Mostrar mensagens com a etiqueta ATJ. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta ATJ. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Poesia Completas & Dispersos. Alexandre O’Neill. «São dias que nunca deviam ter saído do mau tempo fixo que nos desafia da parede dias que nos insultam que nos lançam»

Cortesia de wikipedia e jdact

Ao Rosto Vulgar dos Dias
«Monstros e homens lado a lado,
Não à margem, mas na própria vida.

Absurdos monstros que circulam
Quase honestamente.

Homens atormentados, divididos, fracos.
Homens fortes, unidos, temperados.

Ao rosto vulgar dos dias,
À vida cada vez mais corrente,
As imagens regressam já experimentadas,
Quotidianas, razoáveis, surpreendentes.

Imaginar, primeiro, é ver.
Imaginar é conhecer, portanto agir».


O Tempo Sujo
«Há dias que eu odeio
Como insultos a que não posso responder
Sem o perigo duma cruel intimidade
Com a mão que lança o pus
Que trabalha ao serviço da infecção

São dias que nunca deviam ter saído
Do mau tempo fixo
Que nos desafia da parede
Dias que nos insultam que nos lançam
As pedras do medo os vidros da mentira
As pequenas moedas da humilhação

Dias ou janelas sobre o charco
Que se espelha no céu
Dias do dia-a-dia
Comboios que trazem o sono a resmungar para o trabalho
O sono centenário
Mal vestido mal alimentado
Para o trabalho
A martelada na cabeça
A pequena morte maliciosa
Que na espiral das sirenes
Se esconde e assobia

Dias que passei no esgoto dos sonhos
Onde o sórdido dá as mãos ao sublime
Onde vi o necessário onde aprendi
Que só entre os homens e por eles
Vale a pena sonhar».

Poemas de Alexandre O’Neill, Poesia Completas & Dispersos, Edição de Maria Antónia Oliveira, Assírio & Alvim, No Reino da Dinamarca, 2018, ISBN 978-972-371-947-5.

Cortesia de AssírioandAlvim/JDACT

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Poesia Completas & Dispersos. Alexandre O’Neill. «Chorar encostada a uma saudade bem maior do que eu, que não fosse esta tristeza absurda de cada dia»

jdact

Meditação na Pastelaria
«Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece.

Nunca se sabe quando começa a insolência!
Que tempo este, meu Deus, uma senhora
Está sempre em perigo e o perigo
Em cada rua, em cada olhar,
Em cada sorriso ou gesto
De boa-educação!

A inspecção irónica das pernas,
Eis o que os homens sabem oferecer-nos,
Inspecção demorada e ascendente,
Acompanhada de assobios
E de sorrisos que se abrem e se fecham
Procurando uma fresta, uma fraqueza
Qualquer da nossa parte…

Mas uma senhora é uma senhora.
Só vê a malícia quem a tem.
Uma senhora passa
E ladrar é o seu dever, se tanto for preciso!

O pó de arroz:
Horrível!
O bâton:
Igual!

O amor de Raul é já uma saudade,
Foi sempre uma saudade…

(O escritório
Toma-lhe todo o tempo?
Desconfio que não…)

Filhos tivemos um:
Desapareceu…
E já nem sei chorar!


Chorar…
Como eu queria poder chorar!

Chorar encostada a uma saudade
Bem maior do que eu,
Que não fosse esta tristeza
Absurda de cada dia:
Unha
Quebrada de melancolia…

Perdi tudo, quase tudo…

Hoje,
Resta-me a devoção
E este pequeno inteligente cão.

Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece».

Poema de Alexandre O’Neill, Poesia Completas & Dispersos, Edição de Maria Antónia Oliveira, Assírio & Alvim, No Reino da Dinamarca, 2018, ISBN 978-972-371-947-5.

Cortesia de AssírioandAlvim/JDACT

domingo, 7 de julho de 2019

A Favorita do rei Dinis. Vataça. Francisco do Ó Pacheco. «Olá, princesa Vataça. Como tem passado? Bem, Alteza Rea1, respondeu Vataça enquanto fazia a vénia dobrando os joelhos e baixando a cabeça. Continuais linda, princesa»

