Arqueologia na Grande Cidade
«A percepção histórica
do tecido urbano antigo não dispensa, hoje, os contributos da arqueologia
urbana. O tema em si é vasto e complexo. Porque, de início, a arqueologia em cidade
começa por ser uma espécie de mal menor,
nascendo de intervenções de grande escala com impactes previsíveis nas
estruturas de cuja presença se suspeita no subsolo da cidade ou de projectos de
investigação motivados por iniciativas pontuais. Em Portugal, um dos primeiros
exemplos de arqueologia urbana propriamente dita data de 1960, mais precisamente quando da
abertura da estação de Metro do
Rossio-Praça da Figueira, que interferiu com os testemunhos arqueológicos
do pretérito Hospital de Todos-os-Santos e de uma necrópole romana. Este
exemplo não foi esquecido e bem se pode dizer que através deste exemplo
lisboeta, conduzido pioneiramente por Irisalva Moita, se entrou
precocemente no ciclo da arqueologia urbana qualificada. Mas também, convém
dizê-lo, a infra-estruturação do subsolo lisboeta foi tardia, fruto das conjunturas
políticas e sociais da altura, ao contrário do que aconteceu nas outras grandes
capitais europeias, que foram objecto de grande planos de fomento viário e de
ampliação de redes durante os anos 60 e 70 mediante um grande boom
desenvolvimentista que atingiu o seu termo quando da primeira crise
petrolífera. Daí em diante, assistiu-se a um esfriamento destas iniciativas; e
Portugal, país deprimido, não abriu frentes de trabalho em número suficiente ao
ponto de se poder falar na consolidação daquela experiência precoce.
Certo é que tudo isto se
passou numa altura em que a maior parte das cidades europeias (com a excepção
de Londres que instituiu o seu Museu da Cidade impulsionado em grande medida
pelos trabalhos levados a cabo no seu subsolo) não despendiam ainda uma atenção
preocupada e prioritária para com os vestígios arqueológicos. Aliás, é ainda possível
entrever (e rever) as passagens memoráveis desse filme de Fellini em que
a cada passo os promotores do metro local se deparam com achados arqueológicos
inestimáveis que logo se perdem ou tragicamente se esfumam, construindo assim
uma mitologia moderna e urbana que
acabaria por dar os seus frutos. Pelo menos desde meados dos anos 80,
e acompanhando a implantação e consolidação dos estudos de impacte ambiental e as
respectivas avaliações, mas também momentos de crispação bem situados no tempo
e no espaço (quando se corria o risco de perder importantes testemunhos
arqueológicos, como foi o caso de Bracara Augusta) as grandes
intervenções nas cidades com reflexos no subsolo passam a ser sistematicamente condicionadas
à realização de trabalhos arqueológicos, por via da aplicação dos dispositivos
legais elementares (tais como a Lei 13/85) e através de um sistema de pareceres
vinculativos devidamente estribado numa forte prática administrativa assegurada
pelo IPPC
e pelo IPPAR, que lhe sucedeu institucionalmente, e a que se juntou o
IPA.
Mas estas actuações eram e continuam a ser em si mesmas problemáticas.
A maior parte das vezes não se consegue ainda proceder a uma verdadeira
actuação que privilegie uma filosofia de trabalhos arqueológicos preventivos
que substituam e antecipem uma arqueologia de emergência e de salvamento, esta
muito mais condicionada do ponto de vista científico e do ponto de vista dos
seus resultados práticos. É evidente que a classificação de imóveis e de
conjuntos com a respectiva instituição de servidões administrativas permite
tomadas de posição que salvaguardam o património arqueológico, quer por parte
da administração central, quer por parte das autarquias. Também, a cada vez
maior qualificação do poder autárquico tem possibilitado o enquadramento de
trabalhos arqueológicos, que acompanham o interesse que o poder local passou a dispensar
ao património em geral. Naturalmente que a extensão desta práticas ao todo
territorial exige uma pedagogia patrimonial mais activa, bem como a
constituição, nos próprios municípios, de gabinetes apetrechados para acções
deste tipo, o que só se tem verificado em grandes cidades. Os pequenos
municípios, porém, podem igualmente atingir este desiderato através da sua
associação mutual, criando bolsas de investigadores sustentados
em regime de pareceria, e que possam responder em regime ambulatório a
situações supervenientes. Uma política nacional de arqueologia deverá
contemplar a forma de contratualização entre os municípios e a administração
central de modo a assegurar a existência desta unidade de pesquisa e de
acompanhamento». In Paulo Pereira, Arqueologia na Grande Cidade, Lisboa, Encruzilhada de
Muçulmanos, Judeus e Cristãos (850º aniversário da reconquista de Lisboa),
Projectos Portos Antigos do Mediterrâneo, Acção Piloto Portugal/Espanha/Marrocos,
FEDER, Edições Afrontamento, Porto, 2001, ISSN 0872-2250.
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