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terça-feira, 31 de outubro de 2023

No 31. Volker Reinhardt. Alexandre VI. «… estava também fora de questão que ele, como pai de todos os cristãos, contanto que fosse para defender os interesses da Igreja, tivesse o direito de pôr limites nas acções do rei, seu antigo patrão»

Cortesia de wikipedia e jdact

De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgias

«A nomeação de Rodrigo a bispo de Valência elevou ainda mais a sua posição e aumentou seus rendimentos. E, pouco depois, ao elevado posto dentro da Igreja, juntou-se também uma posição de liderança secular. Calisto III nomeou seu talentoso sobrinho, sem a menor cerimónia, como capitão das tropas papais na Itália. Um cardeal como general: isso foi uma ofensa para muitos. A enorme quantidade de postos atribuídos a outro sobrinho, Pedro Luís, irmão de Rodrigo, também provocou escândalos. Ele recebeu numerosos cargos no Estado Pontifício, entre eles a castelania do Castelo de Santo Ângelo. Como resultado, passou a comandar a inexpugnável fortaleza da cidade de Roma: uma prevenção para os tempos de crise.

Pedro Luís, que estava destinado a ser o herdeiro da aristocrática dinastia Bórgia, ganhou, acima de tudo, os feudos que tinham sido perdidos pelos barões romanos. Indo ao encontro desses propósitos, especialmente nos territórios dos Orsini, foram tomados todos os castelos, com seus respectivos direitos de jurisdição, tributação e recrutamento de tropas. A sua amargura foi ainda maior quando o cardeal Orsini, o fazedor de papas, contabilizou recompensas no lugar de desapropriações. Calisto derrotou os Orsini, mas o que ele queria mesmo era atingir seu patrão, o rei Afonso. As suas relações com Nápoles tinham piorado rapidamente.

A exigência do monarca de continuar a condescender com ele nos âmbitos políticos do clero, ou seja, nomear candidatos convenientes para o bispado e conceder lucrativos prestimónios ao seu protegido, foi considerada um atrevimento e, por isso, recusada. O papa já não tinha a menor predisposição para esses servicinhos de capelão. A situação progrediu de tal maneira que chegou a recusar favores a Afonso, favores esses que concedia em provocante abundância aos membros de sua família.

Divergências políticas importantes agravaram a contenda. Calisto acreditava ter identificado, na táctica dilatória de Nápoles, o principal obstáculo para a realização de seu grande plano, que era reprimir os otomanos. No Outono de 1457, o rei ameaçou o papa com concílio e deposição; este, por sua vez, ameaçou o rei com privação de enfeudamento. De repente, como em uma poderosa encenação teatral, no ápice do conflito, um dos dois protagonistas retirou-se do palco. Em 27 de Junho de 1458, morreu Afonso V, de cognome o Magnânimo. Mesmo com idade avançada, seu adversário começou a entrar em acção. Ele proibiu o filho ilegítimo de Afonso, Fernando de Aragão, mais conhecido como Dom Ferrante, sucessor designado para a região continental do sul da Itália, de usar seu título de rei. Revogou ainda o juramento de fidelidade de seus súbditos e assumiu o reino como um feudo que fora devolvido à Igreja.

Ao mesmo tempo, o papa concedeu a Pedro Luís a função de comandante supremo das tropas que liderariam a inevitável guerra contra Nápoles. Além disso, transferiu para seu sobrinho o vicariato de Benevento e Terracina, que tinha sido ocupado pelo falecido monarca. O nepote regia esse enclave romano no reino de Nápoles, como o título mesmo indica, literalmente como substituto do papa; a experiência demonstrou, contudo, que esses vicariatos, de facto, transformaram-se rapidamente em grandes domínios autónomos. Como já mostrado no drástico agravamento das relações com os Orsini, essa concessão demonstrava também o que os Bórgia realmente tinham em vista: o trono de Nápoles.

Isso revelava uma crescente cobiça e, ao mesmo tempo, um momento crucial na história do papado. No Verão de 1458, iniciou-se a fase do nepotismo territorial. A partir disso, foram muitos os papas dispostos a correr quaisquer tipos de risco para tentar conquistar um território cada vez maior e mais independente como estado de família e, com isso, precipitar o panorama político da Itália em um abismo de turbulências. Era a coisa mais natural do mundo para os contemporâneos daquela época que um papa deixasse de ser aquilo que tinha sido como cardeal, ou seja, um servo fiel de seu Senhor. Em outras palavras: ninguém contestou o direito de Calisto estabelecer novas bases para as relações com Nápoles. De acordo com as elevadas exigências de seu posto, estava também fora de questão que ele, como pai de todos os cristãos, contanto que fosse para defender os interesses da Igreja, tivesse o direito de pôr limites nas acções do rei, seu antigo patrão.

No entanto, um corte abrupto de todos os laços, uma ruptura tão grosseira de todas as esferas de lealdade, como sucedeu em Julho de 1458, quando o papa negou todo e qualquer apoio a Ferrante, violou não só o sentimento de justiça, mas também a decência política. Uma coisa dessas não se fazia assim tão facilmente. Isso não foi apenas uma violação a todas as normas de piedade, mas também contra o espírito de Lodi. Além do mais, por trás de tudo isso via-se um insólito véu de arrogância. Quem eram, afinal, esses Bórgia para se sentar no trono da casa real dos Aragão?» In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o Papa Sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9.

Cortesia de EEuropa/JDACT

JDACT, Vaticano, Religião, Volker Reinhardt,

domingo, 29 de outubro de 2023

Volker Reinhardt. Alexandre VI. «Do ponto de vista do rigoroso moralista, para o qual o papa não tinha parentes consanguíneos, mas apenas espirituais, e precisamente em todos os lugares…»

Cortesia de wikipedia e jdact

De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgias

«Assim, em 8 de Abril de 1455, foi cumprida a profecia de Vicente Ferrer, e Alonso de Borja subiu ao trono de Pedro como Calisto III. Como todos sabiam, ele era um homem com família. Em outras palavras: o que não faltavam eram potenciais nepotes. O facto de os eleitores não terem visto isso como um obstáculo está possivelmente relacionado ao problema de o nepotismo ser considerado, em grande parte, coisa do passado, não apenas por meio da moderação imposta pelos próprios papas, mas também pela delicada pressão por parte do cardinalato.

Ambos tinham contribuído para que, nos dois últimos pontificados, não tivessem sido observadas situações desagradáveis a esse respeito. O papa recém-eleito poderia nomear cardeal um sobrinho qualquer ou, se necessário, melhorar o estilo de vida de parentes mais próximos. Assim versavam as regras vinculativas de decência que se orientavam em uma categoria aristocrática de nepotes, mas de forma alguma principesca ou mesmo dominante. Comparado ao nepotismo igualmente aventureiro e caótico de Bonifácio IX (1389-1404), que concedeu a seus numerosos parentes napolitanos metade da região do Lácio, como também abundantes prestimónios, isso já era um passo à frente. A inviolabilidade desses padrões precisava, no entanto, ser colocada à prova.

Desse modo, todas as atenções se voltaram ao idoso homem de Xátiva e seus jovens sobrinhos. Do ponto de vista do rigoroso moralista, para o qual o papa não tinha parentes consanguíneos, mas apenas espirituais, e precisamente em todos os lugares onde reinavam o mérito e o merecimento, o início foi marcado por uma positiva surpresa. No começo, fez-se pouco em termos de apoio à família. Rodrigo Bórgia e seu primo Luís Juan de Mila foram agraciados com lucrativos benefícios, mas permaneceram estudando Direito em Bolonha. Porém, a alegria dos zelanti, que eram os reformadores zelosos, não iria durar muito. Em Fevereiro de 1456, a nomeação simultânea de Rodrigo e Luís Juan de Mila a cardeais pôs fim a todas as esperanças de conter o nepotismo. Pior ainda: estava violada a regra mais importante da ainda recente autorrestrição. Acrescente-se a isso que esses dois chapéus vermelhos foram só o começo. Calisto III tinha agora pressa em elevar o prestígio de sua família. Provavelmente, temia já ter esperado demais. Aparentemente, os escrúpulos iniciais que se opuseram à promoção intensiva de seus parentes de sangue tornaram-se obstáculos definitivamente eliminados. Só é possível presumir de que maneira se deu essa mudança de atitude: por sugestões ao pé do ouvido de conselheiros que perseguiam seus próprios interesses, mas provavelmente também pelos pedidos ou exigências dos próprios sobrinhos.

