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terça-feira, 12 de novembro de 2019

A Obra Poética. Dom Francisco Manuel de Melo. Pedro Serra. «Até um livro me dizem que saiu agora que chamam Hora de Todos, que, com galantaria digna de seu autor, se esmera muito em provar, com discursos e exemplos, esta verdade»

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Apólogos Dialogais e diálogos alegóricos
«(…) Os Apólogos Dialogais, de que conservamos quatro completos, Os Relógios Falantes, O Escritório Avarento, A Visita das Fontes e O Hospital das Letras, o esboço de um outro, A Feira dos Anexins, e o indício de que um sexto terá ficado por realizar, O Cabido dos Coches, não foram editados em vida de dom Francisco Manuel Melo. A editio princeps dos quatro diálogos imaginários data da centúria de setecentos e só nos finais do século passado se deu a conhecer A Feira dos Anexins. Não são excepções, a este respeito, no conjunto da vastíssima obra do autor da farsa O Fidalgo Aprendiz. Seja como for, isso não significa que os diferentes textos, em conjunto e em separado, não tivessem circulado com feliz fortuna. Quando Francisco Manuel Melo escreve os Apólogos tinha já atrás de si obras sobremaneira importantes no âmbito do barroco peninsular. Em castelhano, escrevera a Historia de los movimientos y separación de Catalunya, obra dada à estampa em Lisboa em 1645, com o pseudónimo de Clemente Libertino. É, sem dúvida, o livro que lhe granjeou mais fama em Espanha. Juan Luis Alborg, no capítulo referente ao Barroco da sua conhecida Historia de la literatura española, recorda as palavras encomiásticas de Cayetano Rosell, para quem o texto historiográfico de Francisco Manuel é la joya de más precio que brilla en todo nuestro tesoro histórico e, ainda, el modelo más perfecto de aquel siglo.
O próprio Alborg se pronuncia em termos elogiosos:

Melo, evidentemente, maneja un perfecto castellano y posee extraordinarias dotes para narrar y describir; sus imágenes son tan poderosas como certeras, y lo mismo los personajes que los hechos son definidos con una robusta y gráfica energía que nos parece lo más sobresaliente de la obra.

Em 1650 redige a Carta de Guia de Casados, a sua primeira obra em prosa escrita em português, texto que se destaca da tradição moralística peninsular sobre o casamento, publicando-o por primeira vez em 1651. E, claro está, há que mencionar obrigatoriamente O Fidalgo Aprendiz, escrito à volta de 1646, caso singular no panorama depauperado do teatro português coevo. Três textos que, por si sós, reservam a Francisco Manuel um lugar cimeiro na República das Letras de seiscentos. Contudo, e esta é matéria de consenso, os Apólogos superariam esses conseguimentos, já de si notáveis. Do Hospital das Letras, por exemplo, dirá um Alexandre Herculano que é certamente por todos os títulos o melhor e mais claro testemunho da vasta lição de Francisco Manoel, bem como da clareza do seu juízo em matérias literárias. O Prof. Rodrigues Lapa refere-se à constância do consenso crítico em relação aos Apólogos quando, na apresentação da sua edição de Os Relógios Falantes, afirma serem na opinião da maioria, a sua melhor obra, a que resume na verdade as prendas do seu espírito: a prontidão do chiste, a rica fantasia e a observação moral da vida e dos homens. Para Giacinto Manuppella, um dos mais documentados estudiosos destes textos, são quatro obras-primas, repassadas de imperecível vitalidade artística.
Com Os Apólogos Dialogais, Francisco Manuel insere-se numa tradição de textos cujo modelo português das primeiras décadas do século XVII é a Corte na Aldeia, de Rodrigues Lobo. Por outro lado, é o próprio Francisco a estimular a aproximação comparativa com outros textos peninsulares afins. O nome que imediatamente se nos afigura comparável é o de Francisco Quevedo, de resto amigo e correspondente de Francisco. Em Os Relógios Falantes, a Fonte Velha faz referência a La hora de todos e fortuna con seso do autor espanhol:

Até um livro me dizem que saiu agora que chamam Hora de Todos, que, com galantaria digna de seu autor, se esmera muito em provar, com discursos e exemplos, esta verdade.

Mais ainda, na Dedicatória de A Visita das Fontes, a Cristóvão Soares Abreu, Francisco recordaria uma vez mais o poeta espanhol: neste estado me acolheu esta leve ilusão que agora vos comunico. Não foi sonho, pois não é de juro e herdade que hajam de sonhar todos os dons Franciscos. Sonhou o de Quevedo, porque tinha ou Fama ou Sorte sobre que podia dormir seguro. Mas eu, que há tantos anos que não repouso, mais depressa, de muito desvelado, escreverei, antes que sonhos, dilírios!» In José Pina Martins, A Obra Poética, Dom Francisco Manuel de Melo, Excerto, História e Antologia da Literatura Portuguesa, Século XVII, nº 31, FCG, HALP, 2004, ISSN 1645-5169.

Cortesia da FCG/JDACT

Vésperas de Sombra. Nuno Júdice. «Ficou no carro, em frente da porta, observando a atitude dos homens de meia-idade, hesitando uns segundos antes de tocarem à campainha»

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«(…) Nos dias de feira, os Proprietários que saem de suas casas durante um ou dois dias para vir à cidade realizar os seus negócios, realizam também outros negócios durante a noite, aproveitando para se libertarem de longos jejuns, mesmo os casados, porque as mulheres legítimas acabam por perder o apetite do sexo, e afastam-se deles, mudando até para outros quartos nos fundos das casas, como se as suas barrigas se fechassem depois de terem dado os filhos que tinham de dar e os cuidados domésticos as obrigassem a pôr de lado a pose feminina que provoca o desejo, além de que os próprios maridos pouco se importavam com isso, preferindo recorrer ao plano de fora, o Senhor não era excepção a esse ritual, conhecendo perfeitamente o caminho que levava à rua do bordel que, nessa altura ainda não tinha sido encerrado por força da lei; mas nesse ano hesitou antes de entrar, como se não quisesse mostrar uma sofreguidão que já não era capaz de sentir, até porque conhecia quase todas as mulheres que ali estavam, e esse conhecimento antecipado dos gestos do sexo que cada uma delas executava lhe esgotasse o prazer.
Ficou no carro, em frente da porta, observando a atitude dos homens de meia-idade, hesitando uns segundos antes de tocarem à campainha. Apercebeu-se de movimentos no patamar, onde um outro homem conversava com alguém que não via, já na obscuridade da escada, até que o homem acabou por subir, e uma mulher assomou, o rosto jovem mas demasiado pintado, e os cabelos penteados de forma a correrem para cima dos ombros. Os outros avançaram, entrando também eles para esse patamar, onde se demoraram menos tempo do que o cliente anterior, talvez porque a decisão estivesse já formada e tivesse bastado a imagem de Eva para que os últimos escrúpulos tivessem desaparecido, além de que uma decisão de grupo é sempre mais sólida do que a vontade individual, dominada muitas vezes por um remoto sentimento do pecado que nem a consciência de que o mal será redimido por uma futura confissão pode evitar, sobretudo porque essas confissões são sempre penosas, e ainda mais quando o padre que está por detrás das grades é alguém conhecido, capaz de reconhecer a voz que descreve a fuga conjugal, e carregando então no número de terços da penitência, proporcional à responsabilidade social da ovelha desgarrada numa noite de lençóis sujos.
O Senhor saiu do carro, aproximando-se do prédio baixo, de janelas fechadas, mas deixando ver pelas frinchas uma luz que lhe pareceu vermelha, embora não tivesse a certeza de que fosse aquela a luz que servia para iluminar aqueles encontros que serviam de coroação ao fim de festa, um fogo de artifício erótico muitas vezes acabando na decepção com que a mulher dava por findo o acro e despedia o homem, secamente. A luz agitou-se; e percebeu que era um cortinado vermelho que escondia de fora os encontros secretos. Perguntou o que estava ali a fazer, ou porque não entrava, e repetiu instintivamente o gesto de apalpar o sexo, ouvindo de súbito os guinchos dos bácoros e quem os capadores tinham arrancado a força: viu-se na situação deles, e apercebeu-se de que começara a engordar, e que isso o tinha afastado do desejo, mas não da tentação, que agora o despertava, tanto mais que um outro rosto o olhava com acenos provocatórios da porta. Mas a chuva começou a cair com mais força, batendo nas pedras, e obrigou-o a correr de volta para o carro, onde se meteu já completamente encharcado, preparando-se para uma gripe certa, com a humidade que se formava nos vidros a impedi-lo de ver um mundo subitamente ameaçado pelo dilúvio. Voltou para casa devagar, sabendo que iria demorar o dobro do tempo, obrigado a conduzir devagar, com os faróis no máximo mas, mesmo assim, não o deixando ver mais do que um palmo de alcatrão em frente, a não ser quando se cruzava com outros faróis e assistir por instantes, a uma dança de cortinas de água por entre troncos de árvores de que só via as barras brancas da cal.
Continuou a ver esse bailado durante algum tempo, na cozinha, enquanto aquecia o jantar, enquanto os mil ruídos de uma casa velha, numa noite de chuva, lhe traziam sinais de presenças múltiplas, que não entendia, pensando obsessivamente naquele rosto cujo apelo recusara. Ouviu então bater à porta, várias vezes, o que o fez correr para a abrir, já que o toque insistente traduzia o desespero de quem devia estar a apanhar com a água toda do céu, mas não, a figura que estava em frente da porta era a de alguém que reencontrara de passagem, no mercado, e a quem dissera para aparecer, para lembrar uma adolescência em que se tinham cruzado, e ele tinha gostado dela mas, numa idade em que essas coisas não se diziam, só o remorso por se ter calado lhe servia de tormento. Ajudou-a a entrar, e riram-se enquanto ele tentava fechar o grande chapéu de chuva preto, de onde escorria uma cascata que inundava o átrio, quando ele fechava a Porta vencendo a resistência do vento». In Nuno Júdice, Vésperas de Sombra, Quetzal Editores, Lisboa 1998, ISBN 972-564-359-3.