jdact

«(…) Tudo pronto para receber el-rei Dinis I que não demorou a entrar pela cidade adentro, com os seus cavaleiros e com as bandeiras e estandartes do reino português, à frente, assinalando a real comitiva. Às portas do palácio de Alcazar, o rei de Castela Fernando e sua esposa dona Constança e inúmeros nobres e aias da corte castelhana. Dinis apeou-se do cavalo e abraçou o seu genro com carinho e amizade. Depois voltou-se para sua filha Constança, estendeu-lhe os braços e esperou que a jovem rainha se atirasse ao seu pescoço e o beijasse efusivamente. Deixou-se ficar com a filha nos braços e sentiu, de novo, com emoção, esse sentimento paternal que pensava já o ter abandonado, porque sua filha já estava em Castela havia mais de dois anos. Depois de receber cumprimentos dos mais altos dignitários da igreja e da nobreza de Castela, Dinis percorreu com o olhar as aias da rainha e descobriu Vataça Lascaris, a quem se dirigiu de imediato.
Olá, princesa Vataça. Como tem passado? Bem, Alteza Rea1, respondeu Vataça enquanto fazia a vénia dobrando os joelhos e baixando a cabeça. Continuais linda, princesa. Vataça já não respondeu e enquanto sentia o rubor nas suas faces, el-rei Dinis afastou-se e caminhava já ao lado de Fernando de Castela e de sua filha Constança dirigindo-se para o interior do palácio toledano com ambas as comitivas reais. À noite ao jantar no sa1ão principal de Alcazar, a Corte castelhana preparava-se para ofertar um opíparo jantar aos seus convidados portugueses. Naquela enorme mesa nada faltava. Os melhores vinhos e os melhores manjares enchiam o centro da mesa de uma ponta à outra. Javalis e leitões assados no espeto, faisões e patos, castanhos-escuros brilhantes das assaduras em fornos de lenha especiais, salmões e trutas do rio Tejo, frutas de todas as variedades ibéricas e algumas do norte de África. O rei de Castela deu o mote, após umas breves palavras de boas-vindas ao rei português, agarrou uma das facas que tinha à sua beira, cortou uma perna do faisão e levou-a à boca, com apetite devorador, cravando-lhe os dentes na tenra carne.
Estava divinal, acrescentava, enquanto mastigava com prazer. E todas as largas dezenas de comensais seguiram o seu exemplo, atirando-se literalmente às travessas repletas de iguarias. Dinis, que se havia sentado no outro topo da mesa, de frente para Fernando de Castela, chamara para o seu lado a princesa Vataça Lascaris, com quem falava alrgremente e de vez em quando elevava a caneca de vinho e saudava o seu genro e rei de toda a Corte de Castela. Vataça perguntara como estava a rainha Isabel, a quem ligavam profundos sentimentos de amizade e respeito. Lá continua muito atarefada, dizia Dinis, com as suas devoções e com os seus auxílios aos pobres e desprotegidos de Portugal. Todas as manhãs são as matinas e os louvores a Deus. À tarde reza as vésperas e faz as leituras canónicas da Santa Igreja. Nos períodos de maior fervor religioso, como na Quaresma ou no Advento, faz os seus jejuns. Tem períodos que chama ao palácio todos os pobres e lava-os, veste-os e alimenta-os. Por vezes tenho que chamar a guarda para colocar alguma disciplina nesses desgraçados que vêm aos milhares de todo o país e até de Castela. Sabem que a Senhora é um coração de ouro e não hesitam em chegar-se até ela. E continua a fundar conventos e casas de acolhimento por todo o Portugal?, perguntou Vataça Lascaris». In Francisco do Ó Pacheco, Vataça, A Favorita de Dom Dinis, Prime Books, 2013, ISBN 978-989-655-183-4.

Cortesia de PBooks/JDACT

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Capa negra de saudade no 31. Alexandre Rezende. «Ai como é belo à luz da lua ouvir-se um fado em plena rua o cantador apaixonado trinando as cordas a cantar o fado»

jdact

À meia noite ao luar
Alexandre Rezende
«À meia noite ao luar
vai pelas ruas a cantar
o boémio sonhador
e a recata donzela
de mansinho, abre a janela
à doce canção de amor.

Ai como é belo à luz da lua
ouvir-se um fado em plena rua
o cantador apaixonado
trinando as cordas a cantar o fado.

Dão-se as doze badaladas
ao ouvir-se as guitarradas
surge o luar que é de prata
e a recatada donzela
de mansinho abre a janela
vem ouvir a serenata».

Adeus à Sé velha
«Sentes que um tempo acabou
Primavera de flor adormecida
qualquer coisa que não volta, que voou
que foi um rio, um ar na tua vida
E levas em ti guardado
o choro de uma balada
recordações do passado
o bater da velha cabra

Capa negra de saudade
no momento da partida
segredos desta cidade
levo comigo p' ra vida

Sabes que o desenho do adeus
é fogo que nos queima devagar
e no lento cerrar dos olhos teus
fica a esperança de um dia aqui voltar
E levas em ti guardado
o choro de uma balada
recordações do passado
o bater da velha cabra

Capa negra de saudade
no momento da partida
segredos desta cidade
levo comigo p' ra vida».

JDACT

Amizade no 31. Alexandre O’Neill. «(O nome de quem se ama  letra a letra revelado. No mármore distraído no papel abandonado)»

jdact

Há Palavras que Nos Beijam
«Há palavras que nos beijam
como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
de imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
quando a noite perde o rosto;
palavras que se recusam
aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
entre palavras sem cor,
esperadas inesperadas
como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
letra a letra revelado
no mármore distraído
no papel abandonado)

Palavras que nos transportam
aonde a noite é mais forte,
ao silêncio dos amantes
abraçados contra a morte».


Amigo
«Mal nos conhecemos
inaugurámos a palavra amigo.


Amigo é um sorriso
de boca em boca,
um olhar bem limpo,
uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
um coração pronto a pulsar
na nossa mão!

Amigo (recordam-se, vocês aí,
escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!

Amigo é o erro corrigido,
não o erro perseguido, explorado,
é a verdade partilhada, praticada.

Amigo é a solidão derrotada!

Amigo é uma grande tarefa,
um trabalho sem fim,
um espaço útil, um tempo fértil,
amigo vai ser, é já uma grande festa!
Alexandre O'Neill, in “No Reino da Dinamarca”

JDACT

Coimbra no 31. Letras. «O adeus da despedida não dura mais que um minuto mas fica na minha vida como cem anos de luto».

jdact

Adeus Sé Velha
Fernando Quintela
«Adeus Sé velha saudosa
com guitarras a rezar
minh’alma parte chorosa
no dia em que eu te deixar.

O adeus da despedida
não dura mais que um minuto
mas fica na minha vida
como cem anos de luto».

As mãos
Manuel Alegre
«Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema, e são de terra.
Com mãos se faz a guerra, e são a paz.

Com as mãos se rasga o mar. com mãos se lavra.
Não são de pedra estas casas, mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no ventre: verdes haspas.

De mãos é cada flor, cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade».

JDACT

Poesia no 31. Miguel Torga. «Oh! maldição do tempo em que vivemos, sepultura de grades cinzeladas, que deixam ver a vida que não temos e as angústias paradas!»


jdact

Dies Irae
«Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
a mão do medo sobre a nossa hora.

Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
os motins onde a alma se arrebata.

