jdact e cortesia de wikipedia
Rodas
Dentadas
«Quem
observar o interior de um relógio mecânico não pode deixar de se maravilhar com
as numerosas rodas dentadas que se encontram no aparelho. Essas rodas
desmultiplicam o movimento, assegurando que os ponteiros rodem à velocidade
certa. Transformam as oscilações da fonte de energia interna, habitualmente com
período de um segundo, em ciclos de uma hora para o ponteiro dos minutos e
de meio dia para o das horas.
Para
conseguir esta conversão, poder-se-ia construir uma roda com um dente apenas e
acoplá-la à fonte, que faria rodar essa roda uma vez por segundo. Depois
podia-se encaixar essa roda numa outra com 3600 dentes. Cada vez que a primeira
fizesse uma rotação completa, a segunda avançaria um dos seus 3600 dentes. Após
3600 rotações da primeira roda, ou seja, após uma hora, a segunda roda faria uma
rotação completa. Essa segunda peça poderia pois estar acoplada ao ponteiro dos
minutos.
As
rodas dentadas apenas com um dente, no entanto, seriam muito instáveis e frágeis,
tal como as rodas de 3600 dentes seriam demasiado grandes. Os construtores
preferem utilizar uma sequência de rodas que transmitem o movimento inicial de
uma para a seguinte, reduzindo sucessivamente os períodos de rotação. Montam-se
duas rodas dentadas em cada eixo, de forma que um eixo recebe o movimento de
uma roda e arrasta a outra, que engata numa terceira, num segundo eixo, e assim
sucessivamente. A desmultiplicação final resulta do produto das desmultiplicações efectuadas
em cada passo. Para obter o pretendido rácio 3600 / 1, pode haver uma
série de passos, por exemplo, 36 / 10 x 50 / 10 x 20 / 5 x 10 / 5 x 25 / 10 x 100
/ 10, em que o primeiro número de cada fracção representa o número de dentes de
uma roda e o segundo o número de dentes da roda de outro eixo com que a
primeira engata.
Como
é óbvio, há muitas soluções possíveis. A arte está em construir uma sequência
óptima de rodas dentadas, nem muito grandes nem muito pequenas, que obtenha a desmultiplicação
pretendida.
No
século XVIII encontraram-se algoritmos matemáticos para resolver iterativamente
o problema. No essencial, esses algoritmos factorizam o numerador e o
denominador da fracção pretendida, isto é, escrevem cada um dos dois números
como um produto de números primos. Assim, por exemplo, se quisermos obter o
rácio 28 / 45, escrevemo-lo (2 x 2 x 7) / (3 x 3 x 5) e procuramos diversos
agrupamentos. Neste caso, (2 x 7) / 3 x 3) x 2 / 5, ou seja, 14 / 9 x 2 / 5, é
uma das soluções possíveis para quem quiser usar quatro rodas dentadas.
O
problema torna-se mais complicado quando é inviável ou impossível obter o rácio
exacto e apenas se podem obter aproximações. Se o rácio for por exemplo, 997 /
1999, tanto o numerador como o denominador são números primos e a solução
exacta mais simples consiste na construção de uma roda com 997 dentes e de
outra com 1999, o que não parece viável. Mas a aproximação 1 / 2 ou 10 / 20,
por exemplo, é bastante razoável neste caso, pois 997 / 1999 = 0,498...
E sabe-se que qualquer que seja o rácio pretendido é sempre possível
aproximá-lo com a precisão que se quiser, usando sistemas de rodas dentadas
mais simples. O problema, no entanto, pode ser muito trabalhoso e só no século XX
apareceram algoritmos eficientes Para obter sistemas que dêem boas
aproximações.
Até
há algumas décadas pensava-se que o domínio de todas estas técnicas só tinha
sido conseguido muito tarde. Mas, em 1901,
a descoberta fortuita de um mecanismo, no fundo do mar, perto da ilha grega de
Antiquítera, veio mudar essa ideia. O aparelho que se encontrou estava
muito deteriorado e foram necessários muitos estudos para o interpretar. Em
1974, finalmente, o historiador da ciência Derek De Solla Price (1922-1983), de
Yale, conseguiu perceber o seu funcionamento. Verificou que era nada mais nada
menos do que uma máquina destinada a reproduzir o movimento aparente do Sol e
da Lua, incluindo as mudanças de fase do nosso satélite.
Hoje
esses aparelhos chamam-se habitualmente planetários. Rareiam, pois são peças
mecânicas muito custosas. No seu cerne está precisamente um sistema de rodas
dentadas que permite mover as esferas que representam cada astro. Em Lisboa,
quem quiser ver um destes aparelhos pode fazê--lo no Planetário Gulbenkian.
O
que mais surpreende no mecanismo de Antiquítera é a precisão com que foi obtido o
rácio entre períodos lunares e períodos solares. A desmultiplicação foi conseguida
por seis rodas dentadas, nas relações 64 / 38 x 48 / 24 x 127 / 32, que obtêm o
rácio 254 / 19 = 13,36842... Um resultado certo até à terceira casa decimal!
Até
há pouco, o aparelho de Antiquítera maravilhava apenas os matemáticos, os
astrónomos e os historiadores. Recentemente, John Gleave, um artífice
inglês reconstruiu o instrumento antigo. Funciona e obtém a precisão desejada. Quem seria o misterioso sábio grego que há dois
mil anos construiu o original?»
In
Nuno Crato, A Matemática das Coisas, Gradiva, Temas de Matemática, 2008, ISBN
978-989-616-241-2.
Cortesia
de Gradiva/JDACT