Cortesia de Quetzal Editores/JDACT

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

A Obra Poética. Dom Francisco Manuel de Melo. José Pina Martins. «Dos seus quatro Apólogos Dialogais (só publicados em 1721), figuram breves excertos que permitem entrar no ambiente de cada um dos textos»


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(excerto)
«(…) Não raro, as fontes clássicas insinuam na palavra poética o recurso a uma erudição profundamente assimilada, mas porque o poeta sabe colocá-la no seu verdadeiro plano de arte ou de artifício, nunca a cultura abafa a experiência, e por isso nunca o artifício sábio ou técnico se sobrepõe à arte. Mas estamos em crer que os sonetos mais artisticamente valiosos de Francisco Manuel Melo são os de tema predominantemente religioso, como Antes da Confissão. Já num outro estudo tivemos oportunidade para relevar os elementos essenciais de valorização estética desta composição e não vamos aqui repetir-nos. A palavra poética, nesta parte de As Segundas Três Musas, assume, como na Retórica renascentista, a plenitude de um valor directamente ligado ao humano. Não há dúvida de que uma tal poesia exprime, na arte, o próprio homem.

As Éclogas
A Sanfonha de Euterpe, segunda parte de As Segundas Três Musas, é formada por éclogas e cartas. Já se observou que falta às primeiras o ambiente genuinamente pastoril que deveria caracterizar o género, mas nisto, como aliás na própria substância doutrinal, o Melodino segue a lição e o exemplo de Sá Miranda, seu modelo também nas cartas. A écloga Casamento, que integra o capítulo II de PEM, é talvez, neste domínio, o exemplo mais representativo. O tema era muito do agrado do nosso autor, que o tratou também na Carta de Guia de Casados. Os dois pastores do diálogo discordam de critério, quanto às virtudes a preferir na mulher, já que um opta pela beleza e outro mais solidamente pelos bens materiais. O cura, discreto e avisado segundo o cânone do ideal normativo da época, concilia as duas opiniões de acordo com um ideal de equilíbrio e moderação. A lição do meio termo é igualmente preconizada nas éclogas Temperança e Rústica. Mediano, aliás, é o nome de um dos interlocutores de Temperança, cujo conselho, de resto, pode resumir-se nos dois versos que, com outros, se encontravam gravados no templo aonde os dois pescadores (Afouto e Medroso) são levados por Mediano:

caminha sempre a um justo fim direito,
fugindo todo extremo perigoso.

E assim como, em Basto, Gil exprime as ideias de Sá Miranda, na écloga Rústica, por exemplo, Cremente tem palavras cujo tom de pessimismo profundo e sentido reflecte a experiência dolorosa de Francisco Manuel Melo. A lição de moralidade, que informa o suco didáctico das éclogas, não apagou o sinete autêntico de transposição da vida vivida na palavra poética. Mas as cartas são, a este respeito, ainda mais interessantes.
[…]

«Dos seus quatro Apólogos Dialogais (só publicados em 1721), figuram breves excertos que permitem entrar no ambiente de cada um dos textos. São eles:

Relógios falantes;
O Escritório avarento;
A Visita das fontes;
O Hospital das letras.
(existe ainda um quinto diálogo, ou melhor, um esboço apenas, intitulado A Feira dos Anexins, publicado apenas em 1875).

Trata-se de diálogos encenados, na tradição da Corte na Aldeia, de Rodrigues Lobo e onde é patente a presença, sempre reinventada, de Quevedo. Por exemplo, no primeiro diálogo, entre relógios diferentes, da cidade e da aldeia, vão sendo comentados os costumes de uma época, numa reflexão cheia de humor sobre a vida e a morte, a condição dos humanos; ou, na Visita das Fontes, uma conversa entre fontes, a velha e a nova, que comenta quem delas se aproxima e distancia, proporcionando um retrato da vida e costumes de uma época e de um lugar; por sua vez, Hospital das letras centra-se numa reflexão sobre livros e literatura. Este e os outros diálogos inscrevem pois uma posição reflexiva e crítica, de grande ironia, por vezes sarcástica, perante a sociedade e os seus mecanismos e instituições (a Justiça, sobretudo), numa espécie de construção alegórica da sociedade, da vida humana com seus vícios e virtudes. Aparentemente, também aqui ficam inscritos elementos da experiência de vida do seu Autor». In Isabel Allegro Magalhães.

In José Pina Martins, A Obra Poética, Dom Francisco Manuel de Melo, Excerto, História e Antologia da Literatura Portuguesa, Século XVII, nº 31, FCG, HALP, 2004, ISSN 1645-5169.

Cortesia da FCG/JDACT

domingo, 10 de novembro de 2019

A Obra Poética. Dom Francisco Manuel de Melo. José Pina Martins. «Quer tratando o tema da liberdade individual, ele que se encontrava prisioneiro na Torre e bem conhecia os grilhões da vida cortesã…»

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(excerto)
«Dom Francisco Manuel Melo (1608-1666) ocupa de há muito tempo, como prosador, um lugar eminente na história da literatura portuguesa. São poucos, porém, os críticos que tenham consagrado à sua obra poética a atenção que ela merece. Já alhures escrevemos que a minimização do valor poético de Francisco Manuel Melo é, não raro, o resultado de posições apriorísticas ou ideias preconcebidas. Os estudiosos mais sérios da nossa terra insistem em ver em As Segundas Três Musas de Melodino, insertas na segunda parte do grosso volume das Obras Métricas (Lyon, 1665), mais um produto do talento multiforme do autor, do que a expressão literária autêntica de uma experiência humana profundamente sentida e vivida. Estamos em crer que, salvo poucas e honrosas excepções, podem contar-se pelos dedos aqueles que algum dia tenham contactado, em convívio diuturno, o mundo poético do Melodino, pois, de contrário, ter-se-iam logo apercebido do valor estético ímpar de algumas composições. Entre aqueles que, entre nós, estudaram a poesia de Francisco Manuel, merecem ser distinguidos José Pereira Tavares que, em 1921, nos deu uma edição antológica das suas Rimas Portuguesas e Orações Académicas, e, mais recentemente, António Correia de A. Oliveira, que ao nosso autor consagrou vários estudos de valor excepcional. Outros investidores se têm ocupado do Melodino, nomeadamente Hernâni Cidade e Maria de Lourdes Belchior, com invulgar argúcia e erudição: mas não em trabalhos monográficos, ex professo dedicados à sua poesia. Não nos cabe, neste prefácio, estudar mais ou menos detidamente As Segundas Três Musas, mas só dedicar-lhes um antelóquio superficial: a poesia apresentar-se-á por si mesma, no valor genuíno da sua significação humana e estética. Seja-nos, contudo, lícito pôr em relevo um ou outro aspecto temático e de técnica formal mais digno de realce, principalmente numa perspectiva de pesquisa dos valores de fidelidade artística da palavra significante à sua carga vital de significado. Corresponde, então, a poesia do Melodino às dores da experiência vivencial expressa poeticamente? Cumpre-nos aqui observar, in limine, que o prisioneiro da Torre Velha fez da sua vida um poema, ou melhor, a sua vida está toda ela, com o sinete de uma experiência dolorosa, nalguns dos seus poemas. Documentá-lo é, porventura, mais fácil do que enunciá-lo.