Oh! maldição do tempo em que vivemos,
sepultura de grades cinzeladas,
que deixam ver a vida que não temos
e as angústias paradas!»
Miguel Torga, in “Cântico do Homem”

Viagem
«É o vento que me leva.
O vento lusitano.
É este sopro humano
universal
que enfuna a inquietação de Portugal.
É esta fúria de loucura mansa
que tudo alcança
sem alcançar.
Que vai de céu em céu,
de mar em mar,
até nunca chegar.
E esta tentação de me encontrar
mais rico de amargura
nas pausas da ventura
de me procurar...»
Miguel Torga, in “Diário XII”

JDACT

terça-feira, 31 de maio de 2016

A Favorita no 31. Vataça. Francisco do Ó Pacheco. «E o casório presencial consumou-se com a graça de Deus, corria o ano do Senhor de 1282, aos 26 do mês de Junho, tinha dona Isabel de Aragão 12 anos e o seu rei e esposo, Dinis, já caminhando pelos 20 anos adentro»


jdact

«(…) Quando partiu com a mãe e os irmãos, de Ventimiglia para Zaragoça de Aragão, Vataça teria pouco mais de doze anos e foi então que conheceu a infanta Isabel, ainda sua parente afastada, filha do rei de Aragão, Pedro III e da rainha Constança da Sicília, e neta de Jaime I. Não ficou muito tempo na corte de Aragão, porque dona Isabel casara por procuração com o rei de Portugal, Dinis I, como já estava previsto entre as duas coroas, desde 1280. No ano seguinte, o rei de Portugal enviava a Barcelona três emissários, tendo por sua vez o rei de Aragão enviado também uma embaixada a Portugal e assim ficava resolvida a questão das arras, isto é, dos bens que ficariam para a rainha, caso ela sobrevivesse ao rei. Nessa carta de doacção, o monarca Dinis concedia à noiva, as vilas de Óbidos, Abrantes e Porto de Mós. Foi já em 1282 que a rainha dona Isabel e sua comitiva, onde se encontrava Vataça Lascaris, entraram em Portugal por Bragança e se dirigiram para Trancoso, onde o rei e esposo a aguardava para que se consumasse a boda real e lhe concedesse o senhorio da vila.
Viagem inesquecível, pensava Vataça. De um momento para o outro deixara a sua casa e os seus amigos em Ventimiglia e partira para Saragoça de Aragão. Pouco depois fazia caminho para Portugal, com dona Isabel de Aragão, que ia ser rainha desse reino, de que pouco tinha ouvido falar até então. Mas tal viagem jamais sairia de sua memória. E recordou o casamento de dona Isabel com o rei Dinis I, que quase não pode ser celebrado, religiosamente, em Trancoso nem em qualquer outra terra de Portugal, porque as igrejas se mantinham todas fechadas e sem cerimónias de culto, por interdição do papa, desde o reinado de Afonso III. Tudo porque aquele rei de Portugal estava excomungado, sob a acusação de ofensas à liberdade da igreja. Apesar das várias tentativas, no fina1 do reinado do rei bolonhês para terminar o conflito com Roma, só em 1289, já em pleno reinado de Dinis, o papa Nicolau IV colocou um ponto final a tão prolongado litígio. Para que não se agravassem as relações com o papado Dinis I mandou que as bênçãos eclesiásticas se fizessem com os prelados aragoneses que acompanhavam dona Isabel. E o casório presencial consumou-se com a graça de Deus, corria o ano do Senhor de 1282, aos 26 do mês de Junho, tinha dona Isabel de Aragão 12 anos e o seu rei e esposo, Dinis, já caminhando pelos 20 anos adentro, pois a 9 do Outubro seguinte, completaria a bonita idade de vinte e um anos. Começavam então os folguedos, grandiosos. que os casamentos reais sempre proporcionam aos povos, quaisquer que eles sejam e onde quer que se encontrem». In Francisco do Ó Pacheco, Vataça, A Favorita de Dom Dinis, Prime Books, 2013, ISBN 978-989-655-183-4.

Cortesia de PBooks/JDACT

domingo, 17 de abril de 2016

A Favorita do rei Dinis. Vataça. Francisco do Ó Pacheco. «Terás que te contentar com os filhos dos meus irmãos e meus sobrinhos. Deus também não quis que tivesse filhos de Dinis. Mas minha adorada mãe…»