Esses não podiam agora se queixar da moderação de seu tio. O mais enérgico e persuasivo dos dois novos purpurados, Rodrigo, tornou-se vice-chanceler em 1457, passando a ocupar o mais importante e lucrativo posto dentro da cúria depois do papado. As tarefas associadas a essa função consistiam em cuidar da torrente de solicitações de concessão de indulgências que chegavam a Roma vindas de toda a cristandade. O papa reservava-se o direito de tomar decisões apenas em casos ligados a círculos políticos mais amplos, mas, geralmente, apreciava essas causes célèbres depois de uma prévia avaliação de seu vice-chanceler. Dessa maneira, esse último assumiu uma posição-chave. A jurisdição clerical estava longe de ser apenas responsável por litígios dentro do clero, mas também por grande parte do direito da família e do casamento.

Nesse domínio sensível, os canonistas tinham criado uma infinidade de obstáculos, restrições e proibições que exigiam decididamente a concessão de derrogações. Era imensa a necessidade de concessão de graças e indultos, ou seja, dispensas provenientes dessas complicadas regras. Em outras palavras: no palácio do vice-chanceler convergiam laços, por meio dos quais era possível estabelecer ligações com os poderosos de todo o planeta. Permissão para casar, apesar do grau de parentesco muito próximo, legitimação de filhos bastardos, absolvição de promessas incómodas: tudo isso tinha o seu valor de contrapartida e sua utilidade. E, principalmente, o vice-chanceler passou a ter acesso irrestrito a desagradáveis segredos que os poderosos não queriam que se tornassem públicos». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o Papa Sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9.

Cortesia de EEuropa/JDACT

JDACT, Vaticano, Religião, Volker Reinhardt,

Volker Reinhardt. Alexandre VI. «… um pontífice já idoso e de carácter bem consolidado parecia oferecer melhor garantia para combater a ascensão vertiginosa de determinados grupos ao poder apostólico…»

Cortesia de wikipedia e jdact

De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgias

«(…) Outro evento causou ainda maior admiração do que o final das hostilidades entre Inglaterra e França. Em 29 de Maio de 1453, o sultão Maomé II conquistou Constantinopla e exterminou, assim, os últimos resquícios do Império Bizantino. O susto provocado contribuiu para que Nicolau V alcançasse um bom êxito no seu empenho de resguardar a estabilidade política na Itália. Por meio dos acordos fixados em Lodi, na Itália, em 1454 e 1455, foram criadas estruturas federais que deveriam engendrar a manutenção da paz por meio da reconciliação de interesses. No entanto, a estrutura complexa dos numerosos estados com seu complicado emaranhado de sistemas, com diversas relações de protecção e dependência, permaneceu, também no futuro, altamente susceptível a interferências. Só era possível instaurar o equilíbrio se, pelo menos, as cinco principais potências praticassem uma política permeada por prudência e ponderação.

Os acordos exigiam, assim, a contenção de todos, principalmente do papado. O lema da modernidade era abdicar do nepotismo excessivo. Nicolau V respeitou essa regra. Será que seu sucessor iria fazer o mesmo? Após a morte do primeiro papa humanista, o conclave se reuniu primeiramente com 14 e, em seguida, com 15 cardeais; jamais o número de eleitores de um conclave voltou a ser tão baixo. Os italianos, que contavam com sete purpurados, detinham uma exígua maioria. O segundo grupo mais forte era o dos espanhóis, com quatro representantes. Esses últimos, contudo, não chegavam a representar uma ameaça tão grande como os franceses, embora esses só estivessem representados com dois príncipes da Igreja.

Os eloquentes humanistas italianos eram considerados bárbaros por excelência e os prelados italianos, uma ameaça para o papado. Será que iriam transferir a cúria novamente para Avignon, que durante 1309 e 1377 tinha sido a residência papal, em detrimento da Cidade Eterna?

Não foram apenas essas preocupações e o precoce nacionalismo que moldaram a eleição do novo pontifex maximus. Como era comum havia muito tempo, a rivalidade entre os Colonna e os Orsini exercia forte influência sobre as formações partidárias do conclave. Com suas vastas e, de facto, autónomas propriedades feudais, esses dois clãs da aristocracia dominavam, desde o século XIII, não apenas a paisagem rural romana, mas também a região de fronteira com Nápoles, sem falar na própria Cidade Eterna. No conclave, cada linhagem apresentou um cardeal e este permaneceu rodeado pelos seguidores da respectiva família. Uma vez que o poder de ambas as partes equiparava-se, não foi possível fazer valer a força de seu respectivo preferido.

Foi inevitável, portanto, proceder à busca de um candidato de conciliação. O cardeal Bessarion, com sua elevada formação filológica e teológica, bem como seu estilo de vida exemplar, ofereceu-se como tal. Mas rapidamente pairou no ar uma espécie de xenofobia, mais exactamente grecofobia. Um grego como papa? A união da Igreja Ortodoxa com a Igreja Católica não fora realizada pura e simplesmente pela força das circunstâncias, ou seja, pela ameaça iminente da queda de Constantinopla? Era possível confiar realmente na ortodoxia desse príncipe estrangeiro da Igreja?

Alonso de Borja, nesse aspecto, estava completamente fora de suspeitas. Além disso, como espanhol, ele representava a Reconquista, a batalha de fé contra os mouros. Dentro das circunstâncias altamente tensas e de confinamento espacial do conclave, o regresso a esses antigos motivos que, depois de 1453, passaram a ser novamente actuais, desempenhava um papel muito importante. O factor decisivo, no entanto, foi que, com a elevação a papa do homem de Xátiva, o impasse foi resolvido e foi adiada provisoriamente a decisão sobre o desenvolvimento no longo prazo da situação do poder em Roma. Não é de se esperar que um papa de 77 anos quisesse tomar alguma decisão importante. Dessa forma, os Orsini aproveitaram a oportunidade e apoiaram activamente o candidato do rei Afonso, ganhando, assim, pontos a seu favor em Nápoles.

Além disso, um pontífice já idoso e de carácter bem consolidado parecia oferecer melhor garantia para combater a ascensão vertiginosa de determinados grupos ao poder apostólico, sem incorrer em transformações incômodas de sua natureza. Aqui residia, de facto, o risco para a eleição papal. Em que medida se poderia prever o comportamento de um candidato após ser elevado a papa? A austeridade e o rigor do cardeal de Valência seriam uma garantia contra surpresas desagradáveis, calculavam seus eleitores». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o Papa Sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9.

Cortesia de EEuropa/JDACT

JDACT, Vaticano, Religião, Volker Reinhardt,

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Alexandre VI. Volker Reinhardt. «Em 27 de Junho de 1458, morreu Afonso V, de cognome o Magnânimo. Mesmo com idade avançada, seu adversário começou a entrar em acção. Ele proibiu o filho ilegítimo de Afonso…»

Cortesia de wikipedia e jdact

De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgias

«(…) Era imensa a necessidade de concessão de graças e indultos, ou seja, dispensas provenientes dessas complicadas regras. Por outras palavras: no palácio do vice-chanceler convergiam laços, por meio dos quais era possível estabelecer ligações com os poderosos de todo o planeta. Permissão para casar, apesar do grau de parentesco muito próximo, legitimação de filhos bastardos, absolvição de promessas incômodas: tudo isso tinha o seu valor de contrapartida e sua utilidade. E, principalmente, o vice-chanceler passou a ter acesso irrestrito a desagradáveis segredos que os poderosos não queriam que se tornassem públicos.

A nomeação de Rodrigo a bispo de Valência elevou ainda mais a sua posição e aumentou seus rendimentos. E, pouco depois, ao elevado posto dentro da Igreja, juntou-se também uma posição de liderança secular. Calisto III nomeou seu talentoso sobrinho, sem a menor cerimónia, como capitão das tropas papais na Itália. Um cardeal como general: isso foi uma ofensa para muitos. A enorme quantidade de postos atribuídos a outro sobrinho, Pedro Luís, irmão de Rodrigo, também provocou escândalos. Ele recebeu numerosos cargos no Estado Pontifício, entre eles a castelania do Castelo de Santo Ângelo. Como resultado, passou a comandar a inexpugnável fortaleza da cidade de Roma: uma prevenção para os tempos de crise. Pedro Luís, que estava destinado a ser o herdeiro da aristocrática dinastia Bórgia, ganhou, acima de tudo, os feudos que tinham sido perdidos pelos barões romanos. Indo ao encontro desses propósitos, especialmente nos territórios dos Orsini, foram tomados todos os castelos, com seus respectivos direitos de jurisdição, tributação e recrutamento de tropas. A sua amargura foi ainda maior quando o cardeal Orsini, o fazedor de papas, contabilizou recompensas no lugar de desapropriações.

