«Vasco da Gama conseguiu chegar à Índia, voltou e tornou a ir, trouxe especiarias
e boas notícias, serviu o rei e seu filho, o rei João III, rei conhecido pelo
cognome de o ‘Piedoso’ e que foi avô de
Sebastião, o tal a quem Camões leria o seu poema. A história pessoal de Vasco
da Gama foi, em suma, gloriosa.
Camões conta isto de modo muito mais agradável no seu magnífico poema.
Por exemplo, diz-nos como saíam os barcos de Portugal, metiam-se pelo
Atlântico, que na época era apenas conhecido até ao Cabo da Boa Esperança, antes
das Tormentas, zona que é algures na África do Sul de hoje e, se conseguissem
passar este, então, podiam dirigir-se para a Índia, a desejada.
Quem navega assim, à mercê dos caprichos da Natureza, descobre que o
homem, por mais que se queira fazer gigante, não passa de um pequeno grão de pó
na imensidão deste planeta: ora o vento abrandava e as naus paravam; ora o
vento enfurecia e as naus rangiam de dor quase a partirem-se; e vinham tempestades
e doenças e todos os perigos que seguem como sombras quase sempre as aventuras.
Pior do que tudo era não se saber ao certo para onde se ia. Assim ao calhar, a coisa
complicava-se. Ninguém, antes dos portugueses, tivera coragem para tanto, que tanto
era.
São os ventos da coragem
é a voragem de ser
é a calma da miragem
de um povo a acontecer.
Largaram a Europa, que nessa época nem se chamava Europa, durante
muitos anos chamaram-lhe Cristandade,
zona de cristãos apesar de ter por lá muitos muçulmanos, e outros que não são
agora aqui chamados…
Largaram a Europa e foram-se a África e já estavam nas costas de
Moçambique quando os deuses, esses malandros que só aparecem quando não são
chamados, se puseram em conferência, quem sabe se com medo destes homens que,
tão cheios estavam de coragem, pareciam ainda maiores do que deuses.
O chefe dos deuses, o deus dos deuses, chamava-se Júpiter e era a modos
que um presidente, um rei, um director, um general, um tipo importante, logo
cabia-lhe a presidência da reunião. Vénus, filha dele, uma rapariguita jeitosa,
bonita, digo eu que tinha formas apetitosas, cabelos acobreados, olhos a puxar para
o verde de mar com sombras e feitiços, misteriosa, estava presente; Deusa
do Amor e da Ternura, era o seu título. Com eles, estavam ainda Baco e
Marte. Baco, divertido e excessivo, gostava de copos. Um bebedolas.
Que pena. Há vícios que fazem dos prazeres terríveis condenações. Baco,
apesar da elevada taxa de alcoolémia está sempre em desavenças com as
brigadas de trânsito e falha miseravelmente sempre que lhe fazem o teste
do balão, Baco tem uma faceta divertida: adora festas, é o Deus da Folia.
Marte implica com ele. É natural, é o Deus da Guerra. Desprende o
cheiro da terra queimada, da morte, do sangue. É um Deus do destruir.
Dá-se bem com um dos outros parceiros que estavam neste encontro: Apolo, o Deus
da Luz e do Calor, que muitas vezes vai à guerra, embora não a ilumine
nem aos seus generais, espalhando apenas a destruição do fogo e das labaredas...
Neptuno, o Deus do Mar, também não faltou. Tinha até um punhado de algas no cabelo, e uma concha no cocuruto da
cabeça.
Ordem de trabalhos da reunião,
ponto único: davam ou não davam uma ajudinha àqueles
toscos dos portugueses, pobres diabos que se meteram à água com manias de heroísmos
e audácias?
Nas rodas da ilusão
saltam chispas de quimera.
A coragem é um pão
come-o sempre quem não espera.
Todas as hipóteses foram colocadas: se Júpiter em vez da paz promovesse
uma tempestade? Se atirasse sonhos ao ar, fizesse naufragar as barcaças frágeis,
os seus ocupantes ainda mais sensíveis? O que vale para um deus a vida de um
simples homem?
Vénus deixara-se apaixonar pela valentia, pelo homem de olhos grandes, Vasco
da Gama, que liderava a frota… Marte reconhecia-lhes a coragem e a
valentia… Votaram a favor dos portugueses, portanto. Mas Baco
estava com o grão na asa, uns copitos a mais, uma alegria muito próximo da
maldade, e discordava, queria mordê-los, esbofeteá-los, assustá-los,
desacreditá-los… queria…
No palácio de Júpiter discutia-se acaloradamente. Deuses e homens sempre
em caminhos diferentes. Como fazer-lhes entender que são peças soltas de uma
história só, e que quem a conta ditará sempre o seu destino?
São os deuses, são as gotas,
é a nuvem a chorar
passos perdidos das rotas
que só eu sei encontrar.
Camões começa o poema dizendo-nos o que se propõe cantar: a glória dos portugueses,
homens que ultrapassaram a ilha de Ceilão, a
Taprobana, ao sul da Índia, cometendo grande proeza, comparável à de grandes
heróis como Ulisses, Eneias, Alexandre Magno ou o imperador Trajano. Enfrentaram
muitas dificuldades, impostas pela Natureza mas também pelos deuses, como o
invejoso Baco que chega a mandar-lhes um traidor, um mouro que os engana. Mas entre
os deuses há aliados dos portugueses: Vénus, por exemplo, gosta da gente lusa e
dá uma ajuda. Tudo isto é contado ao rei Sebastião, rei que nasceu dias depois
da morte de seu pai e que assumiu o poder aos 14 anos. Camões usa a expressão Vós,
usando pois o vocativo, quando lhe dirige a palavra. O canto I mostra-nos um
homem, Vasco da Gama, mais fraco que os poderosos deuses, mas dotado da
perseverança dos heróis».
In Alexandre Honrado, Eu curto… Eu gosto dos Lusíadas, Negócio de Ócio,
Lisboa, 2002, ISBN 972-98888-0-9.
Cortesia de Negócio de Ócio/JDACT