jdact

«(…) De facto, Vataça casaria aos dezassete anos com Martim Anes Soverosa em 1285, um fidalgo que já passara o meio século de vida. Coisas da política e de um poder régio mais ou menos absoluto. Tudo começara com a morte do rei de Castela, Afonso X, no ano de 1284. Queria Afonso de Castela que o seu sucessor fosse o seu primeiro filho, Fernando de la Cerda, mas face ao falecimento deste e não querendo que o seu segundo filho, Sancho, ocupasse o trono, determinou que seu neto, Afonso de la Cerda, lhe sucederia. Puro engano. Seu segundo filho, Sancho, com uma forte coligação de nobres, deserdou o sobrinho e fez-se coroar rei em Toledo nesse mesmo ano. Os tempos que se lhe seguiram foram terríveis para todos aqueles que se lhe haviam oposto. Mandou matar milhares de castelhanos de todas as classes sociais, criando em Castela e Leão um clima de terror nunca antes visto. Muitos nobres pediram auxílio a el-rei Dinis I e este, com receio de represálias pela parte de Sancho IV, encetou contactos com Aragão no sentido de se ajudarem mutuamente em caso de agressão. Mas o monarca Dinis quis ir mais longe e iniciou contactos com vários nobres da Galiza mesmo sabendo da ligação destes a Castela. A verdade é que a Galiza sempre gozara de um estatuto de grande autonomia em relação a Leão e Castela e essa autonomia poderia ser útil a Portugal. Logo, nada melhor para tais objectivos que ter um nobre português, dos mais credenciados junto da nobreza galega, para consolidar uma política de boa vizinhança e ajuda mútua. E tal nobre só podia ser Martim Anes Soverosa cuja família estivera fortemente ligada à Galiza e aos primeiros reis de Portugal desde Afonso Henriques. Martim Anes gozava de enorme prestígio junto dos nobres galegos e poderia conseguir perfeitamente os propósitos do rei de Portugal. Mandou por consequência Dinis I a Vataça Lascaris, que o desposasse e garantisse que os fins pelos quais o casamento se iria realizar seriam alcançados.
Pala além desta iniciativa diplomática junto da Galiza, Dinis I ainda conseguia resolver um outro problema. Afastava dona Vataça Lascaris da Corte, onde os zunzuns da sua relação com a princesa bizantina soavam cada vez mais alto, apesar da Rainha dona Isabel ser insensível ao ciúme. E encontros com Vataça em Soverosa, que ficava a sete ou oito léguas a leste do Porto ou a dez léguas ao su1 de Braga, seriam frequentes. mas muito mais seguros. Bastaria levar a Corte ou parte dela ao norte para saber como estavam as relações com a nobreza galega e visitar o palácio dos Soverosa e reencontrar a sua concubina favorita. Mas pouco adiantou para Portugal aquele casamento, pois Sancho IV de Castela acabana por invadir Portugal e a guerra entre os dois reinos só terminaria com a sua morte, em 1295, por acaso o mesmo ano do falecimento de Martim Anes Soverosa. Depois o Tratado de Alcanizes resolveria todos os diferendos entre os dois reinos.
Mas não me deste nenhum neto até agora, filha! Disse Eudóxia com tristeza. Pois não, mãe. Terás que te contentar com os filhos dos meus irmãos e meus sobrinhos. Deus também não quis que tivesse filhos de Dinis. Mas minha adorada mãe e desculparás esta minha pergunta, tens de me dizer o que se passou entre ti e o meu pai para que tivéssemos de sair de Ventimiglia. Fomos expulsos como deste a entender ontem à tarde? Nem eu sei ao certo o que se passou. Tudo aconteceu já depois da morte de teu pai. Foi então que me comunicaram que tínhamos sido deserdados e que deveríamos abandonar Ventimiglia. Falaram-me que por detrás dessa terrível decisão política estaria a mão de Miguel Paleólogo, de Constantinopla, e que a principal razão teriam sido as minhas tentativas de angariar apoios para que os Lascaris regressassem ao império bizantino, como era seu direito. Comecei então os contactos com Jaime I de Aragão, ainda nosso familiar, para que pudéssemos ser acolhidos em Zaragoça, tal como veio a acontecer». In Francisco do Ó Pacheco, Vataça, A Favorita de Dom Dinis, Prime Books, 2013, ISBN 978-989-655-183-4.

Cortesia de PBooks/JDACT

quarta-feira, 8 de julho de 2015

A Favorita do rei Dinis. Vataça. Francisco do Ó Pacheco. «O controlo de Balduíno sobre o império bizantino era muito reduzido e a oposição que sofreu não tardou a gerar o surgimento de vários outros estados imperiais que dominaram durante muitos anos toda a Anatólia e a parte norte da Grécia»

jdact

«(…) Eudóxia, sua mãe, havia explicado o que eram esses símbolos da cristandade e a sua importância. A Cruz do Santo Lenho era uma cruz de prata dourada de elevada decoração artística, que guardava no espaço interior do cruzamento dos dois braços, um pequeno bocado, ensanguentado, da madeira da cruz onde Jesus Cristo fora crucificado. Da cruz original, onde Jesus Cristo falecera, que fora descoberta no Monte do Calvário, em Jerusalém, no século IV por Santa Helena, mãe do imperador romano Constantino I. Essa cruz de madeira tinha sido repartida entre o oriente e o ocidente e distribuída ao longo dos séculos em pequeníssimos fragmentos por toda a cristandade. A Cruz do Santo Lenho, das mais antigas da cristandade, deveria estar ainda na posse de João IV Lascaris. A Cabeça-Relicário de S. Fabiano era uma cabeça antropomórfica em prata, de tamanho natural, que diziam conter no seu interior um crânio humano, que afirmavam ser do papa mártir S. Fabiano.
Estes objectos sagrados teriam ido de Roma para Constantinopla no ano de 974, levados pelo anti-papa Bonifácio VII, quando foi expulso de Roma pelo imperador Otão II, do Sacro-Império Romano-Germânico, que havia escolhido Bento VII para papa. Quando da divisão do império do oriente, em 1204, parte desses tesouros sagrados tinham ficado na posse dos imperadores de Niceia e o primeiro dos imperadores tinha sido Teodoro Lascaris. E desde essa altura os Lascaris tinham sido os fiéis depositários e guardadores de vários desses objectos sagrados. Coisas que à partida pareciam demasiado importantes para uma simples princesa bizantina, dama de companhia e aia das rainhas dona Isabel de Portugal e dona Constança de Castela. Mas seria que seu tio ainda as guardaria? E a expulsão de sua mãe, por seu pai, de Ventimiglia, a que se deveria? Com muitas dúvidas e muitas interrogações no pensamento Vataça Lascaris deixava-se dormir, já tarde, nessa noite, em Barcelona..., com o pensamento em sua mãe, que tinha feito um esforço enorme para lhes contar todas estas coisas que tanto a atormentavam. Até parecia que não queria morrer enquanto as não tivesse contado a seus filhos..., coitada..., estava tão fraquinha... No dia seguinte, já mais animada Eudóxia Lascaris continuou a contar a todos a história da família. Tudo começara com a quarta cruzada à Terra Santa, convocada em 1202 pelo papa Inocêncio III, com o apoio económico e financeiro da cidade de Veneza, que em vez de se dirigir a Jerusalém, como era suposto, se dirigiu a Constantinopla onde desferiu um ataque selvático à cidade. Disse-se então que esse ataque à capital do império romano do oriente fora em larga medida um correctivo às tendências independentistas e hereges dos clérigos do império do oriente, cuja ortodoxia vinha de há muito incomodando Roma. Em consequência, o imperador bizantino Alexius V fugiu de Constantinopla e os cruzados, que eram comandados pelo rei Balduíno da Flandres, criaram aquilo a que chamaram o novo Império Latino e instalaram-se na cidade.
O controlo de Balduíno sobre o império bizantino era muito reduzido e a oposição que sofreu não tardou a gerar o surgimento de vários outros estados imperiais que dominaram durante muitos anos toda a Anatólia e a parte norte da Grécia. Foram criados os novos estados do Epiro, no território junto ao mar Adriático, em terras gregas e albanesas. O estado de Trebizonda, no território mais oriental a sul do mar Negro e o estado de Niceia, na Bitínia, cuja cidade do mesmo nome, ficava na longitude de Constantinopla, no território ao su1 do mar de Mármara. Destes vários estados, Niceia era o que estava em melhores condições para o restabelecimento do poderoso império bizantino. E assim aconteceria». In Francisco do Ó Pacheco, Vataça, A Favorita de Dom Dinis, Prime Books, 2013, ISBN 978-989-655-183-4.

