Ilustrações de José Ruy
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«Não são raros, no panorama da literatura universal, os casos de
obras-primas em relação às quais se põe o problema da autenticidade do autor.
Para não ir mais longe, lembremos o caso da Bíblia. O livro quiçá mais lido e
conhecido do mundo, verdadeira obra-prima da literatura de sempre, continua, em
muitos dos livros que a constituem, sem paternidade definida. A Odisseia
e a Ilíada,
os dois monumentais poemas em que se vazou o génio grego, são atribuídos a Homero,
mas a crítica é unânime em não identificar Homero com um indivíduo determinado
e em não reconhecer ao homem que teria sido Homero a glória de ter composta as
gestas épicas que com o seu nome têm corrido as idades. Mais perto de nós, a
individualidade de Gil Vicente, o criador do teatro português, continua muito
problemática, e, se neste caso não se põe a hipótese duma sombra de anonimato a
cobrir o autor dos famosos Autos, continuamos indecisos quanto
à sua identificação com este ou aquele personagem. Problema semelhante se põe
relativamente a Shakespeare, em cujo nome alguns críticos pretendem que se acoberta
um outro misterioso personagem, havendo até quem queira identificá-lo com a
rainha Isabel de Inglaterra.
Não seria pois para admirar que também para, as Cartas Portuguesas o problema
da mente como da autoria de Soror Mariana Alcoforado, poderíamos perguntar se
foram escritas por ela, poderíamos
perguntar quem se encontra por detrás do nome desta freira. Nada de nova até aqui.
O pouco que deixamos dito é mais que suficiente para nos deixar perceber que
problemas semelhantes se topam a cada passo no panorama das letras.
Há, no entanto, algo que distingue o caso presente de todos os outros
até aqui apontados. De facto, nestes, se o problema se põe para a determinação
da pessoa que escreveu; é pacífíco entre os críticos o campo literário em que
cada uma daquelas obras teve origem. Discuta-se quanto se quiser sobre quem foi
o autor do Cântico dos Cânticos; ninguém duvida de que esse, como todos os
outros livros da Bíblia, pertence à literatura judaica. Aventem-se todas as
hipóteses sobre a identidade de Homero; é facto assente que os poemas chegados
até nós com o seu nome são um produto do génio grego. Fosse ou não fosse o Gil
Vicente dos Autos o mesmo Mestre Gil que assinou a feitura da custódia de
Belém, ninguém discute que a sua obra pertence ao património da literatura portuguesa.
No caso das Cartas, para além da incerteza e das dúvidas que pairam quanto
à pessoa do autor, a querela transporta-se mais longe, e são nada menos do que
duas literaturas, a
francesa e a portuguesa, a disputar entre si a paternidade das Cartas,
e ainda hoje não se sabe se o original desta obra viu a luz do dia vazado em
francês ou em português. Problema que ultrapassa, de longe, a questão comum da
identidade de autor, para levantar o problema mais vasto de a considerar como
expressão literária de um ou de outro povo». In Soror Mariana Alcoforado,
Cartas Portuguesas, texto da primeira edição francesa de 1669, Europa América,
1974.
Cortesia de P. E-A/José Ruy/JDACT