«Se não havia empresários, por que se associariam eles já no tempo do
rei Dinis? Por que alcançariam a famosa Lei da Construção das Naus (ao menos os
armadores de Lisboa e do Porto)? Tratar-se-á de arquétipos de arma'dores que só
futuramente se materializariam? O autor de Ricos-Homens Infanções e Cavaleiros escreve
algumas vezes revolução de 1383 mas vai amontoando juízos que a intentam
negar. Por exemplo: o modo de produção
feudal manteve-se mesmo depois de 1383. Forte novidade. Se hoje mesmo
não está morto nem enterrado como haveria de ficar em 1383?.
Subjacente a qualquer revolução, estão conflitos na formação económica.
Mas os sujeitos históricos não são os modos de produção mas os grupos sociais
que deles emanam. Os sujeitos são os homens e não as coisas, embora as coisas
marquem e ergam limites ao comportamento dos grupos e dos homens.
Que não existia contestação da autoridade senhorial nem dos privilégios
dos nobres. Que havia mais protestos contra funcionários fiscais que contra os
nobres. Mas a dado passo reconhece que no reinado de Fernando I se agrava o
antagonismo dos concelhos e outros nobres contra o pequeno grupo da alta
nobreza favorecida pelo rei.
Lutar contra o direito de aposentadoria, lutar contra a intervenção dos
nobres na vida do concelho não é lutar contra a autoridade e os privilégios dos
senhores? Por outro lado, pelos vistos na época do rei Fernando, os
concelhos já aparecem menos compartimentados e mais unidos. Quem representam
os funcionários fiscais? De onde provêm os alcaides das principais
cidades e vilas? Não serão nobres e muitos deles castelhanos e galegos?
Qual é o carácter de classe do Estado no
governo de Fernando I?
Os movimentos europeus do século XIV, Jacquerie, Lollardos, Ciompi,
constituiriam somente cóleras populares rurais ou urbanas
anárquicas? Essas cóleras teriam
apenas como programa a vingança? Não haveria uma reivindicação social,
por mais pequena que fosse? A questão
permanece razoavelmente obscura, escreve o autor. Será por culpa dos ditos
marxistas e dos homens do idealismo político? E estarão as questões de 1383
nessa tão grande obscuridade? Não haverá épocas da História de Portugal bem
mais obscuras?
Não foi fácil seguir a exposição do autor de Religião e cultura na Idade Média
Portuguesa. Não há condições para transformações radicais mas escreve-se
revolução. Lutas de classes? Pode-se dizer que começam. No entanto,
dificilmente se poderão compreender os acontecimentos sem recorrer a factores
de outra ordem. Por que recorreu José Matoso à luta de classes e não usou os
tais factores de outra ordem? A luta de classes está muito longe de ser
tudo mas em história social não se pode dispensar o conceito. O discurso de José
Matoso arrasta-se num pode ser mas também pode não ser. As velhas
dúvidas, a socrática e a metódica, são metodicamente essenciais. Dúvidas,
montanhas de suspensões do juízo no acto que precede a afirmação. Depois há que
escolher e assumir a verdade ou o erro, se for caso disso, com a certeza de que
é pela descoberta do erro que se avança.
Divergência e Diálogo
Para certos escribas, os historiadores ditos marxistas nasceram todos
do mesmo molde. No entanto, há longo tempo que existem divergências de fundo entre
as ideias expressas neste meu livro e as que Armando Castro defendeu e
defende em A Evolução Económica em Portugal dos Séculos XII a XV. Em
que consistem as nossas diferenças?
Em minha opinião, Armando Castro prende de tal modo o
Portugal medievo nas malhas da sociedade feudal que depois tem dificuldade em
desdobrar nela a revolução de 1383. Pelo seu lado, o autor de A
História Económica de Portugal considera tacitamente que hipervalorizo
o mundo protocapitalista na sociedade medieval portuguesa e exagero por isso o
alcance da revolução de 1383.
Esta divergência pode ser já assinalada na recensão crítica que
publiquei na Seara Nova de Novembro de 1964, a propósito dos dois primeiros
volumes de A Evolução Económica de Portugal:
- A estrutura agrária do século XII está profundamente transformada na segunda metade do século XIV. Muitas instituições não são já as mesmas, embora conservem os mesmos nomes de antanho. As próprias receitas régias do século XII, relativamente às do século XIV, quase mudaram de sinal. O novo mundo burguês contribui agora com cerca de 80% para as despesas do rei (e neste ponto discordamos da opinião do autor). O soberano, senhor dos senhores, transformara-se em 1385 no detentor eleito da Coroa do Reino. Por outro lado, os coutos do século XII não envolvem a mesma realidade económica dos do século XV que, quanto a nós, se assemelham às enclosures britânicas do século XVI.
Estas divergências tornaram-se mais claras após a publicação do XI
volume de A Evolução Económica de Portugal, já citada. Para Armando
Castro, a burguesia portuguesa trecentista, embora um gigante, manteve um respeito integral pelas estruturas da sociedade feudal». In
António Borges Coelho, A Revolução de 1383, Editorial Caminho, Colecção
Universitária, 1984.
continua
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