«As espadas dos imigrantes francos e borguinhões não voltaram a sorte
das armas em Zalaca, Uclés e Malagon. O seu papel consistiu principalmente em
suster, institucionalizar, velar pela pureza ideológica que soprava de Roma e
Cluny e favorecia a expansão demográfica e militar europeia.
Os cruzados ajudaram Afonso Henriques a conquistar Lisboa: os cruzados
e as lutas intestinas dos muçulmanos, então a braços com a crise almorávida e a
rebelião dos muridines. Mas Giraldo Sem Pavor, só com os seus moçárabes e
santarenos, sem as espadas dos francos ou dos cavaleiros das Ordens, Évora
expulsou-os das suas muralhas, conquistou um território com metade da extensão
do reino de Afonso Henriques. Giraldo ‘e os ladrões seus sócios’, escreve a
Crónica
dos Godos mas hoje há quem traduza o honorífico ‘latro’ por reposteiro-mor
de Afonso Henriques...
Para os almóadas, o rei de Leão é o senhor de Castelo Rodrigo, de
Ávila, de Salamanca, de Leão, quer dizer é o chefe militar dos cavaleiros
vilãos destas cidades e não o mais poderoso dos ricos-homens. Sem o
reconhecimento dos privilégios e conquistas sociais da quase ‘federação’
de vilões de 1179, a de Coimbra, Lisboa, Santarém e Abrantes, e os privilégios
de Évora de 1166, porventura não seria possível resistir às vagas almóadas de
1184 e 1190-1191. E quais os portugueses das Navas de Tolosa os ricos-homens ou
os cavaleiros vilãos?
A estrutura em que se integrou por algum tempo todo o Portugal a sul e
mesmo uma parte a norte do Douro tinha como polos maiores Toledo Saragoça,
Córdova, Badajoz e Sevilha. A circulação de homens, animais, mercadorias, técnicas
e ideias não se processava tanto por artérias dispostas no sentido norte-sul,
mas principalmente na tradição romana noroeste-sueste ou leste-oeste. Os olhos
não se voltavam como hoje para Lisboa ou Paris; as pequenas correntes não
aumentavam de volume e rapidez quando corriam no sentido dos rios
aproximando-se do Atlântico. Por sua vez, a ‘ribeira’ do Algarve não
nos lançava ainda para o Atlântico sul e ocidental; constituía uma ponte voltada
para o Magrebe. Lisboa, Alcácer, Silves, Faro, Tavira ligavam-se aos portos
norte-africanos, a Ceuta, Alexandria, Alepo e, daí, a Fez, Marraquexe, Cairo,
Meca, Bagdade.
Fala-se no caminho para Santiago, desbravado mais intensamente após a
chegada dos cluniacenses e de Raimundo e Henrique. Caminho ponteado de pequenos
burgos, dava passagem a peregrinos, guerreiros imigrantes, colonos, mercadores
e artífices e transportava de retorno mercadorias, homens, novas ideias, novas
técnicas, riquezas. Mas havia também um caminho para Meca de que ninguém fala.
E bem mais antigo. E bem mais grávido de presente e de futuro. Por onde se
derramou o caudal das técnicas agrícolas e artesanais que revolucionaram o
ocidente medievo. Por onde chegaram os manuscritos de Aristóteles, Avicena, as
Universidades, os Hospitais.
A distribuição demográfica estava bem longe da mancha marítima actual
que se carregou com os descobrimentos. Na costa atlântica a densidade seria
apreciável no Algarve, na Estremadura e no noroeste mas os capilares, veias e
artérias engrossavam ao aproximar-se de Badajoz e de Sevilha. O forte
povoamento do Alto Alentejo pode ainda assinalar-se no recenseamento ordenado
por João III em 1527. Como a célebre capital dos suevos, a cidade dos
arcebispos, a primaz das Hespanhas estava longe da maioria das vilas alentejanas
e algarvias… A fronteira que nos cinge e eriça há oito séculos é que nos
enviuvou no longo burel rectangular com que se vestiu o leste de Portugal.
Não se nega, porém, que com o firmar do reino de Coimbra e o
estabelecimento a ocidente do pentágono urbano marcado por esta cidade, por
Lisboa, Santarém, Abrantes-Tomar e Évora vá ganhando corpo o povoamento que
faria de Lisboa o coração da faixa atlântica peninsular Nesse povoamento
intervieram afluxos de Além-Douro, principalmente pelo estrada litoral
Porto-Coimbra e houve mesmo um movimento colonizador da Beira como parece
inferir-se da toponímia e de outras fontes: Mondim de Basto (e da Beira), Celorico
de Basto (e da Beira), Aguiar transmontana (e beirã). Mas no próprio ‘santuário’
de Além-Douro quantos cativos idos do Andaluz se reintegraram pelo baptismo?»
In António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe, História, Colecção
Universitária, Editorial Caminho, 1989, ISBN 972-21-0402-0.
Cortesia de Caminho/JDACT