sábado, 10 de novembro de 2012

Portugal na Espanha Árabe. António Borges Coelho. «Fala-se no caminho para Santiago, desbravado mais intensamente após a chegada dos cluniacenses e de Raimundo e Henrique. Mas havia também um caminho para Meca de que ninguém fala. E bem mais antigo. E bem mais grávido de presente e de futuro. Por onde se derramou o caudal das técnicas agrícolas e artesanais...»


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«As espadas dos imigrantes francos e borguinhões não voltaram a sorte das armas em Zalaca, Uclés e Malagon. O seu papel consistiu principalmente em suster, institucionalizar, velar pela pureza ideológica que soprava de Roma e Cluny e favorecia a expansão demográfica e militar europeia.
Os cruzados ajudaram Afonso Henriques a conquistar Lisboa: os cruzados e as lutas intestinas dos muçulmanos, então a braços com a crise almorávida e a rebelião dos muridines. Mas Giraldo Sem Pavor, só com os seus moçárabes e santarenos, sem as espadas dos francos ou dos cavaleiros das Ordens, Évora expulsou-os das suas muralhas, conquistou um território com metade da extensão do reino de Afonso Henriques. Giraldo ‘e os ladrões seus sócios’, escreve a Crónica dos Godos mas hoje há quem traduza o honorífico ‘latro’ por reposteiro-mor de Afonso Henriques...
Para os almóadas, o rei de Leão é o senhor de Castelo Rodrigo, de Ávila, de Salamanca, de Leão, quer dizer é o chefe militar dos cavaleiros vilãos destas cidades e não o mais poderoso dos ricos-homens. Sem o reconhecimento dos privilégios e conquistas sociais da quase ‘federação’ de vilões de 1179, a de Coimbra, Lisboa, Santarém e Abrantes, e os privilégios de Évora de 1166, porventura não seria possível resistir às vagas almóadas de 1184 e 1190-1191. E quais os portugueses das Navas de Tolosa os ricos-homens ou os cavaleiros vilãos?

A estrutura em que se integrou por algum tempo todo o Portugal a sul e mesmo uma parte a norte do Douro tinha como polos maiores Toledo Saragoça, Córdova, Badajoz e Sevilha. A circulação de homens, animais, mercadorias, técnicas e ideias não se processava tanto por artérias dispostas no sentido norte-sul, mas principalmente na tradição romana noroeste-sueste ou leste-oeste. Os olhos não se voltavam como hoje para Lisboa ou Paris; as pequenas correntes não aumentavam de volume e rapidez quando corriam no sentido dos rios aproximando-se do Atlântico. Por sua vez, a ‘ribeira’ do Algarve não nos lançava ainda para o Atlântico sul e ocidental; constituía uma ponte voltada para o Magrebe. Lisboa, Alcácer, Silves, Faro, Tavira ligavam-se aos portos norte-africanos, a Ceuta, Alexandria, Alepo e, daí, a Fez, Marraquexe, Cairo, Meca, Bagdade.
Fala-se no caminho para Santiago, desbravado mais intensamente após a chegada dos cluniacenses e de Raimundo e Henrique. Caminho ponteado de pequenos burgos, dava passagem a peregrinos, guerreiros imigrantes, colonos, mercadores e artífices e transportava de retorno mercadorias, homens, novas ideias, novas técnicas, riquezas. Mas havia também um caminho para Meca de que ninguém fala. E bem mais antigo. E bem mais grávido de presente e de futuro. Por onde se derramou o caudal das técnicas agrícolas e artesanais que revolucionaram o ocidente medievo. Por onde chegaram os manuscritos de Aristóteles, Avicena, as Universidades, os Hospitais.
A distribuição demográfica estava bem longe da mancha marítima actual que se carregou com os descobrimentos. Na costa atlântica a densidade seria apreciável no Algarve, na Estremadura e no noroeste mas os capilares, veias e artérias engrossavam ao aproximar-se de Badajoz e de Sevilha. O forte povoamento do Alto Alentejo pode ainda assinalar-se no recenseamento ordenado por João III em 1527. Como a célebre capital dos suevos, a cidade dos arcebispos, a primaz das Hespanhas estava longe da maioria das vilas alentejanas e algarvias… A fronteira que nos cinge e eriça há oito séculos é que nos enviuvou no longo burel rectangular com que se vestiu o leste de Portugal.
Não se nega, porém, que com o firmar do reino de Coimbra e o estabelecimento a ocidente do pentágono urbano marcado por esta cidade, por Lisboa, Santarém, Abrantes-Tomar e Évora vá ganhando corpo o povoamento que faria de Lisboa o coração da faixa atlântica peninsular Nesse povoamento intervieram afluxos de Além-Douro, principalmente pelo estrada litoral Porto-Coimbra e houve mesmo um movimento colonizador da Beira como parece inferir-se da toponímia e de outras fontes: Mondim de Basto (e da Beira), Celorico de Basto (e da Beira), Aguiar transmontana (e beirã). Mas no próprio ‘santuário’ de Além-Douro quantos cativos idos do Andaluz se reintegraram pelo baptismo?»
In António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe, História, Colecção Universitária, Editorial Caminho, 1989, ISBN 972-21-0402-0.

Cortesia de Caminho/JDACT