Os Sonetos
A primeira parte de As Segundas Três Musas é formada por 100 sonetos, alguns deles documentos interessantes de engenhoso conceptismo, com profusão de imagens requintadas e metáforas de elaboração aguda. Nascem, assim, obscuridades e ambiguidades intencionais, bem de acordo com os preceitos da doutrina barroca. Não obstante tudo isso, que é afinal o tributo pago pelo autor à moda do tempo, já um crítico de grande autoridade foi levado a escrever que o nosso poeta preanuncia, nesta parte da sua obra, a lira anteriana. Quer tratando o tema da liberdade individual, ele que se encontrava prisioneiro na Torre e bem conhecia os grilhões da vida cortesã, quer repetindo alguns tópicos do petrarquismo numa poesia amorosa que, apesar da imitação, ostenta o sinete de uma visível originalidade, Francisco Manuel consegue superar os esquemas artificiais de uma arte toda voltada para a quinta essência do jogo dialéctico e do brinco subtil.
Não raro o tom vagamente preceptivo e normativo identifica-se com o epigramático: aliás o poeta hauria a lição em fontes autênticas, como são as da sabedoria popular que exprime o mais saboroso do seu suco em provérbios e ditos exemplarmente concisos. Também a consciência do tempo breve, da fugacidade da vida, da efemeridade das coisas, na certeza de que viver é peregrinar na terra do exílio, tem em Francisco Manuel um intérprete inspirado, a despeito da dificuldade de um tal tratamento poético, já então exemplarmente fixado em obras-primas consagradas como as de Sá Miranda e Camões, para só referirmos dois nomes da literatura portuguesa que lhe serviram de modelos e de mestres. Pessimismo antropológico e cosmológico até, mas nem sempre expresso através das formas literárias consuetas, dos achadilhos conceituosos da tese e da antítese, como em Petrarca e nos petrarquistas, da afirmação e da negação, da dúvida e da fé, da ilusão e da sua consciência lúcida (desilusão), da aceitação e da atitude inconformista, do crer e do duvidar. É talvez especificamente melodínico o recurso à expressividade de um humorismo transcendente para significar a problemática da dor pelo próprio sujeito experimentada. A vocação do moralista ergue-o na passagem do concreto para a reflexão sentenciosa, mas sem um divórcio temático do aforístico em relação ao vivencial ou ao religioso». In José Pina Martins, A Obra Poética, Dom Francisco Manuel de Melo, Excerto, História e Antologia da Literatura Portuguesa, Século XVII, nº 31, FCG, HALP, 2004, ISSN 1645-5169.

Cortesia da FCG/JDACT

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Notas sobre O Triunfo do Rosário. Ana Hatherly. «… o teatro produzido por autores portugueses no período barroco deve ser a área da história da nossa literatura menos conhecida e estudada»

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Prólogo
«Do ponto de vista artístico, o reinado de João V foi suficientemente longo, rico e diversificado para permitir a confluência de correntes de pensamento tão opostas como o Barroco e o Iluminismo, que nele coincidiram em fases também opostas: o primeiro atingindo o seu declínio enquanto o segundo despontava já com a característica agressividade do novo. No que diz respeito à literatura, e apesar dos inegáveis sintomas do seu ocaso, o estilo barroco, nessa sua etapa final, ainda deu origem a algumas obras de verdadeira apoteose de todo um tesouro de saber e de experiência que se despedem numa espectacular explosão de beleza. Quando se desenha já no horizonte a iminência do inutilia truncat, num último momento do que se poderia chamar o carpe diem das formas opulentas, assiste-se ainda a um derradeiro mergulho no prazer do excesso, e a um derradeiro brado dos ditames da Contra-Reforma. O teatro de Sóror Maria do Céu, publicado durante o reinado de João V, pode bem ser considerado como uma espécie de epítome desse fim de época do Barroco português na sua vertente contrarreformista, culminância tardia dum estilo e duma maneira de conceber o mundo que iriam em breve ser destronados pela implantação das novas tendências racionalistas.
Da sua produção teatral conhecem-se actualmente nove peças, todas publicadas na primeira metade do século XVIII, mas não obstante estarem disponíveis na Biblioteca Nacional, não consta que alguma vez tenham sido representadas no nosso século, nem tão pouco comentadas (ou até talvez lidas) pela maior parte dos estudiosos da literatura portuguesa. A explicação para esse facto é simples: o teatro produzido por autores portugueses no período barroco (e não só no reinado de João V) deve ser a área da história da nossa literatura menos conhecida e estudada. Ora sabendo-se, como se sabe, que, durante esse cerca de século e meio em que hoje se situa o Barroco português na literatura, a produção dramática em vários géneros foi considerável, como explicar esse desinteresse, que quase só abre excepção para o Fidalgo Aprendiz e para as obras de António José Silva? A razão desse desinteresse é conhecida: a quase totalidade desse teatro está escrita em castelhano ou em latim. Mas, fora das obras citadas, mesmo o que se julga ser uma insignificante parte do teatro barroco escrito em português (entremezes, etc.) só há bem pouco começou a merecer a atenção de alguns estudiosos.
Quanto a nós, à justificação do desinteresse pelo nosso teatro dessa época por motivo da língua (ou línguas) em que foi predominantemente escrito, deve acrescentar-se o anátema que desde a crítica neoclássica tem pesado entre nós sobre o estilo barroco, e sobretudo o desconhecimento material de quase toda essa produção, pois dessas obras conhecem-se, na maior parte dos casos, apenas referências bibliográficas que não foram confirmadas por levantamentos sistemáticos. Portanto, enquanto não for feito um levantamento exaustivo dessa produção e não forem ultrapassadas as dificuldades com o estilo e com a língua, será difícil atingir-se um conhecimento suficientemente aprofundado e, sem ele, não se poderá fazer um juízo de conjunto que seja válido. A nossa tradução e apresentação dos cinco Autos que constituem o Triunfo do Rosário de Sóror Maria do Céu é um contributo no sentido de chamar a atenção, não só para a obra em si, mas para o teatro dos autores portugueses dessa época. Estes cinco autos, bem como as outras peças de Sóror Maria do Céu, foram publicados em Lisboa em castelhano e, por isso, constam tanto da História do Teatro Espanhol como da História do Teatro Português.
Em 1981, o teatro desta autora portuguesa foi objecto dum breve mas notável estudo do lusófilo José Ares Montes, que o comparou ao de Calderón de la Barca e ao de Sor Juana Inés de La Cruz. O Triunfo do Rosário, ponto culminante na extensa obra dessa magnífica escritora, integra-se perfeitamente no conjunto da sua produção em prosa e em verso, quer na temática quer no estilo, já que toda ela gira à volta dos problemas centrais da salvação da alma e dos meios para a atingir. Do mesmo modo que Calderón de la Barca, no seu teatro alegórico, Sóror Maria do Céu faz o seu sermão artístico, integrando-se assim no quadro mental que produziu aquela cultura dirigida que Maravall definiu como característica do período barroco. De facto, a afincada insistência posta na propagação dos princípios da Fé e na observância do culto que, destinados a salvar o Homem, fundamentam a política da Igreja contrarreformista, encontra-se na obra de Sóror Maria do Céu, como na de outros escritores seus coetâneos. Mas a obra de Sóror Maria do Céu excede em muito os limites duma arte ao serviço da religião, impondo-se, para além da mensagem edificante, como exemplo duma criatividade esplêndida servida por uma segura arte da escrita. Todos estes aspectos convergem nos cinco Autos do Triunfo do Rosário produzindo um conjunto
que não deixará de impressionar todos os que forem sensíveis à sua qualidade artística, mesmo que o não sejam já à sua mensagem ideológica. Cremos bem que estas obras, sendo paradigmáticas duma visão do mundo que já não é a nossa, de qualquer modo fazem parte duma herança cultural que nos compete estimar e defender. [...]» In Ana Hatherly, Notas sobre O Triunfo do Rosário, Lisboa, Quimera, 1992, Fundação Calouste Gulbenkian, Literatura de Conventos, Autoria Feminina, Halp 32, 2005.