Cortesia de PBooks/JDACT

sexta-feira, 24 de abril de 2015

A Favorita do rei Dinis. Vataça. Francisco do Ó Pacheco. «Além disso quer uma fonte que jorrava água pela boca de uma sereia, em cima de uma onda com mais de uma vara de altura, quer o miradouro que contemplava o mar, eram circundados por colunas brancas de mármore»

jdact e wikipedia

«(…) O palácio de Beatriz Lascaris, irmã mais nova, que havia casado com Guilherme de Montcada, senestral ou chefe da nobreza local de Barcelona, e antigo bispo de Lérida, ficava admiravelmente frente ao mar Mediterrâneo. Havia sido uma antiga vila romana e a presença de inúmeras colunas de pedra com bases e capitéis, trabalhados artisticamente, à volta do edifício principal, era disso bem demonstrativo e sintomático. Além disso quer uma fonte que jorrava água pela boca de uma sereia, em cima de uma onda com mais de uma vara de altura, quer o miradouro que contemplava o mar, eram circundados por colunas brancas de mármore, mais finas e elegantes, que sobressaíam dos verdes dos arbustos e dos tons variados das flores, de forma quase paradisíaca. Entrou na câmara de sua mãe onde já se encontravam todos os seus oito irmãos. Quatro do casamento de Eudóxia Lascaris com o conde Guillermo Pedro de Ventimiglia, de Ligúria, outros quatro do segundo casamento com Arnauld Roger de Comminges. Dois homens apenas, Juan Lascaris de Ventimiglia e Arnauld de Comminges e sete mulheres, Lucrécia, Beatriz, Vataça e Violante Lascaris e Sibila, Beatriz e Violante de Comminges. Com uma alegria contida, Vataça, cumprimentou todos os seus irmãos e depois dirigiu-se ao leito onde sua mãe descansava. Os reposteiros das janelas de cor púrpura estavam corridos para que a luz do dia não incomodasse a enferma. As cortinas do leito, brancas de seda, estavam levantadas de ambos os lados permitindo que Eudóxia visse a porta de entrada.
O vulto de seu corpo quase não se percebia por debaixo das mantas e dos lençóis. Logo que viu sua filha Vataça, Eudóxia levantou os braços vagarosamente na sua direcção. Caminhando para eles com passadas largas, Vataça segurou as mãos frias de sua mãe, que apertou suavemente. Depois beijou-lhe as faces longamente e não evitou algumas lágrimas sentidas. Com todos os filhos à volta da cama Eudóxia não parava de contemplar as suas meninas e os seus meninos, que fazia tanto tempo, alguns, já não via. Choraram muito de alegria e agora também de preocupação com o estado de saúde de sua mãe que conversava muito tremulamente e por vezes atabalhoadamente, como se quisesse tudo dizer, no mais curto espaço de tempo. A sua voz sumia-se de emoção de vez em quando e Eudóxia parava e fechava os olhos para recuperar forças. Enquanto a mãe descansava, Vataç aproximava-se das vidraças donde se avistava o movimento do porto e as várias galés ou galeras de dois e três mastros que aguardavam por acesso ao cais para descarga das mercadorias que enchiam os seus porões. Alguns galeões, de quatro mastros e velame amarrado e recolhido nas vergas, estavam ancorados um pouco mais ao largo. Várias dezenas de naus e muitas centenas de pessoas enchiam então o porto de Barcelona que se assumia como um dos mais importantes pólos da economia mediterrânica.
A certa altura da sua conversa Eudóxia Lascaris franziu o semblante e foi assertiva nas palavras que proferiu. Vataça e seus irmãos, algo surpreendidos, prestaram a maior atenção. Pretendia ela que algum ou alguns de seus filhos se deslocassem a Niceia ao encontro de seu tio João IV Lascaris. Este tinha sido o último imperador de Niceia, quarenta e três anos atrás, em 1261. Ainda muito novo, com apenas 11 anos de idade, João Lascaris vira o trono ser-lhe usurpado por Miguel VIII Paleólogo, a que se seguiu o fim do império de Niceia e a reconstituição do império bizantino, de novo com capital em Constantinopla. Tinham que ir a Niceia, dizia Eudóxia com a veemência possível, fixando o olhar em Vataça. Alguém tinha que regressar ao império Bizantino e encontrar o tesouro dos Lascaris, especialmente a Cruz do Santo Lenho e a Cabeça-Relicário de S. Fabiano que deveriam estar na posse do tio João Lascaris. Porque ela, Eudóxia, com a idade avançada que já tinha, estava com 50 anos e com uma grave doença que a martirizava, já sentindo o fim aproximar-se, jamais o poderia fazer. Seus filhos e suas filhas, sim». In Francisco do Ó Pacheco, Vataça, A Favorita de Dom Dinis, Prime Books, 2013, ISBN 978-989-655-183-4.

