«Enquanto durou, o Bloco 31 (no
campo de extermínio de Auschwitz albergou quinhentas crianças, vários
prisioneiros que tinham sido nomeados conselheiro e, apesar de toda a vigilância
a que estava sujeito e contra todas as probabilidades, uma biblioteca infantil
clandestina. Era minúscula: consistia em apenas oito livros, entre os quais Uma
Breve História do Mundo, de H. G. Wells, um livro de texto russo e outro de
geometria analítica […] No fim de cada dia, os livros, com outros tesouros,
como medicamentos ou alguma comida que houvesse, eram confiados a uma das
meninas mais velhas, que tinha o encargo de escondê-los todas as noites num
lugar diferente». In Alberto Manguel.
«O que a literatura faz é o mesmo
que um fósforo no meio de um campo em plena noite. Um fósforo quase nada
ilumina, mas permite-nos ver quanta escuridão há à nossa volta». In William
Faulkner.
Auschwitz-Birkenau, Janeiro de 1944
«Esses oficiais que vestem de negro e olham para a morte com a indiferença
de coveiros ignoram que sobre o lodo escuro em que tudo se afunda Alfred Hirsch
ergueu uma escola. Não sabem, e é preciso que não saibam. Em Auschwitz, a vida
humana vale menos que nada; tem tão pouco valor que já nem sequer se fuzila
ninguém porque uma bala é mais valiosa do que um homem. Há grandes câmaras onde
se usa o gás Zyklon porque reduz os custos e com uma só lata pode
matar-se centenas de pessoas. A morte transformou-se numa indústria que só é
rentável trabalhando por grosso. No barracão de madeira, as aulas são grupos de
pequenos bancos apertados uns contra os outros. Não há paredes e os quadros são
invisíveis: os professores traçam no ar, com gestos das mãos, triângulos isósceles,
acentos circunflexos e até o curso dos rios da Europa. Há cerca de duas dezenas
de pequenas ilhotas de crianças, cada uma com o seu tutor, tão próximas umas
das outras que os professores dão as lições num murmúrio para que a história
das dez pragas do Egipto se não misture com a música da tabuada de multiplicar.
Alguns não acreditaram que fosse possível, pensaram que Hirsch era um
louco ou um ingénuo. Mas como ensinar
crianças num brutal campo de extermínio onde tudo é proibido? E ele
sorria. Hirsch sorria sempre enigmaticamente, como se soubesse qualquer coisa
que os outros ignoravam. Não importa quantas escolas os nazis fecham,
respondia-lhes. Sempre que alguém se detiver numa esquina a contar qualquer
coisa e algumas crianças se juntarem à sua volta para ouvir, aí terá sido
fundada uma escola. A porta do barracão abre-se com brusquidão e Jakopek, o
vigia de serviço, corre para o quarto do chefe de bloco Hirsch. Os socos que
calça sujam o chão com a terra húmida do campo e a bolha de falsa segurança do
Bloco 31 rebenta. Do seu canto, Dita Adlerova olha, hipnotizada, para os
minúsculos salpicos de lama: parecem insignificantes, mas na realidade
contaminam tudo, tal como uma só gota de tinta suja toda uma tigela de leite. -
Seis, seis, seis!
É o sinal que indica a chegada de guardas SS ao Bloco 31, e por todo o
barracão ergue-se uma revoada de murmúrios. Nessa fábrica de destruição de
vidas que é Auschwitz-Birkenau, onde os fornos funcionam dia e noite
alimentados por corpos humanos, o 31 é um bloco atípico, uma raridade. Ou
melhor, uma anomalia. Um êxito de Fredy Hirsch, que começou como um
simples instrutor de desportos Para grupos juvenis e agora é um atleta que está
a fazer em Auschwitz uma corrida de obstáculos contra o maior rolo compressor
de vidas da história da humanidade. Conseguiu convencer as autoridades alemãs
do Lager de que ter as crianças
entretidas num barracão separado facilitaria o trabalho dos pais do campo BIIb,
a que chamam campo familiar porque
nos outros as crianças são tão raras como as aves. Em Auschwitz não há aves;
electrocutam-se nas cercas de arame farpado. O alto-comando do campo acedeu
à criação de um barracão infantil, talvez até fosse essa a sua intenção desde o
início, mas sempre na condição de tratar-se de um bloco de actividades lúdicas:
estava terminantemente proibido o ensino de qualquer matéria escolar.
Hirsch espreita através da porta entreaberta do seu quarto de
Blockältester do 31e não precisa de dizer uma palavra aos ajudantes nem aos professores,
que têm os olhos fixos nele. Faz um quase imperceptível gesto de assentimento
com a cabeça. O seu olhar transmite exigência. Ele faz sempre o que deve e
espera que todos se comportem da mesma maneira. As lições cessam e vão-se
transformando em banais cantiguinhas em alemão ou em jogos de adivinhas para
fingir que está tudo bem quando os lobos arianos mostrarem as suas caras
louras. Em geral, os dois soldados da patrulha entram por rotina no barracão,
mas mal passam da porta, ficam uns instantes a observar as crianças, por vezes
até aplaudem uma cantiga ou fazem uma festa na cabeça de um garotinho e continuam
com a sua ronda. Jakopek, porém, acrescenta mais qualquer coisa ao alarme
convencional: - Inspecção! Inspecção!» In Antonio G. Iturbe, 2012, A Bibliotecária
de Auschwitz, Dita Dorachova, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-657-432-1.
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