Cortesia de FCG/JDACT

Apólogos Dialogais e diálogos alegóricos. Francisco Manuel Melo. Pedro Serra. «… até um livro me dizem que saiu agora que chamam ‘Hora de Todos’, que, com galantaria digna de seu autor…»

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«(…) Para Giacinto Manuppella, um dos mais documentados estudiosos destes textos, são quatro obras-primas, repassadas de imperecível vitalidade artística. Com Os Apólogos Dialogais, Francisco Melo insere-se numa tradição de textos cujo modelo português das primeiras décadas do século XVII é a Corte na Aldeia, de Rodrigues Lobo. Por outro lado, é o próprio Francisco a estimular a aproximação comparativa com outros textos peninsulares afins.
O nome que imediatamente se nos afigura comparável é o de Francisco Quevedo, de resto amigo e correspondente de Francisco Melo. Em Os Relógios Falantes, a Fonte Velha faz referência a La hora de todos e fortuna con seso do autor espanhol: até um livro me dizem que saiu agora que chamam Hora de Todos, que, com galantaria digna de seu autor, se esmera muito em provar, com discursos e exemplos, esta verdade. Mais ainda, na Dedicatória de A Visita das Fontes, a Cristóvão Soares Abreu, Francisco recordaria uma vez mais o poeta espanhol: neste estado me acolheu esta leve ilusão que agora vos comunico. Não foi sonho, pois não é de juro e herdade que hajam de sonhar todos os Dons Franciscos. Sonhou o de Quevedo, porque tinha ou Fama ou Sorte sobre que podia dormir seguro. Mas eu, que há tantos anos que não repouso, mais depressa, de muito desvelado, escreverei, antes que sonhos, dilírios! Uma comparação, na verdade, marcada pela ironia. Francisco Melo, ao distinguir sonhos de delírios, demarca os seus textos dos de Quevedo, que constituem um horizonte intertextual feito de diferenças e de convergências. Note-se que o comentário do autor de A Visita das Fontes é bastante rico de sentido. Se o onirismo quevediano é marcado, na óptica do nosso moralista, por uma existência segura, o delírio pressupõe o auto-reconhecimento de que as tribulações existenciais imprimem uma especificidade ao seu texto. O factor biográfico, além de explícito num autor que reconhece que os textos e os livros que cita são a experiência e a memória, é uma presença implícita nos apólogos. Esta constatação não é de somenos importância. O valor moralístico nasce de um conjunto de circunstâncias vitais que funcionam como motor da escrita. Um bom exemplo é o ataque à lentidão da aplicação da justiça em Os Relógios Falantes: Francisco padeceu, como bem sabemos, os reveses de uma perseguição pessoal que o levou ao encarceramento e ao exílio. Simultaneamente, o passo é revelador do modo como Francisco lida com possíveis influências. A relação com os Sueños de Quevedo é pouco ou nada ansiosa. A configuração genológica sonho (de Quevedo) é adaptada à subjectividade do autor português. Descentrando o seu texto, não há que esquecer que Francisco Melo classificou os Apólogos, no conhecido elenco bibliográfico que antecede as Obras Morales, como obras exquisitas, o autor de O Fidalgo Aprendiz dá fortes indícios de uma relação com a categoria género, e com a auctoritas dos que o cultivam ou dele são paradigmas, algo lassa. Um bom exemplo é a Carta de Guia de Casados, texto onde convergem a epistolografia, a tratadística, ou, talvez melhor, o ensaísmo, e, porque não, a autobiografia. Voltando ao passo antes citado, ele deve ser entendido num século e num sistema literário que permeabilizam e fecundamente interpenetram os géneros literários. O rigorismo genológico é apanágio de outros programas literários, anteriores e posteriores a Francisco Melo. Estes aspectos devem ser tidos em linha de conta quando partimos para a comparação de qualquer dos Apólogos com textos afins. [...]» In Pedro Serra, Apólogos Dialogais e diálogos alegóricos, Francisco Manuel Melo, Apólogos Dialogais, Os Relógios Falantes, A Visita das Fontes, Coimbra: Angelus Novus, 1998, Fundação Calouste Gulbenkian, Halp 31, 2004.

Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT

Apólogos Dialogais e diálogos alegóricos. Francisco Manuel Melo. Pedro Serra. «A ‘editio princeps’ dos quatro diálogos imaginários data da centúria de setecentos e só nos finais do século passado se deu a conhecer ‘A Feira dos Anexins’»

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«Os Apólogos Dialogais, de que conservamos quatro completos, Os Relógios Falantes, O Escritório Avarento, A Visita das Fontes e O Hospital das Letras, o esboço de um outro, A Feira dos Anexins, e o indício de que um sexto terá ficado por realizar, O Cabido dos Coches, não foram editados em vida de Francisco Manuel Melo. A editio princeps dos quatro diálogos imaginários data da centúria de setecentos e só nos finais do século passado se deu a conhecer A Feira dos Anexins. Não são excepções, a este respeito, no conjunto da vastíssima obra do autor da farsa O Fidalgo Aprendiz. Seja como for, isso não significa que os diferentes textos, em conjunto e em separado, não tivessem circulado com feliz fortuna. Quando Francisco Manuel Melo escreve os Apólogos tinha já atrás de si obras sobremaneira importantes no âmbito do barroco peninsular. Em castelhano, escrevera a Historia de los movimientos y separación de Catalunya, obra dada à estampa em Lisboa em 1645, com o pseudónimo de Clemente Libertino. É, sem dúvida, o livro que lhe granjeou mais fama em Espanha. Juan Luis Alborg, no capítulo referente ao Barroco da sua conhecida Historia de la literatura española, recorda as palavras encomiásticas de Cayetano Rosell, para quem o texto historiográfico de Francisco Melo é la joya de más precio que brilla en todo nuestro tesoro histórico e, ainda, el modelo más perfecto de aquel siglo. O próprio Alborg se pronuncia em termos elogiosos: Melo, evidentemente, maneja un perfecto castellano y posee extraordinarias dotes para narrar y describir; sus imágenes son tan poderosas como certeras, y lo mismo los personajes que los hechos son definidos con una robusta y gráfica energía que nos parece lo más sobresaliente de la obra. Em 1650 redige a Carta de Guia de Casados, a sua primeira obra em prosa escrita em português, texto que se destaca da tradição moralística peninsular sobre o casamento, publicando-o por primeira vez em 1651. E, claro está, há que mencionar obrigatoriamente O Fidalgo Aprendiz, escrito à volta de 1646, caso singular no panorama depauperado do teatro português coevo. Três textos que, por si sós, reservam a Francisco Melo um lugar cimeiro na República das Letras de seiscentos. Contudo, e esta é matéria de consenso, os Apólogos superariam esses conseguimentos, já de si notáveis. Do Hospital das Letras, por exemplo, dirá um Alexandre Herculano que é certamente por todos os títulos o melhor e mais claro testemunho da vasta lição de Francisco Manoel, bem como da clareza do seu juízo em matérias literárias. Rodrigues Lapa refere-se à constância do consenso crítico em relação aos Apólogos quando, na apresentação da sua edição de Os Relógios Falantes, afirma serem na opinião da maioria, a sua melhor obra, a que resume na verdade as prendas do seu espírito: a prontidão do chiste, a rica fantasia e a observação moral da vida e dos homens». In Pedro Serra, Apólogos Dialogais e diálogos alegóricos, Francisco Manuel Melo, Apólogos Dialogais, Os Relógios Falantes, A Visita das Fontes, Coimbra: Angelus Novus, 1998, Fundação Calouste Gulbenkian, Halp 31, 2004.

Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT

Introdução a Bernardim Ribeiro. Teresa Amado. «Não tendo nunca conseguido dissolver a sensação de estranheza que me causa a ‘Menina e Moça’ e escapar ao sentimento de um certo fracasso na tentativa de a perceber…»

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O que se sabe sobre Bernardim Ribeiro
«Não existe nenhum documento de interesse biográfico sobre Berrnardim Ribeiro. Crê-se que nasceu na vila do Torrão, no Alentejo, por uma alusão que assim pode ser interpretada numa das suas éclogas. É certo que frequentou a corte onde foi poeta conhecido, pois figura entre os colaboradores do Cancioneiro Geral, de Garcia Resende (a menos que esse Bernardim Ribeiro não fosse o mesmo que escreveu a Menina e Moça…), e Sá Miranda refere-se-lhe em obras suas como amigo e companheiro de letras e, com as suas éclogas, introdutor do bucolismo em Portugal. A partir da data da publicação do Cancioneiro Geral, 1516, pode conjecturar-se que nasceu na última ou penúltima década do século anterior. Quanto à data da sua morte, se a cópia da Menina e Moça contida no manuscrito conhecido como de Eugenio Asensio é de facto anterior a 1543, como ele supõe, e atendendo à quase certeza que se pode deduzir do estado do texto e da adenda que ele traz, de que o autor morrera alguns anos antes, deverá situar-se próxima de 1540, ou até 1536.
É tudo. A viagem a Itália com Sá Miranda é duvidosa, como duvidosa é a identificação deste Bernardim Ribeiro com contemporâneos seus desse nome, de quem há referências. Provadas como falsas estão todas as invenções que se têm escrito sobre a identidade, ocupações, amores e doenças. As datas em que foram escritas as suas obras são igualmente desconhecidas. As 12 poesias que lhe são atribuídas no Cancioneiro Geral, anteriores a 1516, e a Écloga III, aparecida em folha volante com a data de 1536, são provavelmente as únicas cuja publicação se fez antes de o poeta morrer. A Menina e Moça é seguramente dos últimos anos da sua vida. A inexistência de mais dados sobre o autor dum conjunto de obras que tiveram indubitavelmente reconhecimento público (três edições no espaço de seis anos, cerca de quinze anos após a sua morte, numa época em que a impressão de obras portuguesas não era frequente) não se explica facilmente: A) doze poesias menores incluídas no Cancioneiro Geral sob o nome de Bernardim Ribeiro; B) Menina e Moça, em prosa, incluindo três composições em verso, o vilancete Pera tudo houve remédio, a cantiga à maneira de solau Pensando-vos estou, filha e o romance de Avalor; C) cinco Éclogas; D) sextina Ontem pôs-se o sol e a noute; E) romance Ao longo de üa ribeira; F) duas cantigas e outras composições curtas incluídas na edição de Ferrara.
Todas estas obras, com excepção das incluídas no Cancioneiro Geral e do romance Ao longo de üa ribeira, apareceram publicadas com indicação expressa de autoria na edição de Ferrara, em 1554, a cargo de Abraão Usque, na edição de Évora (com excepção das mencionadas em último lugar) em 1557, a cargo de de André Burgos, na edição de Colónia, cópia da de Ferrara, em 1559, a cargo de A. Birckmann. O romance Ao longo de üa ribeira, única composição portuguesa inserida no cancioneiro castelhano de 1550 (segundo Carolina Michaelis), só apareceu com as obras completas do poeta na edição de 1645. […]
Não tendo nunca conseguido dissolver a sensação de estranheza que me causa a Menina e Moça e escapar ao sentimento de um certo fracasso na tentativa de a perceber, não me é possível propor uma leitura no sentido de interpretação globalizante, capaz de integrar todos os elementos da novela e capaz de a integrar num quadro cultural definido. Se esta reacção corresponde a uma situação de facto, é possível que nunca venha a ser alterada, isto é, que a novela de Bernardim esteja destinada a permanecer misteriosa e a originar periodicamente apaixonadas e mais ou menos convincentes tentativas de interpretação. Mas admito que a investigação de manuscritos e edições progrida e que o conhecimento da época de Bernardim se alargue ao ponto de permitir chegar conclusões mais fundamentadas e cabais. O que tenho a apresentar são algimas notas de leitura e, por minha vez, algumas hipóteses. […]» In Teresa Amado, Introdução a Bernardim Ribeiro (excerto), Menina e Moça de Bernardim Ribeiro, colecção Textos Literários (Maria Alzira Aleixo, Lisboa, Editorial Comunicação, 1984, Fundação Calouste Gulbenkian, Halp 13, 2000.

Cortesia da FCGulbenkian/JDACT

sábado, 8 de novembro de 2014

Prosa Memorialista de Seiscentos. FCG. António J. Saraiva e Óscar Lopes. «…’ a melancolia e nublado português e a boa sombra e alegria castelhana: uns, noitibós tristes, e outros, pintassilgos alegres, [...] andam os portugueses à caça de uma melancolia, e sonham os castelhanos de noite como poderão levar um bom dia’»