Calisto derrotou os Orsini, mas o que ele queria mesmo era atingir seu patrão, o rei Afonso. As suas relações com Nápoles tinham piorado rapidamente. A exigência do monarca de continuar a condescender com ele nos âmbitos políticos do clero, ou seja, nomear candidatos convenientes para o bispado e conceder lucrativos prestimónios ao seu protegido, foi considerada um atrevimento e, por isso, recusada. O papa já não tinha a menor predisposição para esses servicinhos de capelão. A situação progrediu de tal maneira que chegou a recusar favores a Afonso, favores esses, que concedia em provocante abundância aos membros de sua família. Divergências políticas importantes agravaram a contenda. Calisto acreditava ter identificado, na táctica dilatória de Nápoles, o principal obstáculo para a realização de seu grande plano, que era reprimir os otomanos. No Outono de 1457, o rei ameaçou o papa com concilio e deposição; este, por sua vez, ameaçou o rei com privação de enfeudamento. De repente, como numa poderosa encenação teatral, no ápice do conflito, um dos dois protagonistas retirou-se do palco. Em 27 de Junho de 1458, morreu Afonso V, de cognome o Magnânimo. Mesmo com idade avançada, seu adversário começou a entrar em acção. Ele proibiu o filho ilegítimo de Afonso, Fernando de Aragão, mais conhecido como dom Ferrante, sucessor designado para a região continental do sul da Itália, de usar seu título de rei. Revogou ainda o juramento de fidelidade de seus súbditos e assumiu o reino como um feudo que fora devolvido à Igreja.

Ao mesmo tempo, o papa concedeu a Pedro Luís a função de comandante supremo das tropas que liderariam a inevitável guerra contra Nápoles. Além disso, transferiu para seu sobrinho o vicariato de Benevento e Terracina, que tinha sido ocupado pelo falecido monarca. O nepote regia esse enclave romano no reino de Nápoles, como o título mesmo indica, literalmente como substituto do papa; a experiência demonstrou, contudo, que esses vicariatos, de facto, transformaram-se rapidamente em grandes domínios autónomos. Como já mostrado no drástico agravamento das relações com os Orsini, essa concessão demonstrava também o que os Bórgia realmente tinham em vista: o trono de Nápoles». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o papa sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9.

Cortesia de EEuropa/JDACT

JDACT, Volker Reinhardt, Vaticano, Escrita, 

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Alexandre VI. Volker Reinhardt. «… direito da família e do casamento. Nesse domínio sensível, os canonistas tinham criado uma infinidade de obstáculos, restrições e proibições que exigiam decididamente a concessão de derrogações»

Cortesia de wikipedia e jdact

De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgias

«(…) Aqui residia, de facto, o risco para a eleição papal. Em que medida se poderia prever o comportamento de um candidato após ser elevado a papa? A austeridade e o rigor do cardeal de Valência seriam uma garantia contra surpresas desagradáveis, calculavam seus eleitores. Assim, em 8 de Abril de 1455, foi cumprida a profecia de Vicente Ferrer, e Alonso Borja subiu ao trono de Pedro como Calisto III. Como todos sabiam, ele era um homem com família. Em outras palavras: o que não faltavam eram potenciais nepotes. O facto de os eleitores não terem visto isso como um obstáculo está possivelmente relacionado ao problema de o nepotismo ser considerado, em grande parte, coisa do passado, não apenas por meio da moderação imposta pelos próprios papas, mas também pela delicada pressão por parte do cardinalato. Ambos tinham contribuído para que, nos dois últimos pontificados, não tivessem sido observadas situações desagradáveis a esse respeito. O papa recém-eleito poderia nomear cardeal um sobrinho qualquer ou, se necessário, melhorar o estilo de vida de parentes mais próximos. Assim versavam as regras vinculativas de decência que se orientavam numa categoria aristocrática de nepotes, mas de forma alguma principesca ou mesmo dominante.

Comparado ao nepotismo igualmente aventureiro e caótico de Bonifácio IX (1389-1404), que concedeu a seus numerosos parentes napolitanos metade da região do Lácio, como também abundantes prestimónios, isso já era um passo à frente. A inviolabilidade desses padrões precisava, no entanto, ser colocada à prova.

Desse modo, todas as atenções se voltaram ao idoso homem de Xátiva e seus jovens sobrinhos. Do ponto de vista do rigoroso moralista, para o qual o papa não tinha parentes consanguíneos, mas apenas espirituais, e precisamente em todos os lugares onde reinavam o mérito e o merecimento, o início foi marcado por uma positiva surpresa. No começo, fez-se pouco em termos de apoio à família. Rodrigo Bórgia e seu primo Luís Juan Mila foram agraciados com lucrativos benefícios, mas permaneceram estudando Direito em Bolonha. Porém, a alegria dos zelanti, que eram os reformadores zelosos, não iria durar muito. Em Fevereiro de 1456, a nomeação simultânea de Rodrigo e Luís Juan Mila a cardeais pôs fim a todas as esperanças de conter o nepotismo. Pior ainda: estava violada a regra mais importante da ainda recente autorrestrição. Acrescente-se a isso que esses dois chapéus vermelhos foram só o começo. Calisto III tinha agora pressa em elevar o prestígio de sua família. Provavelmente, temia já ter esperado demais. Aparentemente, os escrúpulos iniciais que se opuseram à promoção intensiva de seus parentes de sangue tornaram-se obstáculos definitivamente eliminados. Só é possível presumir de que maneira se deu essa mudança de atitude: por sugestões ao pé do ouvido de conselheiros que perseguiam seus próprios interesses, mas provavelmente também pelos pedidos ou exigências dos próprios sobrinhos.

Esses não podiam agora se queixar da moderação de seu tio. O mais enérgico e persuasivo dos dois novos purpurados, Rodrigo, tornou-se vice-chanceler em 1457, passando a ocupar o mais importante e lucrativo posto dentro da cúria depois do papado. As tarefas associadas a essa função consistiam em cuidar da torrente de solicitações de concessão de indulgências que chegavam a Roma vindas de toda a cristandade. O papa reservava-se o direito de tomar decisões apenas em casos ligados a círculos políticos mais amplos, mas, geralmente, apreciava essas causes célebres depois de uma prévia avaliação de seu vice-chanceler. Dessa maneira, esse último assumiu uma posição-chave. A jurisdição clerical estava longe de ser apenas responsável por litígios dentro do clero, mas também por grande parte do direito da família e do casamento. Nesse domínio sensível, os canonistas tinham criado uma infinidade de obstáculos, restrições e proibições que exigiam decididamente a concessão de derrogações». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o papa sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9.

Cortesia de EEuropa/JDACT

JDACT, Volker Reinhardt, Vaticano, Escrita,

terça-feira, 4 de abril de 2023

Alexandre VI. Volker Reinhardt. «… os Orsini aproveitaram a oportunidade e apoiaram activamente o candidato do rei Afonso, ganhando, assim, pontos a seu favor em Nápoles. Além disso, um pontífice já idoso e de carácter bem consolidado…»

Cortesia de wikipedia e jdact

De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgias

«(…) Outro evento causou ainda maior admiração do que o final das hostilidades entre Inglaterra e França. Em 29 de maio de 1453, o sultão Maomé II conquistou Constantinopla e exterminou, assim, os últimos resquícios do Império Bizantino. O susto provocado contribuiu para que Nicolau V alcançasse um bom êxito no seu empenho de resguardar a estabilidade política na Itália. Por meio dos acordos fixados em Lodi, na Itália, em 1454 e 1455, foram criadas estruturas federais que deveriam engendrar a manutenção da paz por meio da reconciliação de interesses. No entanto, a estrutura complexa dos numerosos estados com seu complicado emaranhado de sistemas, com diversas relações de protecção e dependência, permaneceu, também no futuro, altamente susceptível a interferências. Só era possível instaurar o equilíbrio se, pelo menos, as cinco principais potências praticassem uma política permeada por prudência e ponderação. Os acordos exigiam, assim, a contenção de todos, principalmente do papado. O lema da modernidade era abdicar do nepotismo excessivo. Nicolau V respeitou essa regra.

