sexta-feira, 20 de junho de 2014

Siglo de Oro. Relações Hispano-Portuguesas no século XVII. Isabel Almeida. «E certo é que um processo de recuperação d’Os Lusíadas se iniciou em 1597 e se cumpriu na edição de 1609, que resgatou, excepto pontuais variantes, a forma da ‘princeps’»

jdact

Leituras de Camões no Tempo dos Filipes
«(…) Precisamos de coligir alguns dados: recapitulados ou dispostos em cadeia, iluminam-se mutuamente e ajudam a pensar. Desde logo, fala por si o dinamismo de impressores e livreiros: a abundância da oferta patenteia a intensidade da procura. Em Portugal, depois da editio princeps d’Os Lusíadas (1572), vieram as de 1584, 1591, 1597, 1609, 1612, 1613, 1626, 1631, 1633. A estas somou-se a publicaçáo da lírica (1595, 1598, 1607, 1614, 1616, 1621, 1629, 1632),a de textos de teatro (1587, 1615, 1616) e a da epistolografia, com as duas cartas em prosa divulgadas a partir das Rimas de 1598 e o dramático fragmento transcrito na dedicatória d’Os Lusíadas saídos dos prelos em 1626 (verão todos que fui tão afeiçoado a minha pátria, que não só me contentei de morrer nela, mas de morrer com ela). O que impressiona não é apenas o número e o ritmo da actividade tipográfica, que abranda cerca de 1630, verosimilmente por saturação do mercado. Além da quantidade e da frequência das edições, significativo, não menos, é o que nelas se integra e o que delas se exclui. À margem da frenética caça de novidades cultivada em torno de Camões, o corpus das cartas foi o único a permanecer magro e estável, numa contenção que só um cuidado de decoro pode explicar. Missivas desbragadas, com relatos da estúrdia lisboeta, vieram a lume no século XX, não antes. E nem estariam perdidas. Tê-las-á votado ao ostracismo um consensual e duradouro propósito de não ferir a dignidade do ícone que um título cedo consagrara: o príncipe dos poetas heroicos Portugueses.
Eloquente é também a materialidade dos livros, marcados, alguns, pela pressa ou pela ânsia de tudo rentabilizar na sua execução. Foi com Os Lusíadas de Camões que em 1626 a oficina Craesbeeck inaugurou, em Portugal, a publicaçáo de obras num formato diminuto, em letra pequena que – vincava Franco Barreto, com razão se deve chamar sua, pois só para ele se mandou vir de fora a este Reino. Decerto, embora sem semelhante requinte técnico e estético, não era a primeira vez que se estampavam volumes de dimensões reduzidas. No âmbito religioso, as escalas pequenas constituíam uma solução comum, justificada em pragmáticos cálculos como os que Baltasar Estaço formulou (porque valha menos e se comunique mais) ou na captatio benevolentiae de prólogos como o do Manual de diversas oraciones y spirituales ejercicios, sacado por la mayor parte del libro llamado Guía dc pecadores, que compuso el R. P Fray Luís de Granada (1557): Recibe pues, cristiano lector, com benignos ojos este pequeño presente, que cuanto es más pequeño, tanto te será más ligero de traer y más fácil de comprar por pobre que seas. Na dedicatória d’Os Lusíadas, porém, tão prosaico argumento não foi repetido.
Dirigindo-se a João de Almeida, o que Lourenço Craesbeeck salientou foi o prodígio cuja fruição proporcionava: Reduzido a tão pequeno corpo, ofereço a v.m. o mor gigante do Parnaso, e assi como em um pequeno mapa se compreende toda a máquina do mundo, assi neste breviado volume se inclú toda a perfeição da poesia [...]. Diamante é, encarecia: o qual por meio desta impressáo resumi a tão pequeno espaço, porque não é justo que os cnriosos se contentem só de o lerem, mas de o trazerem sempre consigo. Um livro precioso e de todas as horas, em suma. Craesbeeck não se enganava, porque a curto intervalo (1631, 1633) retomou esta receita, e a reedição é habitual consequência do êxito. Em síntese: houve muitas edições camonianas, promovendo o autor e sua obra; houve até o rasgo e a ambiçáo de difundir os enormes Lusíadas em dilectos e portáteis livrinhos de bolso; houve o cuidado de proteger a imagem gloriosa do Poeta. E houve mais: entre 1584 e 1597 a epopeia vergou ao peso da censura; a partir daí, houve meios e licença para que circulasse de novo numa versão fiel àquela que, sob os auspícios do proprio Luís Vaz, brilhara impressa em 1572.
Se as edições de 1584 e de 1591, com seus múltiplos cortes, seus desajeitados ajustes e suas notas por vezes medíocres, foram adaptações ad usum delphini, concebidas para uma utilização pedagógica norteada pela Companhia de Jesus, convirá não as rotular de meros espelhos de escrúpulos, pois de acordo com esta hipótese valeriam como instrumentos de aproximação entre um público jovem e a épica camoniana. Fosse como fosse, não se apagara a consciência de que aquele não era o texto do autor. E certo é que um processo de recuperação d’Os Lusíadas se iniciou em 1597 e se cumpriu na edição de 1609, que resgatou, excepto pontuais variantes, a forma da princeps». In Isabel Almeida, Siglo de Oro, Relações Hispano-Portuguesas no século XVII, Fundação Calouste Gulbenkian, Colóquio Letras, 2011.

Cortesia da FCGulbenkian/JDACT