Pintura de NicolasLancret
Cortesia de wikipedia

Prosa memorialista
(Excerto)
«A principal fonte de informação sobre este período é um diário particular referente aos acontecimentos decorridos entre 1662 e 1680, intitulado, Monstruosidades do Tempo e da Fortuna, de que ficaram vários manuscritos, um deles editado em 1888, e que tem sido atribuído com verosimilhança ao beneditino de Entre Douro e Minho, frei Alexandre Paixão. O ponto de vista deste diário é o de um moralista muito conservador, antijudaico, favorável a ao monarca Pedro e à alta aristocracia. Mas a obra contém informações valiosas, graças a certo e novo gosto de registar efemérides, muito característico da época barroca e ao qual se devem obras tão notáveis como as Memórias de Saint-Simon ou o Diário de Samuel Pepys. A título de exemplo, e pelo seu extraordinário interesse para a história do teatro em Portugal, citemos as referências contidas em Monstruosidades às cartas por títulos e comédias e uma lista, elaborada por acinte nitidamente antinobiliárquico, em que figuram 117 nomes da aristocracia, ou designações colectivas de grupos dirigentes do País, seguidos cada qual de um título de comédia espanhola que lhe faz a caricatura; assim, Francisco Manuel de Melo é caracterizado pelo título da comédia Lances de Amor y Fortuna, o que parece confirmar a tradição linhagista segundo a qual a sua prisão tem qualquer relação com aventuras amorosas.
Entre as obras de memórias da época filipina salienta-se a Fastigímia ou Fastigínia do jurisconsulto Tomé Pinheiro Veiga (c. 1570-1656), diário de uma estada do autor em Valhadolid em 1605, mas com inserção de comentários e acrescentos indubitavelmente posteriores, obra que correu em numerosas cópias manuscritas. O autor dedica a maior parte do texto à descrição minuciosa de cerimónias e festejos áulicos e à transcrição da picante esgrima de galanteios que travou com damas espanholas, cuja desenvoltura e liberdade o surpreenderam e deleitaram, em contraste com a tirania que em Portugal se usa com as filhas e as mulheres. Bom observador humorístico, Pinheiro Veiga sabe insinuar, com humor, uma visão crítica da espaventosa corte de Filipe II (III de Espanha), do rei, do duque de Lerma e outras personagens, de certos costumes castelhanos e portugueses, das exibições teatrais do culto religioso, como procissões de tocheiros e milhares de disciplinantes, sermões em que sucedem farsas solenes, etc. Em certos pontos, como no gosto da reportagem concreta, da minúcia significativa, no interesse com que em dado passo refere progressos técnicos recentes, o autor ganha um ar moderno, apesar do seu lastro de citações clássicas e de conceitos espirituosos. Um dos maiores interesses do livro reside no contraste que estabelece entre a melancolia e nublado português e a boa sombra e alegria castelhana: uns, noitibós tristes, e outros, pintassilgos alegres, [...] andam os portugueses à caça de uma melancolia, e sonham os castelhanos de noite como poderão levar um bom dia. Tomé Pinheiro Veiga, cujo espírito autonomista se revelou no próprio exercício da magistratura, resistindo à aplicação de leis castelhanas, e que aderiu mais tarde à Restauração, reage de modo por vezes sarcástico contra a constante caricatura com que em Valhadolid é alvejado o seu Portugalete, quer em piropos de castelhanas ou em alusões orais diversas, quer até em entremezes, denominados portuguesadas, acerca de fanfarronices e sentimentalismos ridículos de tipos fidalgos portugueses. No entanto, não se cansa de também criticar os preconceitos e pechas da aristocracia nacional, à luz do que vê em Castela: a brutal sujeição feminina (que vimos preconizada pela Carta de Guia de Casados); a tola presunção provinciana de estirpe e o feitio brigão; a exibição sentimentalona, a alternar com o gosto de falar de um modo obsceno; a falta de limpeza; o baixo nível de convivência. O mais curioso é que o próprio autor se recorta, no livro, como um obsessionado sentimental pelo belo sexo, rematando mesmo a Segunda Parte por um longo encarecimento das sublimidades do amor freirático que é difícil de tomar apenas como uma ironia, a não ser que funcione como auto-ironia.
Sob o ponto de vista literário, trata-se de uma das obras mais notáveis do nosso século XVII, graças a uma prosa cheia de vivacidade, a um extraordinário sentido de humor, ao seu equilíbrio entre a coloquialidade e a erudição no sentido em que se orientavam já as obras de Jorge Ferreira Vasconcelos. Outras obras seiscentistas de Memórias: o Diário (1731-33) do 4.º conde de Ericeira, e o livro que Eduardo Brasão publicou no Porto, 1940, sob o título de D. Afonso VI, atribuindo-o a António Sousa Macedo; o investigador brasileiro Afonso Pena Júnior reivindica a autoria desta última obra para Pedro Severim Noronha. É ainda como memorialistas que aqui se devem registar dois homens que, além de Rodrigues Lobo, preceptista e antologista epistolográfico, Francisco Manuel Melo, padre António Vieira e frei António Chagas, deixaram uma significativa correspondência: Vicente Nogueira (1585-1654), clérigo muito culto, que, exilado em Roma, dá em numerosas cartas ao marquês de Nisa informações bibliográficas, pareceres e observações dos costumes da grande cidade; e José Cunha Brochado (1652-1735), a quem uma longa missão diplomática em Paris proporcionou curiosas reflexões e comparações em numerosas cartas, além de dois tomos de Memórias e anedotas da Corte de França».

In António J. Saraiva e Óscar Lopes, Prosa Memorialista de Seiscentos (excerto), História da Literatura Portuguesa, Porto, Porto Editora, FCG, Lisboa, 2005, Halp 35, ISSN 1645-5169.

Cortesia de FCG/JDACT

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O Desafio Venturoso. António Barbosa Bacelar. Ana Hatherly. «Dentro do restrito panorama da novela barroca portuguesa, que agora começa aos poucos a ser descoberta, o “Desafio Venturoso” surge como uma narrativa bem urdida e bem trabalhada, que merece um lugar de destaque na ficção portuguesa de todos os tempos»

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(Excerto)
[...] O Desafio Venturoso insere-se no grande grupo da novela curta amatória que, embora de origem italiana, no período barroco tinha já uma arreigada tradição peninsular. Segundo Menendez y Pelayo esse género remontaria a meados do século XV florescendo ao lado das novelas de cavalaria mas diferindo destas consideravelmente, pois na novela erótico-sentimental dá-se mucha más importancia al amor que al esfuerzo, sin que por eso falten en ella lances de armas, bizarrias y gentilezas caballerescas, subordinadas aquella pasion que es alma y vida de la obra, complaciendose los autores en seguir su desarollo ideal y hacer descripción de los afectos de sus personajes. Es, pues, una tentativa de novela intima y no meramente exterior como casi todas las que hasta entonces se habian compuesto. Esta descrição aplica-se com bastante acerto ao Desafio Venturoso, novela curta amatória em que não faltam rasgos cavalheirescos ao lado da anatomia dos sentimentos das personagens. Não sendo propriamente uma narrativa exemplar, o Desafio Venturoso está próximo das novelas cervantinas, exibindo claramente, para lá de vestígios dessa poderosa tendência, aquilo que Evangelina Rodriguez Cuadros definiu como la dolorosa escisión barroca entre lo intelectual y lo sensible.
Considerando o seu argumento, veremos que Felício, amante (que se julga) traído por Lizarda, ao ter conhecimento da dimensão da sua desdita através do relato de Carlos (que ele salva da morte e de quem se torna amigo), acaba por ficar num impasse afectivo, dividido entre as leis do amor e as da amizade, não conseguindo resolver satisfatoriamente o conflito que se gera no seu íntimo. A solução para o problema do triângulo amoroso que se desenha entre Felício, Carlos e Lizarda, é encontrada por um processo frequente em novelas cervantinas, e que consiste na transformação do triângulo conflitual em quadrângulo de equilíbrio, pela adição de mais um elemento feminino (neste caso, Ângela, irmã de Lizarda), terminando a novela com o desejado desfecho feliz através da formação de dois casais.
No Desafio Venturoso é também muito evidente a presença do que Evangelina Rodriguez Cuadros classificou como a dupla articulação do aspecto individual/passional como aspecto de vinculação social, muito nítido no desenho das figuras: veja-se que as acções nobres são praticadas pelos senhores e as acções vis emanam da criada Lucinda. São ainda de destacar os aspectos de amor não-platónico, não-petrarquista, em relação à personagem principal feminina. Esta, por seu turno, fazendo eco dum costume frequente na época, quer nas novelas exemplares quer nas pastoris (em episódios intercalados), assume uma atitude varonil e até de índole criminal, pois Lizarda (se bem que para defender a sua honra) não só apunhala barbaramente Carlos, deixando-o a esvair-se em sangue, como ainda, mais tarde, disfarçada de cavaleiro, brande valorosamente a espada num duelo em que de novo põe em risco a vida do infeliz jovem.
O comportamento vil da criada, fulcro do engano à volta do qual gira toda a acção da novela, é eficazmente contrastado com o gesto impiedoso de Félix, pai de Lizarda, que ameaça matar Lucinda, castigo justificado pelo ultraje feito à sua honra. Porém o autor, que obviamente explora a situação para intensificar o cunho melodramático da narrativa, resolve a questão duma maneira elegante e caridosa, fazendo com que tanto os jovens amantes como o ofendido pai, concedam a Lucinda o seu perdão.
Dotada dum enredo que se deseja intenso e dramático, mas que não exclui os acentos líricos, esta novela em que os sentimentos e os actos estão em íntima consonância com o cenário natural, violento e dramático na serra da Estrela, idílico na serra de Sintra, possui um acentuado sabor romântico, embora datando de cerca de um século antes do próprio pré-romantismo se ter afirmado. Por outro lado, se no Desafio Venturoso há um clima de grande tensão passional, que só no fim da novela se resolve, a linguagem usada é bastante comedida, encontrando-se o empolamento mais na efabulação do que no discurso. De assinalar ainda é a presença de poemas intercalados, em português e em castelhano, segundo o costume da época, de que destacaremos pela sua particular qualidade o Soneto do folio 142v. Dentro do restrito panorama da novela barroca portuguesa, que agora começa aos poucos a ser descoberta, o Desafio Venturoso surge como uma narrativa bem urdida e bem trabalhada, que merece um lugar de destaque na ficção portuguesa de todos os tempos». In Ana Hatherly, O Desafio Venturoso, António Barbosa Bacelar, Lisboa, Assírio Alvim, 1991, Narrativa de Ficção, Memoralismo e Costumes, Prosa Moralista e Humorista, FCG, Século XVII, HALP, 2005, ISSN 1645-5169.

