«Em todas as épocas há homens decepcionados. Aquele ali, à direita de
El-Rei, vestido de um albernoz preto e luzidio, com palastrões adiante, com
passamanarias vermelhas a orná-lo vivamente, alamares a condizer e a brilhar,
gorjeira espampanante, sendo nobre e possuidor de vasta fazenda sofre de ‘despeitação’ e falta de garra. O muito
que El-Rei sempre teve de fúria ambiciosa carece a este jovem fidalgo em ganância
ou sofreguidão. Chama-se, como aliás já sabemos, Ataíde, mas El-Rei apelida-o,
D.
Bosta, despreza-o convictamente.
Poucos são os nobres deste reino que a seu rei incomodaram ou incomodam
muito tempo. Este, verdade se traduza, é verdadeira consternação, uma desgraça.
Diz-se que tem o toutiço tão oco quanto um elmo. Nem para dirigir palavra a
outrem tem coragem. Quando olha, de lado o faz não sendo zarco nem vesgo; cora;
fica ao rubro como donzel assediado. Não só por ter este aspecto e comportamento,
por ser tão tosco de modos, tão ensimesmado, nos interessa topar e descobrir. É
que desempenhará, como adiante se diz e atrás se sugeriu, papel importante na
sorte da Corte de El-Rei e mesmo na vida triste do monarca.
O que há a contar para já se conta agora. O resto virá a seu tempo...
El-Rei, a quem as varizes dão hoje uma comichão
tremenda, enche e vaza de bom tinto nortenho do reino seu reluzente copo
gravado com armas reais. A seu lado, frei Nicolau, frade, confessor e beberrão,
faz notar: - A bebida é coisa santa. Retira diabos do corpo, soltando-os pela
língua, deixando depois a quem bebe um estado de pacificação em Deus, uma
sonolência abençoada. A bebida não é pecado. E até se, ao acordarmos, a cabeça
parece batida por cascos de cavalo, é o ensinamento: saíram-te os pecados,
não tornes a eles...
Frei Nicolau encheu o copo, bebeu até à última gota, estalou,
prazenteiro, a língua: - Até ouço as harpas que tocam no Céu! El-Rei
gostava de beber com frei Nicolau, homem que santificava a sede e a compreendia.
Ao ouvi-lo falar em harpas bateu palmas e ordenou: - Música, quero música!
Era bem sabido que El-Rei, quando em disposição, apreciava folguedo,
aos domingos e santos dias punha à mesa artes de danças, ‘estromentos’, ‘menistres’
e bailes de mouros e mouras vestidos de muitas sedas e ao serão havia às vezes
muitas danças e outras muitas festas, ‘momos’
e ‘entremezes’ E em entradas reais,
com música costumavam vir os judeus, quando os havia que agora não há, baptizados
foram, e vinham mouros, e povo com folia e foliões e moças bem vestidas e
música sempre própria. E mesmo El-Rei é músico de vontade, apreciando ‘charamelas’, ‘sacabuxas’, ‘cornetas’, ‘harpas’, ‘tambores e rabecas’, ‘alaúdes
e pandeiros mouros’ e no seu casamento dava muitos serões às damas e
galantes e bailavam e ele algumas vezes, ainda não tinha varizes bailava até
fartar…
Aliás, El-Rei tem por obrigação de seu mister dar festas em ocasiões
extraordinárias, e de extraordinário temos os casamentos, nascimentos, chegada
ou partida de embaixadores ou de visitantes ilustres, a grande festa da chegada
de Vasco das Índias, ou de outras naus se a grandeza o justificar…
Há ainda as festas profanas que se fazem sempre pelas festas litúrgicas
e que os reis devem ‘intender’, como as
do Natal consoada, da Páscoa ressurreição, a do dia de Corpus Chisti com
procissão e toiros, a de véspera de S. João com grandes fogueiras, e a de dia
de canas reais e assim dia de S. Jorge, quando se faz sempre a festa por causa
da Garroteia
que a tinha o infante João, e todas as outras festas que merecem ser guardadas
e cerimoniadas, até porque todas são para desenvolver virilidade, por isso têm
de ir à carreira correr touros, fazer-se aos jogos de canas, e às justas,
havendo ainda no paço muitos serões e bailes quando El-Rei o entende, e quando
lhe apraz vai pelas lezírias a montes e a caças com muitos banquetes, prazeres
e festas... E mesmo em caças, artes que requerem silêncios, El-Rei leva músicos
tal é o ‘prazimento’...» In
Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN
972-42-2392-2.
continua
Cortesia de C. de Leitores/JDACT