quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Voz Visível. Ensaios. Lima de Freitas. «Manet descortinava, à sua volta, os resultados da decadência, a indigência aviltante em que caíra o ofício de pintor. E, ligando a descoberta recente das estampas policromadas dos japoneses ao conhecimento íntimo que possuía de Goya…»


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Sobre Manet, Gauguin e Braque
«Este célebre romancista chegou a predizer, para gáudio de todos os representantes da oficial e respeitável tradição académica, que não vinha longe o dia em que a ‘Olympia’, seria pendurada no Museu do Louvre, ao lado das imortais obras-primas da antiguidade. Zola tinha razão.
Mas em que consistia a novidade, o carácter insólito ou escandaloso dessa famosa tela?  - é a pergunta que hoje formulamos, perplexos, diante dos documentos dessa violenta explosão de opiniões contundentes, que levou mesmo Manet a fugir para Espanha.
Seria o ‘motivo’? Mas a ‘Olympia’ não passava de uma vulgar odalisca, deitada, numa pose que não difere grandemente da de nus conhecidos de Ticiano, de Giorgione, de tantos outros mestres venerados. Não era o motivo. Seria a própria nudez da figura? Tão-pouco devia ser essa a razão: em 1863 todo o cidadão que se prezasse admirava, com grande dose de exclamações deleitadas, os nus muito mais sensuais de Delacroix, de Ingres, de Greuze, de Chasseriau, do próprio Courbet.
Não, o que feriu a retina do digníssimo júri do salão oficial e do público que ele representava foi a maneira de pintar, a técnica utilizada. Em primeiro lugar, a figura não estava ‘romantizada’, não correspondia ao ideal de beleza estabelecido; depois, e especialmente, na ‘Olympia’ estavam contidas em embrião todas as premissas da obra futura de Manet, muito do que iria fundamentar o impressionismo e revolucionar a pintura. Em que assentava essa revolução, na verdade profunda e cheia de consequências?
Desde há muito, desde o fim do Renascimento, que a pintura vinha sofrendo uma evolução mais ou menos constante que a encaminhava, no que essa arte tem de linguagem estribada numa técnica e num mecanismo elaborado de visão, para a representação dos seres e dos objectos como formas situadas num espaço tridimensional e individualizadas por um agente modelador, a luz, orientada numa direcção dada. Almejando pôr de pé um milagre de ilusão de óptica, inúmeros pintores tinham-se esforçado por fazer rodar as figuras, por contorná-las em profundidade, desmultiplicando os volumes em sucessivos planos e gradações, em valores de claro-escuro; isto é, sugerindo um espaço óptico pela distribuição das intensidades luminosas e pela destruição momentânea dos contornos em grandes sombras que os fundiam e ligavam com o fundo, ‘figuras abertas’. Entretanto, o que fora um instrumento maravilhosamente rico nas mãos de um Rembrandt, por exemplo, transformou-se lentamente numa odiosa trucagem. As telas encheram-se de sombras opacas e monótonas, de um negrume contrário à pintura e repelente para o olhar, com o qual os falsos mestres procuravam imitar os antigos; imitavam, porém, tão somente a sujidade dos séculos, depositada sobre as tetas clássicas, em vez de apreender o espírito dos clássicos. A partir dessa escuridão fuliginosa os mistificadores da tradição faziam ressaltar um volume qualquer, uma cara, uma espada, um braço, banhando-o com uma luz crua e cegante. Estava quebrada a coesão do quadro, perfurada e desorganizada a nobreza da sua superfície, desarticulada por uma gesticulação grandiloquente e vazia.
Manet descortinava, à sua volta, os resultados da decadência, a indigência aviltante em que caíra o ofício de pintor. E, ligando a descoberta recente das estampas policromadas dos japoneses ao conhecimento íntimo que possuía de Goya, Velazquez, Franz Hals, ousou fazer o que devia ser feito: destruir o negrume, destruir a miragem académica, restituir à tela a sua desmantelada unidade, sugerir o espaço em vez de imitá-lo e restaurar a beleza decorativa das largas superfícies coloridas, perdida desde os primitivos, desde a iluminura medieval, desde os criadores das tapeçarias de Bayeux, desde os florentinos e flamengos dos séculos XIV e XV (18)». )». In Lima de Freitas, Voz Visível, Ensaios, União Gráfica, Lisboa, 1971.

Cortesia de U. G./JDACT