Cortesia de FCG/JDACT

domingo, 3 de agosto de 2014

Siglo de Oro. Relações Hispano-Portuguesas no século XVII. Isabel Almeida. «Estes eram os Portugueses, que pelejavam pela defensão de sua Pátria, a qual os Castelhanos muito desejavam, não sendo sua, nem tendo direito nela. Marcos não terá chegado a comentar o Canto IV do poema…»

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Leituras de Camões no Tempo dos Filipes
«(…) Observe-se ainda como este leitor omnívoro, que preza Alciato, se esmera na aplicação de In temerario (aplicação amargurada, porque, alongando-se dos versos latinos do emblema, onde sobressai a pena sofrida pelos maus reis, o que Marcos de S. Lourenço deplora é a desgraça do povo, como temos em nós muito bom exemplo:
  • Propriamente, segundo doutrina moral, Faetonte significa um príncepe moço descabeçado que se não governa pelos conselhos dos velhos, que querendo governar-se por sua cabeça deita o reino a perder, como temos em nós muito bom exemplo e no nosso pouco venturoso rei Sebastião. Ele foi o Faeton, o carro mal governado foi este miserável reino, nós os Etíopes queimados que padecemos os danos que nos ele causou.
Observe-se, enfim, como frisa a clivagem entre o tempo em vida dos reis de Portugal e este nosso tempo:
  • Já no nosso Pornrgal em vida do seu Homero, em tempo deJoão de Barros, e em vida dos reis de Portugal, havia esta tinha de procurarem antes riquezas que bom nome, contra o conselho do sábio. E se já então havia esta doença, que será neste nosso tempo quando não há honra nem desejo de fama, nem quem dê por ela cousa alguä.
Marcos começa a sua obra apoucando Os Lusíadas [...] Commentados de Manuel Correia. Deles não diverge, no entanto, no criterioso apartamento do que é português e do que é castelhano, e esse mesmo afã se verifica no texto de Pires Almeida. A noção do corpo do reino e do império persiste, na diferença entre nós e eles, na distinção do que a um pertence e do que do outro é, como ressalta na conclusão desta anedota:
  • Pôs El Rei D. Manuel aos de seu conselho, o como se haveria com Fernão de Magalhães, que andava em Castela tratando cousas contra seu serviço. Respondeu o duque de Bargança, não faça V. A. caso de escudeiros, que pode esse agora fazer? Acudiu a isto o arcebispo de Lisboa, dizendo: Senhor, inimigo, ou grande ou pequeno, sempre se há-de temer. El Rei não fez caso de Fernão de Magalhães, ele foi por diante com sua desleal tenção, e deu muito que fazer a este Reino, e estarem hoje Castelhanos no Moluco a este descudo se deve.
Quando se trata de explorar relações tensas entre Pornrgal e seus vizinhos, os comentadores amplificam a narração construída por Camões. E se já de si é relevante a preservação do texto sem os cortes introduzidos em 1584, 1591 e 1597,ou sem os eufemismos infìltrados nas traduções castelhanas de 1580 e 1591, mais o é o discurso que defende, como um valor máximo, a conservação da soberania. O verso uns leva a defensáo da própria terra, no prelúdio da batalha de Aljubarrota (Os Lusíadas, IV), inspirou a Manuel Correia-Pedro de Mariz uma glosa cortante como uma sentença inabalável: Estes eram os Portugueses, que pelejavam pela defensão de sua Pátria, a qual os Castelhanos muito desejavam, não sendo sua, nem tendo direito nela. Marcos não terá chegado a comentar o Canto IV do poema, mas a obra que deixou permite supor que havia de abraçar o rumo de Correia-Mariz:o caso de Fernão de Magalhães fá-lo citar Também dos portugueses alguns tredores houve algüas vezes, sem reprimir um desabafo, e inda mal, porque foram e são tantas. Pires Almeida, o menos político dos quatro, não se absteve de opinar, sobre a exortação guerreira de Nuno Álvares, que ressumava ousadia, confiança, justiça, razão, exemplo». In Isabel Almeida, Siglo de Oro, Relações Hispano-Portuguesas no século XVII, Fundação Calouste Gulbenkian, Colóquio Letras, 2011.

Cortesia da FCGulbenkian/JDACT

sábado, 2 de agosto de 2014

Jazz. FCG. Pensamentos. «Com o passar do tempo, há dois sentimentos que desaparecem: a vaidade e a inveja. A inveja é um sentimento horrível. E a vaidade faz-me pensar em alguém… Ninguém sofre tanto como um invejoso. Ninguém é mais pobre do que os mortos»

Cortesia de Vladimir Volegov e jdact

«Uma coisa para mim é clara: tenho de proteger os meus ovos, que são os meus livros. Se racionalizar as coisas, perco-as. Estaria a fechar portas a mim mesmo e a essas coisas, que não sei bem se me pertencem, e emergem com essa força. Nos momentos felizes, a mão anda sozinha. A cabeça está a ver ao longe e fica contente, porque são as palavras certas que a cabeça não encontraria. É a mão». In António Lobo Antunes,’Diário de Notícias’


JDACT

domingo, 22 de junho de 2014

Siglo de Oro. Relações Hispano-Portuguesas no século XVII. Isabel Almeida. «As escolhas de Camões, diferentes das de um Jerónimo Corte-Real, facilitaram esse encontro apaixonado com o poema. Porque n’Os Lusíadas é de Portugal e da sua história que se trata»

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Leituras de Camões no Tempo dos Filipes
«(…) Aí regressam versos densos de erotismo, como a descrição de Vénus no Canto II; aí regressam os passos obliterados ou velados por melindre político, no Canto IV, como o exalçamento heróico de Nuno Álvares Pereira, açoute de soberbos castelhanos, ou o anátema sobre seus irmãos arrenegados. Ora, regressam, não clandestinamente, mas em pleno dia: essas edições são dedicadas a membros do Santo Ofício (ao Doutor Rodrigo d’Acunha, Deputado do S. Ofício [maldito], em 1609 e 1612, e Inquisidor Apostólico do Santo Ofício [maldito] de Lisboa, em 1613; Ao llustríssimo, e Reverendíssimo senhor João da Silva, Capelão Mor de sua Majestade, Ordinário da Capela, Casa Real, e toda a Corte,em1633) ou a personagens gradas da hierarquia social em 1626, A João d’Almeida, do Conselho del Rei nosso Senhor; em 1631, a Duarte, filho II do Senhor Teodósio de Bargança II deste nome). Perguntar-se-á: que leitura se fez então d’Os Lusíadas? Que espírito se captou na sua letra rediviva? Fértil campo de busca acha-se nos comentários, que visavam ser a declaração verdadeira do texto, topologicamente, passo a passo, ou, com audácia hermenêutica, edificando uma compreensão global do poema. O número de comentários a Os Lusíadas, no tempo dos Filipes, não é despiciendo, como não é irrelevante o estatuto de seus autores. O pe. Pedro Mariz não consentiu que pela morte do pe. Manuel Correia tudo naufragasse, e, met[endo] a mão em sua sementeira, publicou em 1613 Os Lusíadas [...] Commentados; sorte madrasta tiveram os escólios do Chantre Manuel Severim Faria ou do pe. Luís da Silva Brito, dos quais resta táo-só vaga notícia. O crúzio Marcos de Sáo Lourenço empreendeu também o comentário d’Os Lusíadas, até.pelo menos ao Canto III, e tê-lo-á redigido ou burilado pela década de 30, altura a que remontará igualmente o extenso labor do pe. Manuel Pires Almeida.
Eclesiásticos, todos eles, enfrentaram, cada um a seu modo, a epopeia de Camões. Cada urn a seu modo e até competindo entre si: Manuel Correia-Pedro de Mariz (os dois nomes são inseparáveis, pois nunca as suas vozes exactamente se definem n’Os Lusíados [...] Commentados) desdenharam das frágeis notas inclusas nas edições de 1584 e l591; Marcos menosprezou o trabalho de Manuel Correia-Pedro de Mariz. Qranto a Manuel Pires Almeida, como se não trilhasse estrada batida, ignorando os demais, quis muito inserir a épica camoniana no contexto poético. E no entanto, acima das diferenças, mais flagrantes ou mais discretas, e acima de alguma rivalidade, detectam-se linhas de comunhão: a leitura da épica atrai uma consciência identitária, e os comentadores atiçam um sentido de fronteira e de autonomia relativamente a Espanha (a que preferem chamar, não sem ásperas conotações, Castela), alimentando a memória de conflitos e disputas.
Escusado será dizer: Os Lusíadas prestavam-se a esta leitura. As escolhas de Camões (diferentes das de um Jerónimo Corte-Real) facilitaram esse encontro apaixonado com o poema. Porque n’Os Lusíadas é de Portugal e da sua história que se trata. E porque neles o poeta não cala nem fúria nem mágoa nem decepção, entregando-se a uma exuberante euforia ou mergulhando em desânimo, como se julgava típico do homem de génio melancólico (um modelo cultural em voga) e como se julgava típico de experiências de crise, que aos olhos dos comentadores se iam revelando endémicas e os estimulavam a cotejar o passado e o presente. Assim, o elogio da qualidade estética do poema entrelaça-se com o elogio de Camões como poeta português, parte de um património de que Manuel Correia, Pedro de Mariz, Marcos de S. Lourenço, Manuel Pires de Almeida não abdicam. Com Os Lusíadas, revisitam a História e contemplam o país, sendo Marcos de S. Lourenço aquele que prima pelo desassombro. Observe-se como das estrofes preambulares faz pretexto para um lamento:

