISBN 972-27-0876-7.

continua
Cortesia da Fundação Oriente/JDACT