«Na pressa rasgavam com as fachas os sacos de especiarias que se
derramavam pelo chão das lojas e das ruas. Os grãos de pimenta, calcados pela
multidão, enchiam o ar com o seu odor. Roubavam conservas, jarras de mel,
manteiga, azeite, vinho, pouco, apanhavam os grãos de pimenta. Quando veio a
noite, os invasores forçaram e mataram muitos habitantes nas suas casas para
roubar. Não escapavam as mulheres nem os meninos.
- ‘Tal havia, entre aqueles que em este reino não tinha uma choça, e ali acertava por pousada grandes casas ladrilhadas com tijolos vidrados de várias cores. E tectos forrados de olival com açoteias cercadas de mármore; e camas brandas e moles com roupas de desvairados lavores, como são as obras dos mouros’. (Na Crónica da Tomada de Ceuta, de Zurara, sobre todas as coisas se falava do infante dom Henrique, que todo o al estimavam por pequena cousa).
A 22 de Agosto, a hoste, comandada pelo cavaleiro mercador João Vaz de
Almada, ocupou o castelo e nele hasteou a bandeira da cidade de Lisboa que
ostentava a figura do mártir moçárabe São Vicente. Coube-lhe o melhor roubo,
o do ouro e da prata que ficaram no castelo. A pilhagem continuou durante dias.
Se na cave das casas achavam areia movediça, desfaziam alicerces, ou
penduravam-se nos poços, apalpando a água com os pés em busca
de tesouros.
No esbulho entraram cinco galés, uma delas real, viratões, bestas,
escudos, uma bombarda, muita pólvora, cera, sebo, pez, âncoras, cabres, treus,
mastros, vergas, artimões, governalhos.
Os mortos da cidade jaziam no terreno, ali onde caíram, empapados no
próprio sangue. Os que vestiam roupas melhores estavam nus. Para afastar o
espectáculo e o perigo da peste, lançaram-nos ao mar. Da mesquita maior
retiraram as esteiras velhas sobre as quais os crentes rezavam as suas orações;
limparam as paredes com água e sal, tirada de uma caldeira de prata; armaram
uma tábua larga com os seus pés e improvisaram o altar. A mesquita maior virava
sé catedral.
Juntaram-se então todos os clérigos. Dois sinos, roubados no século
anterior em Lagos, repicavam. Troaram as trombetas, entoaram o Te
Deum. No sermão, mestre frei João Xira: Esta é a casa do senhor
Deus, a qual é fundada sobre firme pedra. Levante-se o Senhor e destrua os seus
inimigos.
Depois da missa, os infantes vieram com os seus arneses, a espada à
cinta e cota de armas. Ante eles, tocavam trombetas e charamelas. Duarte, o
infante mais velho, pôs os joelhos em terra, tirou a espada da bainha, beijou-a
e meteu-a na mão de seu pai que com ela o armou cavaleiro. Seguiram-se por
ordem de nascimento os irmãos. Até cansarem, pai e filhos continuaram a armar cavaleiros.
Manter ou destruir
O rei João convocou então o Conselho
Régio. Disse:
- ‘em seu entender, a posse de Ceuta permitiria que aí se celebrassem os ofícios divinos e mobilizaria os outros príncipes cristãos para a luta contra os ‘infiéis’. Além disso, a defesa da cidade travaria a saída de cavaleiros para outros reinos e permitiria que a memória de tamanho feito pudesse durar ante os olhos dos homens’.
O Conselho dividiu-se. Um
primeiro grupo lembrou que Ceuta tinha de ficar bem servida de
gente e de mantimentos, pois virão mouros de todas as comarcas para a
recuperar. Os reinos não podem suportar tamanha despesa. E Ceuta, alongada de vossa
terra, só por água pode ter socorro». In António Borges Coelho, Largada das Naus,
História de Portugal (1385 – 1500), Editorial Caminho, 2011, ISBN
978-972-21-2464-5.
Cortesia de Caminho/JDACT