Será que seu sucessor iria fazer o mesmo? Após a morte do primeiro papa humanista, o conclave se reuniu primeiramente com 14 e, em seguida, com 15 cardeais; jamais o número de eleitores de um conclave voltou a ser tão baixo. Os italianos, que contavam com sete purpurados, detinham uma exígua maioria. O segundo grupo mais forte era o dos espanhóis, com quatro representantes. Esses últimos, contudo, não chegavam a representar uma ameaça tão grande como os franceses, embora esses só estivessem representados com dois príncipes da Igreja. Os eloquentes humanistas italianos eram considerados bárbaros por excelência e os prelados italianos, uma ameaça para o papado. Será que iriam transferir a cúria novamente para Avignon, que durante 1309 e 1377 tinha sido a residência papal, em detrimento da Cidade Eterna?

Não foram apenas essas preocupações e o precoce nacionalismo que moldaram a eleição do novo pontifex maximus. Como era comum havia muito tempo, a rivalidade entre os Colonna e os Orsini exercia forte influência sobre as formações partidárias do conclave. Com suas vastas e, de facto, autónomas propriedades feudais, esses dois clãs da aristocracia dominavam, desde o século XIII, não apenas a paisagem rural romana, mas também a região de fronteira com Nápoles, sem falar na própria Cidade Eterna. No conclave, cada linhagem apresentou um cardeal e este permaneceu rodeado pelos seguidores da respectiva família. Uma vez que o poder de ambas as partes equiparava-se, não foi possível fazer valer a força de seu respectivo preferido. Foi inevitável, portanto, proceder à busca de um candidato de conciliação. O cardeal Bessarion, com sua elevada formação filológica e teológica, bem como seu estilo de vida exemplar, ofereceu-se como tal. Mas rapidamente pairou no ar uma espécie de xenofobia, mais exactamente grecofobia. Um grego como papa? A união da Igreja Ortodoxa com a Igreja Católica não fora realizada pura e simplesmente pela força das circunstâncias, ou seja, pela ameaça iminente da queda de Constantinopla? Era possível confiar realmente na ortodoxia desse príncipe estrangeiro da Igreja?

Alonso de Borja, nesse aspecto, estava completamente fora de suspeitas. Além disso, como espanhol, ele representava a Reconquista, a batalha de fé contra os mouros. Dentro das circunstâncias altamente tensas e de confinamento espacial do conclave, o regresso a esses antigos motivos que, depois de 1453, passaram a ser novamente actuais, desempenhava um papel muito importante. O factor decisivo, no entanto, foi que, com a elevação a papa do homem de Xátiva, o impasse foi resolvido e foi adiada provisoriamente a decisão sobre o desenvolvimento no longo prazo da situação do poder em Roma. Não é de se esperar que um papa de 77 anos quisesse tomar alguma decisão importante.

Dessa forma, os Orsini aproveitaram a oportunidade e apoiaram activamente o candidato do rei Afonso, ganhando, assim, pontos a seu favor em Nápoles. Além disso, um pontífice já idoso e de carácter bem consolidado parecia oferecer melhor garantia para combater a ascensão vertiginosa de determinados grupos ao poder apostólico, sem incorrer em transformações incómodas de sua natureza». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o papa sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9.

Cortesia de EEuropa/JDACT

JDACT, Volker Reinhardt, Vaticano, Escrita,

domingo, 13 de março de 2022

Volker Reinhardt. Alexandre VI. «Em meados do século XV, eventos ocorridos fora da península foram cruciais para a Itália. O fim da Guerra dos Cem Anos, entre Inglaterra e França, teve como consequência a rápida consolidação da monarquia francesa»

Cortesia de wikipedia e jdact

 De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgias

«(…) Por volta de 1453, o sobrinho do cardeal dedicou-se aos estudos de Direito em Bolonha. Os primeiros traços conhecidos de seu carácter devem ser contemplados com muita cautela. Os humanistas tinham a tendência de reescrever em elegante latim conhecidos lugares-comuns da Antiguidade Clássica. E isso se aplicava ainda mais quando se tinha de fazer uma lista com as qualidades de personalidades poderosas e de outras que poderiam vir a sê-lo. Acreditava-se poder distinguir nesses textos contornos de uma autêntica individualidade, mesmo com todas as violações: na ênfase da imponência física, no louvor à rápida faculdade de compreensão e agilidade mental, na capacidade de fazer manobras, assim como no talento de administrar e dominar. Todas essas qualidades deveriam ser amplamente demonstradas, pelo assim descrito, em 36 anos de cardinalato e onze de pontificado. Informações adicionais sobre esses primeiros anos são, no entanto, muito raras. Dentro da cúpula da Igreja, seu tio não desfrutava muito destaque. Essa falta de proeminência não conseguiu impedir a sua próxima escalada. No conclave, quando as partes em conflito não chegavam a um acordo, entravam em cena os candidatos de conciliação. A idade de Alonso Borja o qualificava, de mais a mais, a esse papel. Afinal, havia outros que também queriam uma parte desse quinhão. Além disso, os pontificados muito longevos provocavam, não raro, graves distúrbios. A distribuição de poder, as influências e as riquezas cristalizavam-se de forma unilateral em benefício dos sobrinhos do papa e seus clientes.

Enquanto outros protagonizavam manchetes diplomáticas e culturais, o cardeal de Valência, como era conhecido agora, esperava tranquilamente. No conclave de 1447, pouco sobressaiu. Nesse conclave, para surpresa de todos, o vencedor foi o humanista Tommaso Parentucelli, que adoptou o nome de Nicolau V. Durante os oito anos de seu pontificado, a Itália foi palco de profundas transformações políticas. Em 1450, Francesco Sforza, o único arrivista verdadeiro entre os governantes seculares da península, ascendeu ao trono ducal de Milão. Longas negociações com as principais famílias da aristocracia antecederam a disputa pelo trono, que, após a extinção dos Visconti, curiosamente favoreciam o mais fraco entre muitos candidatos. Seguindo essa linha, o domínio da nova dinastia permaneceu fora de perigo enquanto estiveram conscientes dos pactos assumidos com a sua elite, ou seja, enquanto respeitaram ou ampliaram seus privilégios e agiram com a máxima cautela em assuntos relacionados à política externa. Além do mais, Bórgia e Sforza eram velhos conhecidos. O novo duque já tinha dado provas de suas aptidões para exercer funções mais elevadas, quando foi líder de um exército mercenário durante a tortuosa luta pelo trono napolitano, da qual Afonso Aragão saiu vencedor. Em horizontes longínquos, foi traçado um cenário de três diferentes ângulos que revelava grande tensão: os Sforza e os Aragão, primeiramente rivais, depois aliados por muito tempo e, finalmente, inimigos mortais. Aliado a isso, os papas dos Bórgia tinham como objectivo tirar proveito dessa rivalidade para consolidar seu próprio domínio. No final das contas, Alexandre VI contribuirá de forma significativa para que uma dinastia permaneça por muito tempo no poder e para que a outra lá fique por mais de uma década.

Em meados do século XV, eventos ocorridos fora da península foram cruciais para a Itália. O fim da Guerra dos Cem Anos, entre Inglaterra e França, teve como consequência a rápida consolidação da monarquia francesa. Sob a forma de influência de carácter diplomático, essa revitalização da monarquia tornou-se cada vez mais perceptível entre os Alpes e o Monte Etna já a partir de 1460. Com excepção de uma tentativa fracassada de fazer que a Casa de Anjou voltasse a se sentar no trono napolitano, as intervenções militares directas ficaram, naquele momento, de fora. Em contrapartida, o rei Luís XI encontrava-se bastante ocupado em outras frentes, especialmente na luta contra o duque da Borgonha, Carlos, o Temerário». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o Papa Sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9.

