“Es el océrano vasto cementerio, sobre todo para Portugal. El mar, ésa
es la 'campa'; ése es el cementerio de esta desgraciada patria de Vasco de
Gama, de Juan de Castro, de Albuquerque, de Magallanes, de todos los más
grandes navegantes del mundo (...). En esse inmenso cementerio vivo [...]
descansa la gloria de Portugal, cuya historia es un trágico naufragio de siglos”.
In
Miguel de Unamuno, Por Tierras de Portugal y de España, texto datado de 1908,
Madrid, 1911.
O Zé sem Utopia
«O facto não tem suscitado o devido interesse que merecia tanto para a
definição do nosso modo de ser identitário nacional, como para a compreensão da
nossa história da cultura e das ideias políticas, apesar de ser um navegador
português, Rafael Hitlodeu, quem conta a Thomas More, na sua Utopia, 1515, o
achamento de uma ilha chamada Utopia, sã e sabiamente governada: os
Portugueses nunca, nem no pensamento teórico nem nas suas letras & artes,
foram realmente dados ao cultivo do género utopista inaugurado pelo escritor
humanista inglês. A ilha dos Amores, a angélica ilha undívaga imaginada por Camões no canto IX d’Os
Lusíadas, 1572, não passa de um prémio que Vénus dá aos famintos
marujos portugueses que foram da praia de Belém a Calecute e voltavam a pátria
no meio de tantos perigos e temores, uma demasiado humana recompensa dada portanto
àqueles homens para poderem refocilar a sua lassa humanidade,
como diz o poeta' Não há na ilha camoniana do canto IX qualquer recorte
político visível, estando, por isso, mais próxima do modelo da estada de
Ulisses no aprazível palácio dos Feácios na Odisseia, ou até da ilha
Ogígia da ninfa Calipso, sem esquecer também o possível padrão do palacete de
Alcina de Ariosto ou até os jardins de Armida de Tasso…
A ilha de Camões não é utópica
A recompensa dada por Vénus aos bravos nautas lusos que foram à Índia e
tornaram a casa não passa, dest’arte, de um humano, demasiado humano galardão
concedido a marujos há tanto tempo privados de prazeres sensuais. A ilha
angélica é, assim, um requintado bordel renascentista onde os ‘fortíssimos varões’ podem, enfim,
repousar de tanta fadiga e saciar a líbido, tantos meses reprimida, em ‘formosos leitos’ que lhes são
proporcionados, além de mil refrescos e manjares, como diz o
bardo. Nada, portanto, da ousadia transgressora da faina utopizante da obra
britânica de 1516.
Por outro lado, a ausência na vida cultural e colectiva portuguesa de
dimensão utópica, ou seja, ideadora de sistemas político-sociais perfeitos,
ditados pela razão ou pelo desejo radical de criação de uma nova sociedade ideal
onde os homens pudessem ser felizes, como nas obras de homens tão diversos como
Campanella, Cabet, Fourier, […], Saint-Simon, etc., mostra bem até que ponto os
nossos ideólogos e políticos, ou mesmo artistas de pena na mão, foram incapazes
de transcenderem a praxis e o real imediato do regime vigente e da história
presente que lhes era dado viverem, incapazes, portanto, de arriscarem qualquer
radicalismo político que os superasse utopicamente, o que parece comprovar-se
nas nossas revoluções como o vintismo, o republicanismo, antes e depois de
1910, e até o socialismo pós-25 de Abril: houve sempre, entre nós, tanto no pensar
como no agir, um défice de Utopia em Portugal, mesmo em figuras heterodoxas
como Antero, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes e outros ‘sonhadores’, aliás quase sempre mais dados a
sebastianizar em do que a utopizar.
Pense-se ainda que, durante a nossa ditadura do séc. XX, de
quase meio século de duração, o cosmos ideológico, cultural e estético português
se reduziu a um rígido dualismo:
- de um lado o establíshment do Estado Novo, a Situação, como então se dizia,
- do outro a magra mas irredutível falange dos sequazes do marxismo du côté de chez Staline.
Dito de outro modo, Salazar e Cunhal ficaram imóveis e fixos a
olharem-se como dois cães de faiança, metáfora de Eduardo Lourenço, que se
espreitavam mutuamente, impedindo que qualquer outra variante de ideário
germinasse para além do acanhadíssimo redil deste insuperável maniqueísmo que
vigorou durante cinquenta anos.
Ausência de utopismo no ideário luso
O pensamento político português, desde a Renascença aos nossos dias,
nunca foi verdadeiramente, ou sequer marginalmente..., utopizante, assim como o
não fora antes, em período medievo. A função crítica de contestação da ordem
social e ideológica existente por via da Utopia
está, assim, ausente das lides dos nossos tratadistas político-jurídicos, em
geral humildes respeitadores do sistemas canónicos oficiais, nunca seus
transgressores ou negadores. Nenhum Bodin ou Maquiavel entre nós,
antes obedientes e ortodoxos catalogadores de heresias, com vista à devida
punição ulterior pelos tribunais humanos e divinos». In João Medina, Zé Povinho sem
Utopia, Ensaio sobre o estereótipo nacional português, C. M. de Cascais, ICES,
Cascais, 2004, ISBN 972-637-118-X.
Cortesia da CM de Cascais/JDACT