Sobre Manet, Gauguin e Braque
«Este célebre romancista chegou a predizer, para gáudio de todos os
representantes da oficial e respeitável tradição académica, que não vinha longe
o dia em que a ‘Olympia’, seria pendurada no Museu do Louvre, ao lado das imortais
obras-primas da antiguidade. Zola tinha razão.
Mas em que consistia a novidade, o carácter insólito ou escandaloso
dessa famosa tela? - é a pergunta que
hoje formulamos, perplexos, diante dos documentos dessa violenta explosão de
opiniões contundentes, que levou mesmo Manet a fugir para Espanha.
Seria o ‘motivo’? Mas a ‘Olympia’
não passava de uma vulgar odalisca, deitada, numa pose que não difere grandemente
da de nus conhecidos de Ticiano, de Giorgione, de tantos outros mestres
venerados. Não era o motivo. Seria a própria nudez da figura? Tão-pouco devia ser
essa a razão: em 1863 todo o cidadão que se prezasse admirava, com grande dose
de exclamações deleitadas, os nus muito mais sensuais de Delacroix, de Ingres,
de Greuze, de Chasseriau, do próprio Courbet.
Não, o que feriu a retina do digníssimo júri do salão oficial e do
público que ele representava foi a maneira de pintar, a técnica utilizada. Em
primeiro lugar, a figura não estava ‘romantizada’,
não correspondia ao ideal de beleza estabelecido; depois, e especialmente, na ‘Olympia’
estavam contidas em embrião todas as premissas da obra futura de Manet,
muito do que iria fundamentar o impressionismo e revolucionar a pintura. Em que
assentava essa revolução, na verdade profunda e cheia de consequências?
Desde há muito, desde o fim do Renascimento, que a pintura vinha
sofrendo uma evolução mais ou menos constante que a encaminhava, no que essa
arte tem de linguagem estribada numa técnica e num mecanismo elaborado de
visão, para a representação dos seres e dos objectos como formas situadas num
espaço tridimensional e individualizadas por um agente modelador, a luz, orientada
numa direcção dada. Almejando pôr de pé um milagre de ilusão de óptica,
inúmeros pintores tinham-se esforçado por fazer rodar as figuras, por
contorná-las em profundidade, desmultiplicando os volumes em sucessivos planos
e gradações, em valores de claro-escuro; isto é, sugerindo um espaço óptico
pela distribuição das intensidades luminosas e pela destruição momentânea dos
contornos em grandes sombras que os fundiam e ligavam com o fundo, ‘figuras abertas’. Entretanto, o que fora
um instrumento maravilhosamente rico nas mãos de um Rembrandt, por exemplo,
transformou-se lentamente numa odiosa trucagem. As telas encheram-se de sombras
opacas e monótonas, de um negrume contrário à pintura e repelente para o olhar,
com o qual os falsos mestres procuravam imitar os antigos; imitavam, porém, tão
somente a sujidade dos séculos, depositada sobre as tetas clássicas, em vez de
apreender o espírito dos clássicos. A partir dessa escuridão fuliginosa os
mistificadores da tradição faziam ressaltar um volume qualquer, uma cara, uma
espada, um braço, banhando-o com uma luz crua e cegante. Estava quebrada a coesão
do quadro, perfurada e desorganizada a nobreza da sua superfície, desarticulada
por uma gesticulação grandiloquente e vazia.
Manet descortinava, à sua volta, os resultados da decadência, a
indigência aviltante em que caíra o ofício de pintor. E, ligando a descoberta
recente das estampas policromadas dos japoneses ao conhecimento íntimo que
possuía de Goya, Velazquez, Franz Hals, ousou fazer o que devia ser feito: destruir o negrume, destruir a miragem académica,
restituir à tela a sua desmantelada unidade, sugerir o espaço em vez de imitá-lo
e restaurar a beleza decorativa das largas superfícies coloridas, perdida desde
os primitivos, desde a iluminura medieval, desde os criadores das
tapeçarias de Bayeux, desde os florentinos e flamengos dos séculos XIV e XV
(18)». )». In Lima de Freitas, Voz Visível, Ensaios, União Gráfica, Lisboa, 1971.
Cortesia de U. G./JDACT