Cortesia de PBooks/JDACT

segunda-feira, 6 de abril de 2015

A Favorita do rei Dinis. Vataça. Francisco do Ó Pacheco. «… a princesa bizantina aia da rainha dona Constança na corte de Castela, recebia no palácio real de Toledo um mensageiro desconhecido, vindo de Barcelona, enviado por sua irmã Beatriz»

jdact

«(…) Das tais guerras que começam sem se saber bem porquê, mas que acabam quase sempre bem mal para os contendores. Alguns anos antes, Sancho IV de Castela mandara invadir o Algarve e outros lugares de Portugal, na raia da Beira. Pequenas acções de guerrilha em zonas de fronteira, coisas de pouca monta e para as quais o rei de Portugal já estava avisado. Mas a atitude militar mais grave, pela parte de Sancho, fora o envio de uma esquadra a partir de Sevilha, que penetrando na foz do rio Tejo apresou várias naus portuguesas, no ancoradouro do Restelo. Essa foi uma provocação e uma agressão intoleráveis para o rei português. A resposta de Dinis I foi a invasão do território de Castela, de Cidade Rodrigo a Valadolid e a Medina del Campo. Em resposta, os castelhanos invadiram o Alentejo e Dinis voltou a novas e mais violentas agressões contra Castela. Até que, depois de longos meses de guerra e de muitas e graves destruições em ambos os reinos, a paz foi assinada em Alcanizes. Desse acordo, para o qual muito contribuiu a influência da rainha dona Isabel de Aragão, resultou a troca de muitas terras entre os dois reinos, tendo Castela recebido Arronches no Alentejo e Valença do Minho e ainda Aiamonte no Algarve. Portugal recebeu então, por força do tratado assinado em Alcanizes, Monforte, Olivença e Campo Maior e nas Beiras, Almeida, Castelo Rodrigo e Castelo Melhor. Além disso, o tratado de Alcanizes determinou ainda os casamentos de Afonso de Portugal, filho de Dinis I e de don Isabel, com Beatriz de Castela e de Fernando IV de Castela com Constança, filha dos reis de Portugal.
No rigoroso Inverno de 1304, em ventoso dia do mês de Fevereiro, Vataça Lascaris, a princesa bizantina aia da rainha dona Constança na corte de Castela, recebia no palácio real de Toledo um mensageiro desconhecido, vindo de Barcelona, enviado por sua irmã Beatriz. O jovem cavaleiro catalão, Manolo Ratia de seu nome, comunicou-lhe a enfermidade muito grave de sua mãe e entregou-lhe uma carta em que esta pedia que se deslocasse urgentemente a Barcelona pois era, dizia sua mãe, absolutamente imperioso que falasse com suas filhas e seus filhos antes de se finar se porventura fosse essa a vontade de Deus. Vataça Lascaris ficou aflitíssima. Sentiu um ligeiro estremeção no corpo, que a assustou por nunca o haver sentido anteriormente e de imediato pôs dona Constança ao corrente do sucedido. Não havia tempo a perder. Logo mais Fernando de Castela colocou à sua disposição uma guarda especial de uma dezena de homens e um dos coches reais e no dia seguinte Vataça Lascaris encetava a viagem para Barcelona de Aragão e Marca Hispânica, onde sua mãe se encontrava enferma, em casa de sua irmã Beatriz Lascaris. Alguns dias depois o coche que transportava Vataça escoltado pela guarda do rei de Castela, denunciando a presença de gente de estirpe real no seu interior, atravessava os portões das muralhas que rodeavam a cidade de Barcelona e com o cavaleiro Manolo Ratia como guia percorreram rapidamente as ruas e praças que os conduziram ao palácio onde se encontrava sua mãe, Eudóxia Lascaris. Após a praça enorme onde centenas de artesãos, pedreiros, canteiros e muitos trabalhadores braçais procedia à construção da catedral gótica de Santa Eulália ou de Santa Cruz e onde pululava um pequeno mercado de feirantes e agricultores, com as suas criações de aves a voarem por debaixo das patas dos cavalos, Manolo Ratia entrou no terreiro do palácio indicando aos soldados os estábulos para os animais e as casas onde iriam permanecer, enquanto ficassem por Barcelona. Vataça e suas aias entraram no palácio». In Francisco do Ó Pacheco, Vataça, A Favorita de Dom Dinis, Prime Books, 2013, ISBN 978-989-655-183-4.

Cortesia de PBooks/JDACT

quinta-feira, 19 de março de 2015

A Condessa Cega e a Máquina de Escrever. Carey Wallace. «Ela já não conseguia reconhecer figuras numa dança enquanto não se voltasse directamente para elas. A sua vista sofreu uma contracção, como se algum espírito invisível tivesse colocado as mãos em concha de cada lado de sua cabeça»

