1988. Chamo-lhes Crónicas porque não sei o nome disto
«Ricardo Pinto, cronista da Rádio Universitária, pôs-me outro dia, aos
microfones uma questão de todo em todo improvável: O que é isso de crónicas? Fiquei em pânico, como um trapezista
que tivesse falhado o salto, sem resposta a que me agarrar; e devo ter
esbracejado desesperadamente antes de me ter estatelado em qualquer definição
de almanaque. Na Rádio trabalha-se sem rede; o meu por assim dizer género, dado
muito a perguntas e pouco a respostas, conforma-se, coitado dele, mais com a
escrita, onde se podem facilmente fazer passar as grandes ignorâncias por uma
questão de estilo.E ainda mal estava refeito da provação já tinha que me safar
de outra situação dramática: E para
que servem as crónicas?, (Eu que andava a pensar numa entrevista à
secretária de Estado da Cultura com perguntas más como: O que é a cultura?...).
O caso deu-me para pensar (naturalmente sob a forma de crónica) acerca
de definições, que é coisa com que nunca me entendi. Ezra Pound refere
Fennollosa a propósito da escrita ideogramática chinesa, falando desta questão
das definições. Observa ele que, por exemplo, se se pergunta a uma língua como
o Inglês (ou o Português) o que é o vermelho, ela há-de responder que é uma
cor; e se, depois, se lhe pergunta o que é uma cor, há-de dizer qualquer coisa
do género, É uma forma de energia; e
por aí adiante até acabar no ser e no não-ser. O ideograma chinês que significa
vermelho contém, pelo contrário, vários elementos vermelhos (o flamingo, ainda
e sempre por exemplo, embora esteja a citar tudo isto de cor), e o vermelho é aquilo. Uma resposta vai de abstracção
em abstracção, outra vai, passe o simplismo, direita ao assunto. Eu podia ter
respondido (fosse eu chinês...) que crónica é isto (não sei bem o quê); mas a
verdade é que não sei o que isto é. E, muito menos, Para que serve.
Num certo poema, o filho de O'Neill pergunta-lhe com ingénua
sabedoria: O que é o fogo? É o que queima!, responde o pai
chegando-lhe (um pai poeta é um problema para um filho!) lume aos dedos. Eu,
por meu lado, também tenho uma história parecida. Há, muitos anos, já não me
lembro porquê (de facto é uma pergunta insolente), perguntei aos imensos três
anos de minha filha: Para que serve a
barriga? E ela: Para coçar a barriga!
Era indesmentível. Mas quis ver onde ia dar aquilo: E as unhas, para que servem? Evidentemente: Para coçar a barriga! Então, lógica de
pai tem consequências terríveis, as
unhas e a barriga servem para a mesma coisa? Servem! E eu a teimar: Para
quê? Lógica de filha: Para coçar
a barriga! As coisas (a barriga, as unhas, as crónicas) servem para usos
que escapam a grandes reflexões e o que são furta-se quase sempre àquilo que se
sabe delas. Para que servirão então as
crónicas? E o que é isto de
crónicas? Se me perguntam (como não me lembrei de Santo Agostinho na
Rádio Universitária?) não sei o que é, se não me perguntam sei.
Há dias, no Campo 24 de Agosto, um jovem pediu-me um emprego.
Conhecia-me disto, das crónicas e, lá, na sua, pensou que as crónicas podiam
muito bem servir para arranjar emprego. Também recebo cartas de leitores: tal
assunto dava, sugerem os leitores, uma boa crónica; e, aqui ao lado, os amigos
têm também inúmeras ideias sobre crónicas. Eu tenho cada vez menos. Vou falando
da chuva e do bom tempo, da memória, das minhas circunstâncias e das minhas
perplexidades, dos trabalhos (sobretudo dos trabalhos forçados!) e dos dias, de
coisas grandes e de coisas pequenas, como quem está sentado ociosamente à mesa
do café rodeado de amigos, mudando instavelmente de estilo, às vezes a ironia,
às vezes a ternura, às vezes a revolta, como quem muda de sítio. E é natural
que, de vez em quando, me pergunte também se não estarei a gastar o meu tempo e
o meu latim. Na verdade não quero que isto, não sei o quê, sirva para nada em
especial (acho que consegui dizer uma coisa do género na problemática entrevista
da Rádio). Nem que não sirva. As palavras falam sozinhas. As crónicas
fazem-se a si próprias, o cronista é o menos. E se lhes chamo crónicas
é porque não sei que nome dar a isto. O crocodilo responde às questões práticas
da alimentação que no dia-a-dia se lhe vão pondo sacudindo os interlocutores
Para a água e discutindo o assunto aí, no seu ambiente. O meu ambiente é este,
diante da máquina de escrever, sem microfones. Quem pode, por isso, estranhar
que tenha trazido para aqui uma questão
tão sem importância como esta?» In Manuel António Pina, JN, 23 de Abril de 1988.
In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia,
1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio Alvim, Porto, 2013, ISBN
978-972-37-1684-9.
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