O Bastardo. Na Ribeira das Naus
«(…) Havia também um sentimento de piedosa comiseração por aquele
extraordinário desditoso. A morte sentara-se com ele no trono. Fora a sua
terrível colaboradora e era agora o espectro da sua trágica expiação. O filho
que estremecia, o seu único filho legítimo, talvez o seu único amor, morrera-lhe
desastrosamente, havia três anos, na ribeira de Santarém, e aquele coração, que
parecia de bronze, espedaçara-se na sua imensa dor de pai! Ao vê-lo, a multidão
descobriu-se e curvou-se, num espontâneo movimento de veneração. Havia entre o
povo muitos judeus, que tinham sido recentemente expulsos de Espanha, com
iníqua ferocidade. Dera-lhes El-rei guarda, contra a maioria de votos dos seus
conselheiros. Os pobres expulsos curvavam-se, sinceramente gratos, diante
daquele rei tolerante. O rei João II volvia para a multidão um olhar de falso júbilo
e mascarava em sorrisos, que eram como esgares dolorosos, o drama sombrio que
trazia dentro de si. Olhai quanto El-rei vem mudado!, segredava-se entre a multidão.
- As barbas de um velho! - Tão rosado era, e vem mais amarelo que um círio! - É
a peçonha que lhe deram na Fonte Coberta que anda a trabalhar com ele!
Não o matou logo, mas lá o vai queimando por dentro.
Mal empregado, que é um homem às direitas e tem sido o amparo dos que
não são fidalgos nem clérigos. Compreendia-se este interesse do povo, como se
explicava a sua curiosidade. Andara João II por largo tempo afastado de Lisboa,
cuidando da sua saúde, profundamente abalada. Regressara à capital, havia
alguns dias apenas, e fizera constar que iria à Ribeira ver as naus e
dar-lhes nome. Aparecia ao povo pela primeira vez depois de uma larga ausência;
aparecia-lhe solenemente, com aquela grandeza de representação que ele julgava
o culto exterior da sua dura e trágica vitória de outros tempos! Apeou-se na Ribeira. Toda a
comitiva lhe seguiu o exemplo.
Foi para as cavernas das naus, imóveis nos grosseiros e singelos
estaleiros daquele tempo, como se fossem o truncado esqueleto de enormes paquidermes
antediluvianos, foi para elas que o Rei volveu o seu primeiro olhar, e como que
um estranho clarão de júbilo lhe fulgiu nas amortecidas pupilas. Foi um
demorado olhar. Se a morte, pensava João II, se essa lúgubre companheira que a
toda a parte o seguia, como trágica sombra da sua própria figura, o não levasse
em poucos anos, iriam as derradeiras esperanças do seu coração espedaçado e a
última grande ambição da sua vida tormentosa dentro do cavername daqueles
navios, como dentro do tórax de um gigante. E na volta da Índia, rasgado o
rútilo caminho, que espantosa glória não seria a sua, se lhe fosse dado ver a
esvoaçar nos mastros daquelas naus, esfarrapada talvez pelas ventanias do Cabo,
requeimada pelo sol do Levante, mareada pela espuma das ondas, a ínclita
bandeira da terra portuguesa, transmudada em lábaro imortal da civilização cristã!
Fora nos deslumbramentos deste sonho, que a espaços lhe iluminava docemente a
alma entenebrecida, como um raio de sol pode esclarecer e acalentar os gélidos
muros de um cárcere; fora em um desses deslumbramentos que o Rei decidira a sua
visita à Ribeira, por tal arte que aos olhos do povo tivesse a
significação de um grande e faustoso acontecimento. Assim se iria consagrando o
seu plano, ainda mal compreendido». ». In António Campos Júnior, Guerreiro e Monge,
Romance Histórico, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1952.
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