jdact e wikipedia

Uma história da Itália do século XIX
«(…) Naquela Primavera, sua mãe insistiu com seu pai para que construísse alguma espécie de abrigo na margem, e ele ergueu uma cabana de um único cómodo, de madeira sem pintura, tingida de vermelho, a alguns passos da água. A luz penetrava na cabana através das vidraças das janelas instaladas nas quatro paredes. Uma colecção de tapetes gastos cobria o assoalho, a mobília era escassa: um velho sofá recoberto com colchas de retalhos de veludo, uma escrivaninha e uma cadeira. O cómodo era pequeno. Parado no centro dele, com os braços estendidos, o pai de Carolina quase podia tocar as duas paredes. Uma lareira aberta ao pé de uma fina chaminé e protegida por uma tela ornamentada com sereias de bronze, outro presente bem-intencionado, mas mal sucedido, de seu pai para sua mãe, que considerava todo lembrete do mar não um conforto, mas um motivo de pesar. Depois que a cabana foi construída, a casa grande perdeu inteiramente o interesse para Carolina. Ela passava mais noites do que restava de sua infância no sofá da cabana do que na própria cama, enterrada como um rato do mato de olhos negros em pilhas de veludo grosso, ou nua no calor do sol de verão deixado como recordação depois do anoitecer. Nas noites quentes, ela escancarava as janelas e pregava xailes finos sobre elas para barrar os insectos. Do lado de fora, as rãs e os pássaros cantavam suas bazófias, esperanças e ameaças. Por ter conhecido o lago pela primeira vez com os olhos de uma criança, Carolina acreditou por algum tempo que o facto de já não poder abarcar o lago inteiro com um único olhar fosse apenas mais uma das muitas peças que seu corpo lhe pregara na misteriosa operação de transformá-la em uma moça. A igreja, a distância até a cidade e a grandiosa extensão antes infinita do salão de baile, tudo havia encolhido conforme ela crescia. Por que haveria de ser diferente com o lago? Mas pouco depois de ter completado dezoito anos, mais ou menos na época em que ela e Pietro ficaram noivos, o problema com o foco nas bordas do seu campo de visão aumentou significativamente. Ela já não conseguia reconhecer figuras numa dança enquanto não se voltasse directamente para elas. Ao mesmo tempo, a sua vista sofreu uma contracção, como se algum espírito invisível tivesse colocado as mãos em concha de cada lado de sua cabeça, bloqueando a sua visão à direita e à esquerda. O resto se perdia na escuridão.
Turri, é claro, compreendeu imediatamente. Ele ergueu as mãos nos dois lados do próprio rosto. Assim?, ele perguntou. Carolina balançou a cabeça afirmativamente. Por um instante, seus olhos azuis arregalaram-se de preocupação. Então, mudaram. Ele continuou olhando directamente para ela, mas o foco do seu olhar estava em algo muito para além dela, a sua mente percorrendo os livros de uma biblioteca invisível. Carolina detestava aquela expressão: às vezes, passava num instante, mas geralmente significava que ela o perdera para os seus pensamentos pelo resto da tarde. Por agora, entretanto, ele ainda reunia provas. Há quanto tempo?, ele quis saber. Meio ano, ela respondeu. Desde antes do Natal. Além da seda pregada nas janelas da casa do lago, um pássaro de verão entoou algumas notas, em seguida recaiu em silêncio. Já li sobre isto, comentou Turri. A cegueira pode vir dos cantos ou do centro. Do centro?, repetiu Carolina. Como um eclipse, no centro da sua visão. Mas é permanente. E a escuridão expande-se a partir daí. Mas no meu caso está vindo de fora, declarou ela. É o outro tipo. Lágrimas assomaram aos olhos de Carolina. Ela deixou que turvassem a vista, grata por uma cegueira que podia limpar com um movimento do pulso. Quando as lágrimas passaram, Turri permaneceu sentado, fitando-a, como se ela fosse um novo problema de matemática. Quanto tempo?, ela perguntou. Tenho certeza de que varia em cada caso. Quando ela não desviou os olhos, ele abaixou os seus. Posso descobrir, disse Turri. Obrigada. Já contou a Pietro?, ele perguntou. Ela balançou a cabeça, confirmando. Turri analisou-a por mais um instante, em seguida deu uma risada curta. Mas ele não sabe. Ela meneou a cabeça, indicando que não. Turri tomou a sua mão. Desta vez, ela permitiu.
Carolina e Turri encontraram-se pela primeira vez quando ela era uma menina de seis anos e ele tinha dezasseis. A sua mãe decidira naquela primavera que Carolina já tinha idade suficiente para comparecer ao baile da floração dos limoeiros de seu pai, que ele realizava todos os anos quando os seus arvoredos de folhas enceradas explodiam em flores, para assinalar a sua gratidão ao novo sol da primavera, aos santos ou a quaisquer deuses que ainda pudessem estar à espreita nas velhas colinas. Carolina tivera permissão de escolher o tecido de seu próprio vestido: um brocado azul da cor do ovo de um pintarroxo, enfeitado com renda branca da exótica e inconcebivelmente distante Suíça. Ela passou uma dúzia de tardes no ateliê da costureira, onde o ar era denso de partículas cintilantes de poeira e do aroma de lírios e flores de manjericão que vinha do aposento ao lado, onde as criadas arrumavam as flores que tinham colhido no quintal. Enquanto Carolina observava, a velha e paciente senhora cortou o tecido para o corpete e para a pequena saia em forma de sino, depois alinhavou tudo, trazendo à vida o traje em miniatura, a agulha nos seus dedos tortuosos passando a linha pelas dobras do tecido com tal rapidez que Carolina às vezes a perdia de vista.
Quando o vestido ficou pronto, três dias antes da festa, Carolina teve medo de morrer de alegria. A velha senhora pendurou-o no seu armário, onde ele brilhava ao sol da manhã como um pedaço do céu. Durante aquelas três noites, Carolina só conseguiu dormir espasmodicamente. Frequentemente, deslizava da cama para se certificar, pelo tacto, de que o vestido ainda estava lá e que ela não estava sendo enganada pelos seus sonhos, como tantas vezes acontecia. Embora tivesse permanecido de pé por muitas horas sem se queixar, enquanto o vestido era medido e ajustado, ela recusou-se a experimentá-lo depois de terminado, em parte guardando a ocasião como guardaria uma bala no bolso até o final do dia e em parte aterrorizada com a desconhecida, mas sem dúvida profunda mudança que se passaria com ela no instante em que o vestisse». In Carey Wallace, A Condessa Cega e a Máquina de Escrever, tradução de Geni Hirata, Editora Rocco, 2011, ISBN 978-853-252-713-4.