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Alexandre VI. Volker Reinhardt. «Assim sendo, dois sobrinhos de Alonso ocupavam o topo dessa hierarquia. Ambos eram fruto do casamento de sua irmã Isabel com dom Jofre Borja…»

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De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgias

«(…) É chegado, assim, o momento do penúltimo salto na trajectória do prelado político. Como homem de seu rei, recebeu o chapéu eclesiástico vermelho em 1444. Afonso não teve sequer de insistir excessivamente com o papa. O rigoroso jurista espanhol era muito benquisto às margens do Tibre. Idoso, sem raízes dentro do aparato curial e não muito rico, ele não representava uma ameaça para ninguém. No entanto, aquele que reinava sobre Nápoles e Sicília contava agora com um activo defensor de seus interesses dentro do Senado da Igreja. De sua residência, nos arredores de sua igreja titular Santi Quattro Coronati, próximo a Latrão, Alonso Borja nunca perdeu de vista as obrigações de cliente perante seu patrão, continuando a trabalhar incansavelmente para seu senhor, fosse na concessão de benefícios, fosse em questões eclesiásticas. Essa lealdade cega era apenas um lado da moeda. Como um dos vinte cardeais, o homem de Xátiva pertencia agora à elite de liderança exclusiva da Igreja. E essa cor púrpura brilhou muito além das dependências da cúria. As cabeças coroadas do mundo dirigiam-se a um cardeal como meu primo. Isso porque ele era um príncipe da Igreja, usufruía de poder, mas não de soberania. Se dependesse dos próprios cardeais, isso era algo que estaria prestes a mudar. Como grupo, eles estavam tentando garantir a autonomia nas tomadas de decisão da Igreja, pressionando o papa a ser o órgão executivo de sua vontade. Mas o papa, por sua própria natureza, não estava de acordo e reagiu contrariamente. Aproximadamente na metade do século XV, essa questão relacionada ao poder dentro da cúria ainda não estava definitivamente esclarecida.

Para o novo cardeal, no entanto, era o momento de expressar seu agradecimento. Seguida de Deus e do rei, a próxima na fila era a sua família. E, com ela, o círculo de apoio formado por amigos, ou seja, seus valiosos aliados. Pairavam sobre aquele que atribuía o sucesso apenas a si mesmo fortes suspeitas do grave pecado do orgulho e da soberbia, que já fora responsável pela queda de Lúcifer do céu para o inferno. A virtude da piedade, a submissão reverente aos costumes dos antepassados e o perfeito elo com sua devoção ajudavam contra os impulsos de seu dilatado ego. Concretamente, obrigava-se que parentes e amigos, e justamente nessa ordem, recebessem as bênçãos da ascensão. Assim sendo, dois sobrinhos de Alonso ocupavam o topo dessa hierarquia. Ambos eram fruto do casamento de sua irmã Isabel com dom Jofre Borja, um descendente do ramo principal da família: Rodrigo, o futuro Alexandre VI, bem como seu irmão Pedro Luís. Rodrigo foi designado, ainda muito jovem, a seguir a carreira eclesiástica. Esse era o plano de carreira típico daquela época. Com um membro da família sentado na cadeira episcopal de Valência, seria uma falha injustificável abrir mão desse privilégio. As posições de liderança dentro da Igreja eram herdadas geralmente de acordo com o celibato, não de pai para filho, mas de tio para sobrinho. Regulamentada por regras minuciosamente elaboradas, a prática da concessão de benefícios oferecia grandes oportunidades para isso. Embora o papado tenha sofrido muitas perdas durante o cisma, muitos dos prestimónios mais lucrativos continuaram a ser concedidos em Roma, ainda que, muitas vezes, em conjunto com os governantes seculares. A vocação ou aptidão pessoal não desempenhavam um papel importante para se ingressar no sacerdócio. Somente com as reformas do Concílio de Trento (1545-1563), essa disposição individual passou a ser normativa.

Para a profissão do jovem Rodrigo Borja, a ascensão de Alonso foi fundamental. Carreiras como a do grande jurista formavam o elemento móvel de uma sociedade que vinha se consolidando de forma considerável, particularmente na Itália. Cada prelado que conseguisse chegar à cúpula da Igreja levava prontamente consigo a sua família, munido do afã indomável de lá se estabelecer por tempo indeterminado. Esse mecanismo frustrava não apenas os romanos natos, mas também escasseava os recursos para os futuros jovens promissores. E, com isso, anunciavam-se graves conflitos na distribuição de recursos. Como muitos fizeram antes e depois dele, o cardeal de Xátiva também tomou medidas de precaução para garantir a futura posição dos seus. Ele deve ter levado Rodrigo para Roma por volta de 1449. Naquela época, seu protegido, que curiosamente após a morte do pai tinha-se mudado com a mãe para o desocupado palácio episcopal de Valência, já estava bem arranjado, com cargos dentro da Igreja e bons vencimentos. Um cônego em Xátiva, por exemplo, gozava de rendimentos consideráveis. Era mérito de seu ilustre filho cardeal Alonso que houvesse cónegos na pequena cidade. Alonso tinha promovido a paróquia local para colegiado, isso também é piedade. Para além de uma longa missão diplomática a serviço do papado, Rodrigo Borja, cujo nome está mudando gradualmente para a forma italiana Borgia, não deverá mais abandonar a Itália. No círculo mais íntimo da família e do poder, contudo, mesmo como papa continuará até o fim falando e escrevendo em catalão». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o Papa Sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9.

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terça-feira, 19 de novembro de 2019

Alexandre VI. Volker Reinhardt. «Essa conquista, até a morte de Afonso em 1458, deve-se, em muitos aspectos, ao facto de que esse monarca gozava de elevada autoridade pessoal, além de dispor de órgãos centrais…»

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De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgia
«(…) Contudo, o pontifex maximus em exercício, Eugénio IV, não estava disposto a reconhecer, sem delongas, as novas relações de poder. Um rei tão forte como Afonso, cujo domínio abarcava a região ocidental e central do Mar Mediterrâneo, chegava agora ao trono de Nápoles. Essa proximidade despertava velhos temores de serem cercados e, com isso, vinham à tona más recordações da luta sangrenta dos papas contra a dinastia dos Staufer, no século XIII. A Itália não seria muito pequena para um principado desse porte? Será que ele não buscava, inevitavelmente, uma hegemonia que pudesse destruir o equilíbrio, sempre problemático, entre as cinco grandes potências, Veneza, Milão, Florença, Roma e Nápoles, bem como entre alguns centros menores, como Ferrara, Mântua e muitos outros pequenos territórios? Mesmo os grandes barões de Nápoles e Sicília viam o futuro com preocupação. Será que o monarca aragonês colocaria novamente em causa a ampla autonomia que tinham conquistado como o fiel da balança nas lutas pelo trono realizadas nos últimos dois séculos? Tantas perguntas sem respostas, e um vasto campo de acção para Alonso Borja. Em 1439, ele negociou uma trégua entre Roma e Nápoles. Essa trégua correspondia, na prática, a uma neutralidade por parte de Eugénio IV e permitia a Afonso conduzir com êxito as negociações com as principais famílias da nobreza de seu novo reino, sem ser importunado por interferências papais. Nesse pacto entre a monarquia e a aristocracia, estavam as mãos também do inteligente advogado de Xátiva, fundamentalmente envolvido como executor e intérprete da vontade real. A Coroa e os barões negociaram, afinal, um modus vivendi em que o clã principal garantia não apenas o domínio de facto nos seus enormes territórios feudais, mas também coroava esse domínio com a atribuição formal da mais alta jurisdição. Por outro lado, o monarca reservou-se o direito de supervisionar o exercício do poder da nobreza por meio de agentes próprios e, havendo necessidade, assumindo as devidas competências. A lealdade, ou seja, o bom comportamento e a disponibilidade de servir ao rei, passaria, futuramente, a ter poder de decisão acima da categoria dentro da orgulhosa elite de nascimento.
Essa foi uma questão ambiciosa e até ousada. Essa conquista, até a morte de Afonso em 1458, deve-se, em muitos aspectos, ao facto de que esse monarca gozava de elevada autoridade pessoal, além de dispor de órgãos centrais competentes para a administração e a jurisprudência. Além disso, ele soube tirar proveito com grande habilidade dos meios de propaganda da época: impressionantes construções em estilo antigo e, seguindo a mesma linha, textos escritos por famosos humanistas. Pode-se partir do princípio de que por detrás da maioria dessas manobras inteligentes estava a orientação de Alonso Borja. Após a entrada triunfal de Afonso na sua nova capital, em 1443, foi ele quem esteve ao lado do rei durante as negociações com o papa.
Essas tiveram lugar em Terracina, a meio caminho entre Roma e Nápoles, representando um esforço mútuo em que ambas as partes tiveram de igualmente dar a sua parcela. Eugénio IV reconheceu a legitimidade do novo poder e Afonso retirou o apoio ao Concilio de Basileia, que representava a oposição dentro da Igreja contra o papa». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o Papa Sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9