Pronostica Camões muitas prosperidades a El Rei Sebastião [...]. Mas por seus pecados e nossos saiu Camões tão bom profeta comoJoáo Mena nos bens que pronosticou a Ávaro Luna, pois a este lhe cortaram a cabeça daí a breve tempo, e a el Rei Sebastião sempre Portugal chorará sem remédio, porque com sua destruição perdeu a lusitana antiga liberdade que Camões dava por segura com sua vida. Aqui havia muito que dizer e muito mais que chorar, mas deixaremos de o fazer porque como diz Tito Lívio Lachrimae nec tunc gratae cum forte sint necessariae, as lágrimas nem então agradam quando não se escusam.

In Isabel Almeida, Siglo de Oro, Relações Hispano-Portuguesas no século XVII, Fundação Calouste Gulbenkian, Colóquio Letras, 2011.

Cortesia da FCGulbenkian/JDACT

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Siglo de Oro. Relações Hispano-Portuguesas no século XVII. Isabel Almeida. «E certo é que um processo de recuperação d’Os Lusíadas se iniciou em 1597 e se cumpriu na edição de 1609, que resgatou, excepto pontuais variantes, a forma da ‘princeps’»

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Leituras de Camões no Tempo dos Filipes
«(…) Precisamos de coligir alguns dados: recapitulados ou dispostos em cadeia, iluminam-se mutuamente e ajudam a pensar. Desde logo, fala por si o dinamismo de impressores e livreiros: a abundância da oferta patenteia a intensidade da procura. Em Portugal, depois da editio princeps d’Os Lusíadas (1572), vieram as de 1584, 1591, 1597, 1609, 1612, 1613, 1626, 1631, 1633. A estas somou-se a publicaçáo da lírica (1595, 1598, 1607, 1614, 1616, 1621, 1629, 1632),a de textos de teatro (1587, 1615, 1616) e a da epistolografia, com as duas cartas em prosa divulgadas a partir das Rimas de 1598 e o dramático fragmento transcrito na dedicatória d’Os Lusíadas saídos dos prelos em 1626 (verão todos que fui tão afeiçoado a minha pátria, que não só me contentei de morrer nela, mas de morrer com ela). O que impressiona não é apenas o número e o ritmo da actividade tipográfica, que abranda cerca de 1630, verosimilmente por saturação do mercado. Além da quantidade e da frequência das edições, significativo, não menos, é o que nelas se integra e o que delas se exclui. À margem da frenética caça de novidades cultivada em torno de Camões, o corpus das cartas foi o único a permanecer magro e estável, numa contenção que só um cuidado de decoro pode explicar. Missivas desbragadas, com relatos da estúrdia lisboeta, vieram a lume no século XX, não antes. E nem estariam perdidas. Tê-las-á votado ao ostracismo um consensual e duradouro propósito de não ferir a dignidade do ícone que um título cedo consagrara: o príncipe dos poetas heroicos Portugueses.
Eloquente é também a materialidade dos livros, marcados, alguns, pela pressa ou pela ânsia de tudo rentabilizar na sua execução. Foi com Os Lusíadas de Camões que em 1626 a oficina Craesbeeck inaugurou, em Portugal, a publicaçáo de obras num formato diminuto, em letra pequena que – vincava Franco Barreto, com razão se deve chamar sua, pois só para ele se mandou vir de fora a este Reino. Decerto, embora sem semelhante requinte técnico e estético, não era a primeira vez que se estampavam volumes de dimensões reduzidas. No âmbito religioso, as escalas pequenas constituíam uma solução comum, justificada em pragmáticos cálculos como os que Baltasar Estaço formulou (porque valha menos e se comunique mais) ou na captatio benevolentiae de prólogos como o do Manual de diversas oraciones y spirituales ejercicios, sacado por la mayor parte del libro llamado Guía dc pecadores, que compuso el R. P Fray Luís de Granada (1557): Recibe pues, cristiano lector, com benignos ojos este pequeño presente, que cuanto es más pequeño, tanto te será más ligero de traer y más fácil de comprar por pobre que seas. Na dedicatória d’Os Lusíadas, porém, tão prosaico argumento não foi repetido.
Dirigindo-se a João de Almeida, o que Lourenço Craesbeeck salientou foi o prodígio cuja fruição proporcionava: Reduzido a tão pequeno corpo, ofereço a v.m. o mor gigante do Parnaso, e assi como em um pequeno mapa se compreende toda a máquina do mundo, assi neste breviado volume se inclú toda a perfeição da poesia [...]. Diamante é, encarecia: o qual por meio desta impressáo resumi a tão pequeno espaço, porque não é justo que os cnriosos se contentem só de o lerem, mas de o trazerem sempre consigo. Um livro precioso e de todas as horas, em suma. Craesbeeck não se enganava, porque a curto intervalo (1631, 1633) retomou esta receita, e a reedição é habitual consequência do êxito. Em síntese: houve muitas edições camonianas, promovendo o autor e sua obra; houve até o rasgo e a ambiçáo de difundir os enormes Lusíadas em dilectos e portáteis livrinhos de bolso; houve o cuidado de proteger a imagem gloriosa do Poeta. E houve mais: entre 1584 e 1597 a epopeia vergou ao peso da censura; a partir daí, houve meios e licença para que circulasse de novo numa versão fiel àquela que, sob os auspícios do proprio Luís Vaz, brilhara impressa em 1572.
Se as edições de 1584 e de 1591, com seus múltiplos cortes, seus desajeitados ajustes e suas notas por vezes medíocres, foram adaptações ad usum delphini, concebidas para uma utilização pedagógica norteada pela Companhia de Jesus, convirá não as rotular de meros espelhos de escrúpulos, pois de acordo com esta hipótese valeriam como instrumentos de aproximação entre um público jovem e a épica camoniana. Fosse como fosse, não se apagara a consciência de que aquele não era o texto do autor. E certo é que um processo de recuperação d’Os Lusíadas se iniciou em 1597 e se cumpriu na edição de 1609, que resgatou, excepto pontuais variantes, a forma da princeps». In Isabel Almeida, Siglo de Oro, Relações Hispano-Portuguesas no século XVII, Fundação Calouste Gulbenkian, Colóquio Letras, 2011.

Cortesia da FCGulbenkian/JDACT