Primeiro Serão
«Meus amigos, começou o João da Agualva, é de saber que esta terra
em que nós vivemos nem sempre foi Portugal, e, se alguém se lembrasse de falar,
aqui há coisa de uns três ou quatro mil anos ou mesmo só de mil anos, em
Portugal e em portugueses, havia de ver como todos ficavam embasbacados sem
perceber patavina. Isto lá para os antigos era tudo Espanha, desde os cocurutos
dos Pirenéus, que são uns montes que separam a Espanha da França, até essas
águas do mar que cercam por todos os lados a nossa terra, mais a dos espanhóis,
e até por estar este pedação de terra cercado de água por toda a parte, menos
pela banda dos Pirenéus, é que se chama a isto península, que quer dizer uma
coisa que é quase uma ilha, mas que o não vem a ser de todo. - Bem sei, bem
sei!, península é onde houve uma guerra em que entrou meu avô!, exclamou
o falador do Manuel da Idanha. - Mete a viola no saco, Manuel, quem muito fala
pouco acerta. Lá chegaremos á guerra da península. Roma e Pavia não se fez num
dia. Pois então, vá lá vossemecê contando a sua história. Como eu ia dizendo,
esta península, a que se chama Espanha e Portugal, era então só Espanha.
Espanhóis éramos nós todos... - Menos eu!, acudiu o Bartolomeu,
levantando-se todo furioso, espanhol é que nunca fui, nem sou, nem serei, vai
aqui tudo raso, se... Espera, homem de Deus! Que tem que tudo isto fosse espanhol se nunca mais o há de ser?
Também a Espanha, e a França, e a Inglaterra, e a Itália, e a Grécia, e o Egipto
foi tudo império romano, e vai lá dizer agora a essas nações todas que se
sujeitem ao mesmo governo! Também a França dantes se chamava Gália e
estendia-se pela Bélgica fora, e mais pela Suíça, e, se o Gambeta, ou quem é
que governa lá na França, quisesse por isso empolgar a Suíça e a Bélgica,
ia aí em toda a Europa uma berraria de seiscentos demónios.
Pois sim, resmungou o Bartolomeu sentando-se de mau humor, mas não
me digam a mim que eu fui espanhol. Ora, meus amigos, quem foram os que
primeiro moraram cá neste canto de terra é que ninguém sabe. Seriam uns iberos,
que falavam uma língua arrevesada, assim a modo semelhante á que falam hoje os
espanhóis das Vascongadas que nem o
demo entende? Isso é que lhes não posso dizer. O que sei é que, quando
a Espanha começou a ser conhecida, havia aqui uma sucia de povos que era uma
coisa por demais, turdetanos para um lado, celtiberos para outro, ilergetes
para aqui, bastetanos para acolá. Estava até amanhã a dizer-lhes nomes
estrambóticos, se não preferisse falar-lhes só nos nossos avós, cá nos que
moraram na nossa terra. Isso é que é!, bradaram todos em côro. Pois muito bem! Saibam
vocês que não era um povo só. No
Algarve e num pedaço do Alentejo havia os cuneenses, no resto do Alentejo, na
Estremadura e na Beira moravam os lusitanos, e lá para cima para o Douro, para
o Minho e mais para Trás-os-Montes moravam os galegos. Os galegos!, exclamou
o irritável Bartolomeu, veja lá como fala, João da Agualva, olhe que o pai da
minha mulher veio de Trás-os-Montes, e os meus sogro não era nenhum galego, ouviu?
Valha-te Deus, Bartolomeu, então tu pensas que os galegos andam
todos com o barril ás costas, e são todos uns grosseirões como os aguadeiros dos chafarizes de Lisboa? Pois digo-te, e
depois to mostrarei, que de todos os povos lá das Espanhas foram os galegos os
que mais depressa se poliram. Mas, cala-te
boca, não vá o carro adiante dos bois, e, como tu não queres ser genro de
um galego, sempre te direi que os que moravam para cá do Minho não eram da
mesma casta que os de lá. Os nossos chamavam-se Brácaros e os galegos
da Galiza chamavam-se Lucenses. Ainda bem!, murmurou o Bartolomeu, isso
de Brácaros até parece que dá ideia de Braga. E é verdade que dá, Bartolomeu,
lavre lá dois tentos. Todos se riram, e o João da Agualva continuou: Mas
não imaginem que os nossos antepassados eram assim como nós, que viviam em
cidades, vilas e aldeias, que andavam vestidos dos pés até á cabeça, que tinham
espingardas para a caça e para a guerra. Qual carapuça! Eram uns
selvagens, uns lapuzes. As armas eram lanças de cobre, e o amante pedregulho,
mais uns dardos e uma espécie de escudo para se defenderem; fato pouco havia,
cabelo comprido como o das mulheres, que atavam com uma fita quando tinham de
ir para a guerra. As mulheres é que tinham os seus enfeites e os seus bordados,
os seus vestidos compridos, etc. Pois já se vê que lá as meninas nunca podem
passar sem arrebiques!, disse o Zé Caneira, relanceando
um olhar malicioso para a boa tia Margarida que fiava na sua roca ao pé da
lareira. Melhor para elas, ouviu!, redarguiu a velha. Que pena que não
vivesses nesse tempo para atares os cabelos com uma fita, quando fosses para a
guerra! Como o Zé Caneira era calvo, uma gargalhada geral acolheu a
observação da tia Margarida». In Manuel Pinheiro Chagas, História Alegre
de Portugal.