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sábado, 16 de novembro de 2019

Alexandre VI. Volker Reinhardt. «Afonso V não via com bons olhos suspender o apoio a Bento XIII, que ignorou soberanamente a deposição pelo concilio, bem como seu sucessor Clemente VIII»

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De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgia
«(…) Afonso V reinava não apenas sobre a metade setentrional da Península Ibérica, mas também sobre as Ilhas Baleares, a Córsega e a Sardenha. Mas o jovem monarca não estava ainda nem um pouco satisfeito com isso. Seus olhos estavam voltados com cobiça para a Itália. Para os seus planos ambiciosos, precisava de advogados competentes como Alonso Borja. Havia quase quatro décadas, Borja tinha colocado os seus notáveis conhecimentos jurídicos inteiramente ao serviço do rei. Era uma ferramenta perfeita nas mãos do monarca e chegou a actuar também nas difíceis disputas entre a Coroa de Aragão e o papado. Afonso V não via com bons olhos suspender o apoio a Bento XIII, que ignorou soberanamente a deposição pelo concilio, bem como seu sucessor Clemente VIII, sem obter amplas concessões de Roma. Nas negociações mantidas com os embaixadores enviados por Martinho V, Alonso Borja, por meio da sua experiência, ganhou o reconhecimento também pelo lado romano. De qualquer forma, por parte do rei, o reconhecimento era inconteste. No entanto, o amplo apoio que o homem de Xátiva passou a receber, a partir desse momento, não tinha nada de desinteressado. O facto de ter colocado o seu vice-chanceler em posições de liderança dentro da Igreja assegurava ao monarca acesso a uma grande parte dos seus recursos financeiros. Essa divisão de tarefas deu excelentes resultados ainda durante a administração da diocese de Maiorca por Alonso. E essa disponibilidade de dar ao rei aquilo que ele exigia qualificou-o a posições ainda mais altas. Em 1429, Alonso passou a ser bispo de Valência, ofuscando, dessa maneira, todo o sucesso que fora anteriormente alcançado pelas mais nobres ramificações da sua linhagem. Naturalmente, foi fundamental para isso a recomendação do seu senhor. Apesar dos doze anos de dedicados serviços, a sua nomeação, que fora aprovada por Martinho V, teve o seu preço. Favor significa o privilégio de poder comprar, por toda parte, as regras invioláveis da clientela. Alexandre VI, posteriormente, dominará essa arte com maestria absoluta. Seu tio, no entanto, teve de pagar uma fortuna ao seu rei pelo bispado de Valência. O facto de Martinho V ter dado sua aprovação reflecte uma mudança na política da Igreja. Do ponto de vista do rei, o antipapa, que se encontrava entrincheirado na península rochosa Peníscola, tinha cumprido a sua missão. E quando Alonso Borja comunicou-lhe a suspensão do apoio da casa real, Clemente VIII agiu da forma mais razoável possível: desistiu. Anos mais tarde, tornou-se lenda que a arte de persuasão do enviado teria contribuído para que o teimoso antipapa tomasse essa decisão. Fora de questão, no entanto, é o facto de que Alonso, como portador de uma mensagem sem margem a negociações, contribuiu, com a sua competência jurídica, para que esse acto transcorresse de forma rápida e indolor. E isso também agradou a Roma.
Os comprovados interesses da união mantiveram-se, mesmo depois de 1429. Como pastor de uma das mais ricas dioceses da Espanha, Alonso Borja não recusou os pedidos de subsídios da câmara de finanças real. O seu papel como conselheiro real também prevaleceu sobre as suas novas funções como bispo; o grande jurista era indispensável no tribunal e aumentou o número já grande de não residentes, ou seja, clérigos que não estavam em exercício das suas funções na sua diocese. Como prelado político por excelência, Alonso Borja imbuiu rigor exemplar ao seu estilo de vida. Repudiava os pecados capitais da gula e da luxúria, nisso estiveram de acordo até mesmo os seus inimigos. Afonso de Aragão também abriu as portas que levariam o seu favorecido à Itália. Nas intrincadas contendas pela coroa de Nápoles (à qual pertencia também a Sicília), que gozava de extremo prestígio, após muitos contratempos e prestes a atingir os seus objectivos, o rei promoveu a sucessão do seu conselheiro quase sexagenário em 1437. E com boas razões. Após longos conflitos, Afonso tinha conseguido prevalecer sobre seus rivais da Casa de Anjou, porém havia ainda uma última e difícil batalha pela frente. Essa seria com o papa, que ocupou a suserania sobre o reino fundado brilhantemente pelos normandos em 1130». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o Papa Sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9

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sexta-feira, 29 de março de 2019

Alexandre VI. Volker Reinhardt. «A santidade dos dominicanos revelou-se no cumprimento da profecia. A canonização é também um acto de agradecimento. Dessa maneira, foi estabelecida uma relação de reciprocidade…»

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De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgia
«(…) E a recompensa era grande: glória ao governante e posições de liderança lucrativas ao conselheiro ou diplomata que desse a sua colaboração. Em 1411, o clérigo de Xátiva, cuja reputação como advogado não parava de crescer, foi nomeado cônego da Catedral de Lérida. Essa função, que fora ocupada regularmente por outros membros da linhagem principal da família, garantia consideráveis rendimentos e justificava as esperanças por posições mais elevadas. Mas na viragem da história de vida de Alonso deve ter ocorrido alguns anos antes. O dominicano Vicente Ferrer (morto em 1419), amplamente conhecido como rígido pregador, anunciou ao jovem clérigo que ele, um dia, ocuparia o trono de Pedro. Tais profecias não faltavam em biografias papais.
Factos concretos são a prova de que aqui não se trata da invenção piedosa de um biógrafo tardio, mas sim de uma autêntica e marcante experiência. Trinta e seis anos após a morte do eloquente frade, Calisto III, de facto eleito papa, não tendo outra coisa mais importante para fazer, incluiu o nome de Ferrer na lista dos candidatos à canonização. Mas também isso não significava muita coisa, afinal o dominicano era considerado havia muito tempo um escolhido do Senhor no que dizia respeito às rígidas reformas da Igreja. Ele era também um conterrâneo do papa, o que geralmente acelerava os processos de canonização. Mas havia um motivo ainda mais pessoal para a rápida canonização. Esse motivo é mencionado na competente biografia de Ferrer, escrita pela pena de um contemporâneo:
Alonso Borja dizia havia anos aos seus seguidores que estava confiante, antes mesmo de ter sido eleito efectivamente papa: ele nutria a esperança de um dia governar pessoalmente a Igreja Romana. Mas depois de terem morrido dois ou três papas e a eleição ter acabado de forma diferente, muitos daqueles que tinham apostado nele agora faziam troça do velho ridículo, cujas previsões não passavam de conversa fiada. Essas mesmas pessoas, contudo, ficaram tremendamente surpresas quando, após a morte do papa Nicolau VI, ele, de facto, ocupou o trono de Pedro, e questionavam-no pelas inspirações que o tinham levado a fazer tão frequentemente previsões desse desfecho, de forma assim tão inabalável. Sua resposta: quando eu era ainda adolescente, foi-me anunciado por um homem mundialmente famoso, marcado pela fé, piedade e santidade de vida, Vicente Ferrer, da Ordem dos Pregadores, que eu, um dia, seria o maior de todos os mortais e, depois de sua morte, iria superar todas as pessoas em louvor, honra e adoração. [...]. E como vejo agora que, como um dom de Deus, fui realmente agraciado com o que ele dissera, foi-me ordenado fazer por ele o que ele profetizara a ser minha missão, a ser cumprida perante a sua pessoa. Portanto, o meu veredicto é que esse grande homem seja santificado por mim o mais rápido possível.

