quinta-feira, 19 de junho de 2014

Saudade da Literatura. Crónica. Antologia. 1984-2012. Manuel António Pina. «… acho que consegui dizer uma coisa do género na problemática entrevista. Nem que não sirva. As palavras falam sozinhas. As crónicas fazem-se a si próprias, o cronista é o menos. E se lhes chamo crónicas é porque não sei que nome dar a isto»

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1988. Chamo-lhes Crónicas porque não sei o nome disto
«Ricardo Pinto, cronista da Rádio Universitária, pôs-me outro dia, aos microfones uma questão de todo em todo improvável: O que é isso de crónicas? Fiquei em pânico, como um trapezista que tivesse falhado o salto, sem resposta a que me agarrar; e devo ter esbracejado desesperadamente antes de me ter estatelado em qualquer definição de almanaque. Na Rádio trabalha-se sem rede; o meu por assim dizer género, dado muito a perguntas e pouco a respostas, conforma-se, coitado dele, mais com a escrita, onde se podem facilmente fazer passar as grandes ignorâncias por uma questão de estilo.E ainda mal estava refeito da provação já tinha que me safar de outra situação dramática: E para que servem as crónicas?, (Eu que andava a pensar numa entrevista à secretária de Estado da Cultura com perguntas más como: O que é a cultura?...).
O caso deu-me para pensar (naturalmente sob a forma de crónica) acerca de definições, que é coisa com que nunca me entendi. Ezra Pound refere Fennollosa a propósito da escrita ideogramática chinesa, falando desta questão das definições. Observa ele que, por exemplo, se se pergunta a uma língua como o Inglês (ou o Português) o que é o vermelho, ela há-de responder que é uma cor; e se, depois, se lhe pergunta o que é uma cor, há-de dizer qualquer coisa do género, É uma forma de energia; e por aí adiante até acabar no ser e no não-ser. O ideograma chinês que significa vermelho contém, pelo contrário, vários elementos vermelhos (o flamingo, ainda e sempre por exemplo, embora esteja a citar tudo isto de cor), e o vermelho é aquilo. Uma resposta vai de abstracção em abstracção, outra vai, passe o simplismo, direita ao assunto. Eu podia ter respondido (fosse eu chinês...) que crónica é isto (não sei bem o quê); mas a verdade é que não sei o que isto é. E, muito menos, Para que serve.
Num certo poema, o filho de O'Neill pergunta-lhe com ingénua sabedoria: O que é o fogo? É o que queima!, responde o pai chegando-lhe (um pai poeta é um problema para um filho!) lume aos dedos. Eu, por meu lado, também tenho uma história parecida. Há, muitos anos, já não me lembro porquê (de facto é uma pergunta insolente), perguntei aos imensos três anos de minha filha: Para que serve a barriga? E ela: Para coçar a barriga! Era indesmentível. Mas quis ver onde ia dar aquilo: E as unhas, para que servem? Evidentemente: Para coçar a barriga! Então, lógica de pai tem consequências terríveis, as unhas e a barriga servem para a mesma coisa? Servem! E eu a teimar: Para quê? Lógica de filha: Para coçar a barriga! As coisas (a barriga, as unhas, as crónicas) servem para usos que escapam a grandes reflexões e o que são furta-se quase sempre àquilo que se sabe delas. Para que servirão então as crónicas? E o que é isto de crónicas? Se me perguntam (como não me lembrei de Santo Agostinho na Rádio Universitária?) não sei o que é, se não me perguntam sei.
Há dias, no Campo 24 de Agosto, um jovem pediu-me um emprego. Conhecia-me disto, das crónicas e, lá, na sua, pensou que as crónicas podiam muito bem servir para arranjar emprego. Também recebo cartas de leitores: tal assunto dava, sugerem os leitores, uma boa crónica; e, aqui ao lado, os amigos têm também inúmeras ideias sobre crónicas. Eu tenho cada vez menos. Vou falando da chuva e do bom tempo, da memória, das minhas circunstâncias e das minhas perplexidades, dos trabalhos (sobretudo dos trabalhos forçados!) e dos dias, de coisas grandes e de coisas pequenas, como quem está sentado ociosamente à mesa do café rodeado de amigos, mudando instavelmente de estilo, às vezes a ironia, às vezes a ternura, às vezes a revolta, como quem muda de sítio. E é natural que, de vez em quando, me pergunte também se não estarei a gastar o meu tempo e o meu latim. Na verdade não quero que isto, não sei o quê, sirva para nada em especial (acho que consegui dizer uma coisa do género na problemática entrevista da Rádio). Nem que não sirva. As palavras falam sozinhas. As crónicas fazem-se a si próprias, o cronista é o menos. E se lhes chamo crónicas é porque não sei que nome dar a isto. O crocodilo responde às questões práticas da alimentação que no dia-a-dia se lhe vão pondo sacudindo os interlocutores Para a água e discutindo o assunto aí, no seu ambiente. O meu ambiente é este, diante da máquina de escrever, sem microfones. Quem pode, por isso, estranhar que tenha trazido para aqui uma questão tão sem importância como estaIn Manuel António Pina, JN, 23 de Abril de 1988.

In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia, 1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio Alvim, Porto, 2013, ISBN 978-972-37-1684-9.

Cortesia de AAlvim/JDACT