domingo, 1 de junho de 2014

Gargântua. Rabelais. «Quem é Henrique VIII? Uma pança. Roma é uma velha gorda e farta. É isso saúde? É isso doença? É talvez gordura, é talvez hidropisia. Questão a esclarecer. Rabelais, médico e cura, toma o pulso ao papado. Abana a cabeça e desata a rir…»

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«Rabelais é a Gália; e quem diz a Gália diz também a Grécia, pois o sal ático e a graça gaulesa têm no fundo o mesmo sabor, e se alguma coisa, à parte os edifícios, se assemelhava ao Pireu, é La Rapée. Aristófanes encontra alguém maior do que ele; Aristófanes é mau, Rabelais é bom. Rabelais defenderia Sócrates. Na ordem dos grandes génios, Rabelais segue cronologicamente Dante; depois da fisionomia severa, a face trocista. Rabelais é a máscara formidável da comédia antiga separada do proscénio grego, de bronze feito carne, doravante um rosto humano e vivo, continuando enorme e vindo rir de nós entre nós e connosco. Dante e Rabelais vêm da escola dos frades franciscanos, como mais tarde Voltaire dos jesuítas; Dante é o luto, Rabelais a paródia, Voltaire a ironia; tudo isso sai da igreja contra a igreja. Todo o génio tem a sua invenção ou a sua descoberta; Rabelais teve este achado: o ventre. A serpente está no homem, é o intestino. Ela tenta, trai e castiga. O homem, uno como espírito e complexo como homem, tem para a sua missão terrestre três centros: o cérebro, o coração e o ventre; cada um desses três centros é angusto por uma grande função que lhe é própria: o cérebro tem o pensamento; o coração tem o amor; o ventre tem a paternidade e a maternidade.
O ventre pode ser trágico. Feri ventrem, diz Agripina. Catarina Sforza, ameaçada com a morte dos seus filhos feitos reféns, desnudou-se até ao umbigo nas ameias da cidadela de Rimini, e disse ao inimigo: Aqui tenho com que fazer outros. Numa das convulsões épicas de Paris, uma mulher do povo, de pé sobre uma barricada, levantou as saias, mostrou ao exército o ventre nu e gritou: Matai as vossas mães. Os soldados crivaram de balas este ventre. O ventre tem o seu heroísmo, e todavia é dele que decorrem, na vida a corrupção, e na arte a comédia. O peito onde se situa o coração, tem como extremidade a cabeça; o ventre tem o falo. Sendo o centro da matéria, o ventre é a nossa satisfação e o nosso perigo; contém o apetite, a saciedade e a podridão. As dedicações e as ternuras que através dele se apossam de nós estão sujeitas a morrer; substitui-as o egoísmo. Facilmente as entranhas se convertem em tripas. E triste que o hino possa avinhar-se e que a estrofe se deforme em cantoria. Isso resulta do animal que há no homem. O ventre é essencialmente esse animal. A degradação parece ser a sua lei. A escala da poesia sensual tem, ao nível mais alto, o Cântico dos Cânticos e, ao nível mais baixo, a graçola. O ventre-deus é Sileno; o ventre-imperador é Vitélio; o ventre-animal é o porco. Um dos horríveis Ptolomeus chamava-se o Ventre, Physcon. O ventre é para a humanidade um peso temível; rompe a cada instante o equilíbrio entre a alma e o corpo. Enche a história. E responsável por quase todos os crimes. E o odre dos vícios. E ele que pela volúptia faz o sultão, e pela embriaguez faz o czar. É ele que mostra a Tarquínio o leito de Lucrécia; é ele que acaba por fazer deliberar sobre o molho de um rodovalho o senado que esperou Breno e deslumbrou Jugurta. É ele que aconselha ao libertino arruinado que era César a passagem do Rubicão. Passar o Rubicão, como isso permite pagar as dívidas, ter belas mulheres, comer bons jantares! E os soldados romanos entram em Roma com este brado: urbani, claudite uxores; moechum calvum adducimus. O apetite deprava a inteligência. A volúpia substitui a vontade. No princípio, como sempre, há pouca nobreza. E a orgia. Há uma diferença entre ficar toldado e bêbado. Depois a orgia degenera em comezaina. Onde estava Salomão surge Ramponneau. O homem é uma barrica. Um dilúvio interior de ideias tenebrosas submerge o pensamento; a consciência afogada já não consegue fazer sinal à alma embriagada. Está consumado o embrutecimento. Já nem é cínico, é vazio e estúpido. Diógenes desaparece; só fica o tonel. Começa-se com Alcibíades e acaba-se com Trimalcião. O quadro está completo. Não há mais nada, nem dignidade, nem pudor, nem honra, nem virtude, nem espírito; o gozo animal nu e cru, a impureza nua e crua. O pensamento dissolve-se na saciedade; o consumo carnal absorve tudo; nada subsiste da grande criatura soberana habituada pela alma; seja-nos permitida a expressão: o ventre come o homem. Estado final de todas as sociedades onde o ideal se eclipsa. E isso passa por prosperidade e chama-se engrandecer. Às vezes até os filósofos concorrem estouvadamente para esse abaixamento, pondo nas doutrinas o materialismo que está nas consciências. Esta redução do homem ao animal é uma grande miséria. O seu primeiro fruto é a torpeza que se torna visível por todos os lados e até nos cumes da sociedade: no juiz venal, no padre simoníaco, no soldado condottiere. Leis, costumes e crenças são estrumeira. Totus homo fit excrementum. No século XVI, todas as instituições do passado estão reduzidas a isso; Rabelais toma conta dessa situação, constata-a e levanta o auto desse ventre que é o mundo. A-civilização não é mais que uma massa, a ciência é matéria, a religião engordou, a feudalidade digere, a realeza está obesa. Quem é Henrique VIII? Uma pança. Roma é uma velha gorda e farta. É isso saúde? É isso doença? É talvez gordura, é talvez hidropisia. Questão a esclarecer. Rabelais, médico e cura, toma o pulso ao papado. Abana a cabeça e desata a rir. Foi porque encontrou a vida? Nã, porque sentiu a morte. Com efeito, o papado expira.
Enquanto Lutero reforma, Rabelais faz chacota. Qual vai mais direito ao fim? Rabeìais troça do monge, do bispo, do papa; riso feito de estertor. Este guizo toca a finados. EntãoIn Rabelais, Gargantua, Gargântua, Publicações Europa-América, Clássicos, 1987.

Cortesia de PEAmérica/JDACT