A santidade dos dominicanos revelou-se no cumprimento da profecia. A canonização é também um acto de agradecimento. Dessa maneira, foi estabelecida uma relação de reciprocidade, que conjugava destino e dignidade. Assim, Alonso Borja torna-se papa a fim de outorgar a Ferrer a sua legítima categoria. Dou para que dês: devoção aos santos e sua duradoura protecção ao pontífice e sua família. A ideia de elegibilidade por dinastias vai tomando forma. Pouco depois de 1400, essa profecia pareceu, em princípio, ousada. Como deveria ser o caminho de Lérida a Roma? Como patrocinador, o primeiro a agir foi o papa Bento XIII, um dos três papas rivais da época, que colocou o promissor compatriota sob as suas asas. O valor de sua protecção, no entanto, foi irrelevante, já que foi deposto sumariamente, com os seus concorrentes, pelo Concilio de Constança. O objectivo era eleger, por volta de 1417, na figura de Martinho V, da família Colonna, pertencente à alta aristocracia romana, um novo pontifex maximus que fosse reconhecido por todos. E também Alonso Borja arranjou um novo e influente protector: Afonso V (1396-1458), rei de Aragão». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o Papa Sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9

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quinta-feira, 28 de março de 2019

Alexandre VI. Volker Reinhardt. «A história dos Bórgia, tal como pode ser verificada nos livros da Igreja e nos registros oficiais, foi por muito tempo caracterizada por falta de glamour, mas não se pode afirmar que tenha sido obscura»

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De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgia
«(…) O início da história da família é repleto de lendas. Se acreditarmos na mais persistente e importante delas, a família de Borja teria sua origem por volta de 1140, proveniente de um ramo da dinastia de Aragão. As mais recentes pesquisas genealógicas refutaram completamente essa tese, mas Alexandre VI acreditava piamente nas suas raízes reais. Há provas visíveis dessa crença até hoje. No tecto em caixotões da Basílica de Santa Maria Maior, encomendado por ele, o touro do brasão da família carrega a coroa dupla dos reis aragoneses. Nessa mesma época, um herdeiro vivo dessa dinastia referiu-se ao papa como um parente querido. Bem se sabe que Alexandre VI estava ciente de que se tratava de uma manobra diplomática. No entanto, profundamente satisfeito, exultou: finalmente, depois de tanto tempo, o desejado
reconhecimento! A história dos Bórgia, tal como pode ser verificada nos livros da Igreja e nos registros oficiais, foi por muito tempo caracterizada por falta de glamour, mas não se pode afirmar que tenha sido obscura. Ao longo de várias gerações, os descendentes desse clã vastamente ramificado ocuparam posições de liderança na cidade de Xátiva, na planície de Valência. Pelas normas relativamente vagas daquela época, podiam ser classificados como membros da nobreza menor. E as notoriedades locais com vastas propriedades teriam grandes probabilidades de permanecer nessa classificação, se não fosse a escalada do herdeiro de uma linhagem lateral de menor prestígio que viria a beneficiar toda a estirpe: Alonso Borja, nascido no primeiro dia de 1378, no povoado de Canais, perto de Xátiva, falecido em 6 de Agosto de 1458, como papa Calisto III, em Roma. O ano do seu nascimento, como o do seu sobrinho Rodrigo, faz parte da mitologia da família e é bastante simbólico, pois marcou o início do grande cisma do Ocidente: a divisão da Igreja em duas e, a partir de 1409, com três papas e seus respectivos séquitos.
Esse estado irremediável desperta medo pela glória eterna: seria possível ainda chegar ao paraíso? Não foram poucos os teólogos que responderam a essa pergunta com cepticismo e pessimismo. A fragmentação da Igreja, por direito indivisível, arrastou-se ao longo de clivagens políticas e nacionais. Especialmente a contradição entre cardeais franceses e ingleses fez fracassar todas as tentativas de uma reunificação, colocando o papado em risco. Afinal de contas, dado o impasse, vieram à tona velhas teorias, agora renovadas, segundo as quais a autoridade suprema de governar a Igreja era reservada ao concílio, um fórum que concentrava todos os fiéis. Esse conciliarismo, por sua vez, caiu como uma luva nas mãos dos governantes seculares. Diante da discórdia reinante no clero, eles seriam os únicos que, por meio da convocação de um concílio, poderiam ter êxito no processo de reunificação da Igreja. Tendo como pano de fundo esses desdobramentos que fortaleceram os poderes ilimitados dos príncipes sobre suas respectivas igrejas regionais, o senhor de Xátiva vai trilhando seu longo, gradual e, para a época, típico caminho: como advogado, como conselheiro do príncipe e como clérigo.
Depois de estudar Direito em Lérida, Alonso Borja tomou a decisão, em 1408, de seguir a carreira eclesiástica. Era uma carreira que tradicionalmente oferecia melhores perspectivas de sucesso aos jovens ambiciosos das camadas sociais menos elevadas. Além disso, naqueles tempos conturbados, havia grande procura por especialistas em Direito Eclesiástico. Eles ainda eram os mediadores mais confiáveis nas questões relacionadas ao cisma entre os clérigos e os leigos». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o Papa Sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9

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Alexandre VI. Volker Reinhardt. «Alexandre VI estava confiante no facto de que teria tempo de sobra para as suas realizações. A que se devia esse optimismo, vindo de um homem que, segundo os padrões da época, já era considerado um ancião?»

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De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgia
«(…) Rodrigo Borja nasceu, provavelmente, no primeiro dia de 1431. Ou, também presumivelmente, um ano depois. Embora a sua data de nascimento exacta seja cercada de dúvidas, uma coisa é certa: mesmo sendo um amante de festas opulentas e glamourosos bailes nocturnos, não celebrava o seu aniversário de forma ostensiva. Não era prioridade de um pontifex maximus comemorar a saída do útero materno, e sim o dia de sua nomeação como sucessor de Pedro. A escolha do Espírito Santo, de acordo com a versão oficial, outorgava ao predestinado, de facto, uma segunda existência, uma existência superior. Como símbolo dessa transformação, os papas assumem, até aos dias atuais, um novo nome. Assim, Rodrigo Borja, que havia muito já usava o nome italianizado para Borgia, passou a ser Alexandre VI em 11 de Agosto de 1492. Como pontífice, uma das suas maiores preocupações foi prolongar o seu pontificado, e, por conseguinte, a sua vida. Foi tão longe nessa obsessão que, a partir do ano-novo de 1502, resolveu pagar para garantir que viveria mais. Começou oferecendo 30 ducados a cada um de seus criados, acrescentando cinco ducados ao montante a cada ano. A contrapartida daqueles presenteados de forma tão generosa era garantir que o prémio chegasse a 100 ducados por cabeça, ou, em última análise, assegurar que Alexandre VI chegasse aos 86 anos de idade. A ideia por trás de tanta generosidade era conseguir algo das pessoas, tornando-as também beneficiárias do seu próprio benefício. Como os empregados conseguiriam prolongar a vida de seu senhor, não foi, no entanto, revelado. Provavelmente, por meio de orações. Pelo menos esse seria o método tradicional. Outros papas esperavam pelas preces de pobres seleccionados. Alexandre VI, ao contrário, apostava na consciência saudável sobre o lucro.
Mesmo com tais estimativas e empenho por conseguir uma expectativa de vida barata, Alexandre VI não era, de forma alguma, um caso isolado. Desfrutava a companhia de ilustres predecessores e teólogos. Todos eles tinham denunciado a contradição entre a majestade do papado e a curta duração da maioria dos pontificados como um escândalo que podia levar os cristãos à apostasia. Cuidados com o corpo e a higiene pessoal já faziam parte, desde muito tempo, do estilo de vida dos papas. No caso de Alexandre VI, no entanto, os seus contemporâneos acreditavam unanimemente que as precauções com saúde e longevidade deveriam beneficiar principalmente, se não exclusivamente, os Bórgia, ou seja, a expansão e protecção do poder familiar. Isso é o que indica também o momento dos generosos presentes de aniversário: 1503 tinha de ser o ano das decisões. A ordem era não morrer naquele momento.
Alexandre VI estava confiante no facto de que teria tempo de sobra para as suas realizações. A que se devia esse optimismo, vindo de um homem que, segundo os padrões da época, já era considerado um ancião? A confiança era alimentada, sem dúvida, pela tradição da família Bórgia. Desde muitas gerações, essa família estava convencida de que as suas modestas condições de vida nada tinham a ver com a sua origem nobre. Isso fez que os seus membros partissem do princípio de que um dia iriam ocupar o lugar que mereciam. Ressentimentos e esperanças desse tipo não eram incomuns naquela época. No caso dos Bórgia, somaram-se profecias precisas de que o destino os predestinara às mais elevadas honrarias. Muitas outras famílias que tinham conseguido subir na hierarquia social também lançavam mão de tais previsões. Dessa forma, justificavam seu sucesso como vontade divina. Não é de se estranhar que Alexandre VI acreditasse nas obras da previdência para justificar a história da sua linhagem. Dificilmente outra família da época teria tido uma ascensão tão vertiginosa quanto a sua. O destino, ao que parece, conduziu a família Bórgia da sua antiga pátria à terra prometida, e logo duas vezes, com tio e sobrinho, à Cátedra de Pedro». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o Papa Sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9

