«Rabelais é a Gália; e quem diz a Gália diz também a Grécia,
pois o sal ático e a graça gaulesa têm no fundo o mesmo sabor, e se alguma
coisa, à parte os edifícios, se assemelhava ao Pireu, é La Rapée. Aristófanes
encontra alguém maior do que ele; Aristófanes é mau, Rabelais é bom. Rabelais
defenderia Sócrates. Na ordem dos grandes génios, Rabelais segue cronologicamente
Dante;
depois da fisionomia severa, a face trocista. Rabelais é a máscara formidável
da comédia antiga separada do proscénio grego, de bronze feito carne, doravante
um rosto humano e vivo, continuando enorme e vindo rir de nós entre nós e
connosco. Dante e Rabelais vêm da escola dos frades
franciscanos, como mais tarde Voltaire dos jesuítas; Dante é o luto,
Rabelais a paródia, Voltaire a ironia; tudo isso sai
da igreja contra a igreja. Todo o génio tem a sua invenção ou a sua descoberta;
Rabelais
teve este achado: o ventre. A
serpente está no homem, é o intestino.
Ela tenta, trai e castiga. O homem, uno como espírito e complexo como homem,
tem para a sua missão terrestre três centros: o cérebro, o coração e o
ventre; cada um desses três centros é angusto por uma grande função que lhe
é própria: o cérebro tem o pensamento;
o coração tem o amor; o ventre tem a paternidade e a
maternidade.
O ventre pode ser trágico. Feri ventrem, diz Agripina. Catarina
Sforza, ameaçada com a morte dos seus filhos feitos reféns, desnudou-se até ao
umbigo nas ameias da cidadela de Rimini, e disse ao inimigo: Aqui tenho com que fazer outros.
Numa das convulsões épicas de Paris, uma mulher do povo, de pé sobre uma barricada,
levantou as saias, mostrou ao exército o ventre nu e gritou: Matai as vossas mães. Os soldados
crivaram de balas este ventre. O ventre tem o seu heroísmo, e todavia é dele
que decorrem, na vida a corrupção, e na arte a comédia. O peito onde se
situa o coração, tem como extremidade a cabeça; o ventre tem o falo. Sendo o
centro da matéria, o ventre é a nossa satisfação e o nosso perigo; contém o
apetite, a saciedade e a podridão. As dedicações e as ternuras que através dele
se apossam de nós estão sujeitas a morrer; substitui-as o egoísmo. Facilmente
as entranhas se convertem em tripas. E triste que o hino possa avinhar-se e que
a estrofe se deforme em cantoria. Isso resulta do animal que há no homem. O
ventre é essencialmente esse animal. A degradação parece ser a sua lei. A
escala da poesia sensual tem, ao nível mais alto, o Cântico dos Cânticos e, ao nível mais baixo, a graçola. O ventre-deus
é Sileno; o ventre-imperador é Vitélio; o ventre-animal é o
porco. Um dos horríveis Ptolomeus chamava-se o Ventre, Physcon. O ventre é para a humanidade um
peso temível; rompe a cada instante o equilíbrio entre a alma e o corpo. Enche a história. E responsável
por quase todos os crimes. E o odre dos vícios. E ele que pela volúptia faz o
sultão, e pela embriaguez faz o czar. É ele que mostra a Tarquínio o leito de
Lucrécia; é ele que acaba por fazer deliberar sobre o molho de um rodovalho o
senado que esperou Breno e deslumbrou Jugurta. É ele que aconselha ao libertino
arruinado que era César a passagem do Rubicão. Passar o Rubicão, como isso
permite pagar as dívidas, ter belas mulheres, comer bons jantares! E os soldados
romanos entram em Roma com este brado: urbani,
claudite uxores; moechum calvum adducimus. O apetite deprava a
inteligência. A volúpia substitui a vontade. No princípio, como sempre, há
pouca nobreza. E a orgia. Há uma diferença entre ficar toldado e bêbado. Depois
a orgia degenera em comezaina. Onde estava Salomão surge Ramponneau. O homem
é uma barrica. Um dilúvio interior de ideias tenebrosas submerge o pensamento;
a consciência afogada já não consegue fazer sinal à alma embriagada. Está
consumado o embrutecimento. Já nem é cínico, é vazio e estúpido. Diógenes
desaparece; só fica o tonel. Começa-se com Alcibíades e acaba-se com Trimalcião.
O quadro está completo. Não há mais nada, nem dignidade, nem pudor, nem honra,
nem virtude, nem espírito; o gozo animal nu e cru, a impureza nua e crua. O
pensamento dissolve-se na saciedade; o consumo carnal absorve tudo; nada
subsiste da grande criatura soberana habituada pela alma; seja-nos permitida a
expressão: o ventre come o homem. Estado final de todas as sociedades onde o
ideal se eclipsa. E isso passa por prosperidade e chama-se engrandecer. Às
vezes até os filósofos concorrem estouvadamente para esse abaixamento, pondo
nas doutrinas o materialismo que está nas consciências. Esta redução do homem
ao animal é uma grande miséria. O seu primeiro fruto é a torpeza que se torna
visível por todos os lados e até nos cumes da sociedade: no juiz venal, no
padre simoníaco, no soldado condottiere.
Leis, costumes e crenças são estrumeira. Totus
homo fit excrementum. No século XVI, todas as instituições do passado estão
reduzidas a isso; Rabelais toma conta dessa situação, constata-a e levanta o auto
desse ventre que é o mundo. A-civilização não é mais que uma massa, a ciência é
matéria, a religião engordou, a feudalidade digere, a realeza está obesa. Quem é Henrique VIII? Uma
pança. Roma é uma velha gorda e farta. É isso saúde? É
isso doença? É talvez gordura, é talvez hidropisia. Questão a
esclarecer. Rabelais, médico e cura, toma o pulso ao papado. Abana a cabeça
e desata a rir. Foi porque encontrou a
vida? Nã, porque sentiu a morte. Com efeito, o papado expira.
Enquanto Lutero reforma, Rabelais faz chacota. Qual vai mais direito ao fim? Rabeìais
troça do monge, do bispo, do papa; riso feito de estertor. Este guizo toca a
finados. Então?» In
Rabelais, Gargantua, Gargântua, Publicações Europa-América, Clássicos, 1987.
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