Cortesia de Rocco/JDACT

A Igreja Sueva de São Martinho de Dume. Luís Fontes. «… potenciando a sua integração, com outros monumentos da época, num circuito da “Braga Cristã Antiga”. O visitante poderá não só observar o monumento funerário, como fazer uma ‘viagem no tempo’, circulando em cave pelo adro e interior da igreja»


jdact e cortesia de uaum/lfontes

Arquitectura Cristã Antiga de Braga. Antiguidade Tardia do Noroeste de Portugal
«(…) No mais vasto território bracarense, a revisão crítica da documentação e da bibliografia, a par de novos achados arqueológicos, proporcionam uma nova leitura da ocupação e organização do território, até hoje insuspeita. Mais abundantes e dispersos por toda a região do entre Douro-e-Minho, são os inúmeros locais correspondentes a povoados que oferecem testemunhos arqueológicos de ocupação continuada até à alta Idade Média: Cantelães, Parada de Bouro, Pandozes e Rossas, em Vieira do Minho; Lindoso, em Ponte da Barca; Lanhoso, Calvos e São João de Rei, em Póvoa de Lanhoso; Beiral do Lima, Facha, Boalhosa, Santo Ovídio e Santa Cruz do Lima, em Ponte de Lima; Santa Eulália de Águas Santas, Faria, Arefe, Lousado, Cristelo, Martim, Vila Cova e Abade de Neiva, em Barcelos; Cendufe, Eiras, Giela, Tavares, Parada e Santa Maria do Vale, em Arcos de Valdevez; Vila Mou, Areosa, Carmona e Santa Luzia, em Viana do Castelo; Lovelhe, em Vila Nova de Cerveira; Alvaredo, Paderne e Castro Laboreiro, em Melgaço (Fontes 2009). Se a estes vestígios, a que acrescem todos os outros, acrescentarmos as referências toponímicas de antroponímia genitiva, isto é, relativa a possessores ou proprietários, reconhecidamente anteriores ao domínio árabe na Península (Fernandes 1990), ficaremos com um quadro bem mais aproximado da densidade de ocupação do território durante os séculos V-VII.
No vasto território entre os rios Minho e Douro, os grandes povoados fortificados (os castra-castella de Idácio), são omnipresentes. Embora alguns devam ser de fundação contemporânea do domínio suevo-visigótico, a maior parte são de fundação bem mais antiga, ainda anterior ao domínio romano. Com ocupação continuada ou interrompida, esses povoados abrigaram as populações que, fortemente rarefeitas pelas fomes e pestes do século VII, sobreviveram aos tempos incertos de desarticulação do poder no século VIII e que no século seguinte viriam a sustentar o novo esforço de organização protagonizado pela expansão asturiana.
Abandonados definitivamente a partir dos séculos X-XI, continuaram a servir de referencial na localização das propriedades e na delimitação de termos durante toda a Idade Média. Ainda hoje chamados castros, permanecem agora envoltos em lendas de mouras encantadas, que parecem proteger as suas ruínas, até que alguém desvende os seus mistérios e construa as suas memórias.

O projecto de valorização das ruínas arqueológicas de Dume
Culminando um longo processo de petições e requerimentos, já iniciado em 1919 de modo informal, aquando da retirada do Túmulo dito de São Martinho de Dume da capela-mor da igreja paroquial de Dume, e mais formalmente desde 1981, foi superiormente determinado, por despacho do SEC, de 20 de Novembro de 1982, que se procedesse à instalação do referido túmulo na paróquia, devendo para o efeito serem criadas as condições indispensáveis. Entre 1987 e 1991, na sequência quer das obras de restauro da capela de NSª do Rosário, como da ampliação da igreja paroquial de Dume, realizaram-se escavações arqueológicas, financiadas pelo governo central através do ex-Instituto Português do Património Cultural e pela Fundação Calouste Gulbenkian, no subsolo do adro e no interior da igreja, colocando-se a descoberto um importante conjunto de vestígios da época de São Martinho de Dume. A importância e valor histórico, cultural e científico das ruínas arqueológicas de Dume, correspondentes aos vestígios da basílica cristã mandada construir pelo rei suevo Charrarico, em meados do século VI e de parte do mosteiro fundado por São Martinho de Dume, eaproveitando parte de uma uilla romana, da qual se conserva a totalidade da planta de um balneário, levaram à consideração, já em 1991, de que a instalação do túmulo dito de São Martinho de Dume na freguesia se deveria associar à conservação e valorização das ruínas arqueológicas descobertas em torno da igreja paroquial de Dume, abandonando-se o projecto inicial de colocação na capela de NSª do Rosário, a qual se veio a considerar inadequada.
Esta valorização deveria contemplar, numa 1.ª fase, a construção de raiz de um edifício para albergar o Túmulo dito de São Martinho de Dume e para funcionar como centro de recepção ao Núcleo Arqueológico de São Martinho de Dume, numa 2.ª fase, a criação de um percurso museológico entre o novo edifício e a igreja, à menor cota possível, isto é, sob o actual adro, de modo a proporcionar uma visita às ruínas conservadas; numa 3.ª fase, será completado o circuito com a valorização do balneário romano. Cumprindo todas as formalidades legais, que contemplaram a aprovação do projecto pelo Instituto Português do Património Arquitectónico, após escavações arqueológicas prévias entre 2003 e 2005 e satisfação dos requisitos de funcionalidade e de segurança estabelecidos pelo Museu Regional de Arqueologia Diogo Sousa, construiu-se em 2006, com financiamento do Município de Braga, o edifício para albergar o Túmulo dito de São Martinho Dumiense. Com este equipamento, inaugurado no dia 6 de Agosto (dia da festa litúrgica de São Martinho de Dume), pretendeu a JF de Dume criar um pólo destinado a fins culturais e lúdicos, funcionando como centro de interpretação do conjunto de ruínas arqueológicas de Dume, podendo albergar exposições, recepcionar visitas organizadas de público escolar e público indiferenciado mas também de especialistas em Arqueologia e História, potenciando a sua integração, com outros monumentos da época, num circuito da Braga Cristã Antiga. O visitante poderá, assim, no futuro, não só observar o monumento funerário, como fazer uma espécie de viagem no tempo, circulando em cave pelo adro e interior da igreja, vendo ruínas da uilla romana e do mosteiro e basílica suevas». In Luís Fontes, A Igreja Sueva de São Martinho de Dume, Arquitectura Cristã Antiga de Braga e na Antiguidade Tardia do Noroeste de Portugal, Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho, Revista de História da Arte, 2008.

Cortesia da UAUAveiro/JDACT