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domingo, 31 de julho de 2016

Vaticano no 31. Alexandre VI. Volker Reinhardt. «No caso do papa Bórgia, muitas questões permanecem em aberto. Não que faltem hipóteses, suposições ou especulações, mas nem sempre se pode apresentar provas. Para o historiador, reconhecer a falta de conhecimento…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Bórgia, o papa sinistro
«(…) A fronteira entre a verdade e a difamação desenfreada não está, em hipótese alguma, delimitada. Embora venha à tona com a devida clareza a que propósitos servem essas histórias escandalosas que circulam por aí, nem tudo o que se diz à boca pequena sobre o papa e sua família tem de necessariamente ter sido inventado, não se pretende de forma alguma favorecer o surgimento de histórias misteriosas. Em vez disso, trata-se de submeter a uma nova investigação todas as referências transmitidas, incluindo os documentos que nos últimos séculos tornaram-se acessíveis pela primeira vez: o que pode ser dado como certo, o que fica em aberto, o que é menos plausível, o que está obviamente errado? Isso soa como um trabalho de detective e, de facto, assemelha-se a ele. É possível ler a história de Alexandre VI e dos Bórgia como um romance policial. Não há nada de aviltante nisso. A revisão de indícios, a consideração de situações sob pontos de vista diferentes e muitas vezes contraditórios e, especialmente, a investigação dos motivos são actividades intelectuais de conotações nobres. Levam aos métodos da crítica das fontes e, com isso, a possibilidades, riscos e limites da história como ciência. E tem mais a oferecer do que meras teorias. Quem conhece Alexandre VI, em suas negociações com embaixadores de potências estrangeiras, e César Bórgia, ao lidar com seus inimigos, é instruído detalhadamente nas artes da propaganda, da manipulação e do engano, e tem todo o direito de tirar conclusões legítimas de que o abismo entre as aparências e a realidade na política persiste até hoje. A história ensina a vida. Mesmo com todas as semelhanças, as investigações a respeito de Alexandre VI e seus familiares apresentam uma diferença crucial em relação ao trabalho de detective. Os romances policiais geralmente acabam com a identificação dos culpados e da revelação de seus motivos. No caso do papa Bórgia, muitas questões permanecem em aberto. Não que faltem hipóteses, suposições ou especulações, mas nem sempre se pode apresentar provas. Para o historiador, reconhecer a falta de conhecimento e até mesmo a incapacidade de compreensão é, portanto, um acto de honestidade. A ideia central deste livro deve ser a tentativa de trazer á luz a árdua verdade histórica, tendo liberdade até mesmo para chegar a outros resultados que não aqueles das pesquisas do autor principal, que se abstém de todo e qualquer julgamento moral. As emoções que, todavia, permeiam o texto referem-se pura e simplesmente a observações, acções e sofrimentos dos contemporâneos. Não será essa discrição uma violação das regras que garantem a exactidão? Não será aqui exigida a expressão piedosa de compaixão para com os perseguidos, expropriados e assassinados? Há três maneiras de contestar. Por um lado, quanto menor for a imposição do autor, mais naturalmente será levado a tomar partido das vítimas. Por outro, os seus contemporâneos, Nicolau Maquiavel, Francesco Guicciardini e Francesco Vettori, só para mencionar três dos mais ilustres, já interpretaram os excitantes acontecimentos do pontificado Bórgia como um objecto que nos obriga a reflectir e conduz a novos universos de ideias. E em terceiro e último lugar, a admiração da posteridade diante do presente não será supostamente menor do que a nossa estupefacção perante Roma e o papado entre 1492 e 1503. Essa estupefacção está no começo de todas as tentativas de compreender Alexandre VI e os Bórgia». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o papa sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9.


Cortesia EEuropa/JDACT

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Alexandre VI. Volker Reinhardt. «No caso do papa Bórgia, muitas questões permanecem em aberto. Não que faltem hipóteses, suposições ou especulações, mas nem sempre se pode apresentar provas. Para o historiador, reconhecer a falta de conhecimento…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Bórgia, o papa sinistro
«(…) A fronteira entre a verdade e a difamação desenfreada não está, em hipótese alguma, delimitada. Embora venha à tona com a devida clareza a que propósitos servem essas histórias escandalosas que circulam por aí, nem tudo o que se diz à boca pequena sobre o papa e sua família tem de necessariamente ter sido inventado, não se pretende de forma alguma favorecer o surgimento de histórias misteriosas. Em vez disso, trata-se de submeter a uma nova investigação todas as referências transmitidas, incluindo os documentos que nos últimos séculos tornaram-se acessíveis pela primeira vez: o que pode ser dado como certo, o que fica em aberto, o que é menos plausível, o que está obviamente errado? Isso soa como um trabalho de detective e, de facto, assemelha-se a ele. É possível ler a história de Alexandre VI e dos Bórgia como um romance policial. Não há nada de aviltante nisso. A revisão de indícios, a consideração de situações sob pontos de vista diferentes e muitas vezes contraditórios e, especialmente, a investigação dos motivos são actividades intelectuais de conotações nobres. Levam aos métodos da crítica das fontes e, com isso, a possibilidades, riscos e limites da história como ciência. E tem mais a oferecer do que meras teorias. Quem conhece Alexandre VI, em suas negociações com embaixadores de potências estrangeiras, e César Bórgia, ao lidar com seus inimigos, é instruído detalhadamente nas artes da propaganda, da manipulação e do engano, e tem todo o direito de tirar conclusões legítimas de que o abismo entre as aparências e a realidade na política persiste até hoje. A história ensina a vida. Mesmo com todas as semelhanças, as investigações a respeito de Alexandre VI e seus familiares apresentam uma diferença crucial em relação ao trabalho de detective. Os romances policiais geralmente acabam com a identificação dos culpados e da revelação de seus motivos. No caso do papa Bórgia, muitas questões permanecem em aberto. Não que faltem hipóteses, suposições ou especulações, mas nem sempre se pode apresentar provas. Para o historiador, reconhecer a falta de conhecimento e até mesmo a incapacidade de compreensão é, portanto, um acto de honestidade. A ideia central deste livro deve ser a tentativa de trazer á luz a árdua verdade histórica, tendo liberdade até mesmo para chegar a outros resultados que não aqueles das pesquisas do autor principal, que se abstém de todo e qualquer julgamento moral. As emoções que, todavia, permeiam o texto referem-se pura e simplesmente a observações, acções e sofrimentos dos contemporâneos. Não será essa discrição uma violação das regras que garantem a exactidão? Não será aqui exigida a expressão piedosa de compaixão para com os perseguidos, expropriados e assassinados? Há três maneiras de contestar. Por um lado, quanto menor for a imposição do autor, mais naturalmente será levado a tomar partido das vítimas. Por outro, os seus contemporâneos, Nicolau Maquiavel, Francesco Guicciardini e Francesco Vettori, só para mencionar três dos mais ilustres, já interpretaram os excitantes acontecimentos do pontificado Bórgia como um objecto que nos obriga a reflectir e conduz a novos universos de ideias. E em terceiro e último lugar, a admiração da posteridade diante do presente não será supostamente menor do que a nossa estupefacção perante Roma e o papado entre 1492 e 1503. Essa estupefacção está no começo de todas as tentativas de compreender Alexandre VI e os Bórgia». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o papa sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9.

Cortesia EEuropa/JDACT