«(…) Como é que eu mato a tua
morte? Em sonhos, vens-me buscar, levas-me contigo por um corredor
longo e frio. Porque há tantos corredores,
e tão escuros, nos sonhos? Mas no fim, olhas para mim e já não és tu.
Uma caveira com restos de carne nos olhos ri-se para mim e faz nha-nha-nha, como as crianças, bem
feita, bem feita, enganei-te. Acordo e tenho dificuldade em separar-te da caveira.
Vejo-te ossos, nervos e pele enegrecendo nos retratos, um sorriso cáustico flutuando
no silêncio do quarto. E tudo cheira a velhice, à podridão instantânea em que
te tornaste. Não querias que te visse morta; punes-me por isso?
A busca da verdade torna-nos castigadores. Tropecei tanto nas tuas
pequenas mentiras. Urtigavam-me tanto. Mentia-te imediatamente, com um pouco
mais de veemência, para tu veres. Mentiras.
Tornavas tua uma graça que era minha, e essa anedota voltava para mim,
aumentada, aviltada pelos pontos de humor que tinhas ganho entretanto no
coração de alguém, à minha custa. Quando nos conhecemos não eras assim.
Citavas-me. Punhas aspas. O teu encanto era essa, tão rara, cintilação
de aspas. Dizias: Fulano disse-me,
Cicrano contou-me. Sublinhavas
a inteligência e a beleza das palavras dos outros. Na passagem à política foste
largando esse rigor, como uma pele incómoda. Os nomes eclipsaram-se, varridos
para debaixo do solene tapete das fontes
seguras. Depois, à medida que foste ganhando confiança, aprendeste a
dispensar inclusivamente esse recurso às fontes. Quantas frases saídas da minha
boca para o teu ouvido, desenhadas de propósito para te fazer rir, regressaram
a mim. Nos jornais, como citações da
semana saídas do teu nobre cérebro.
Repara que eu não ponho em dúvida a nobreza e vastidão do teu pensar.
Eras uma tese de doutoramento existencial em movimento. Alguma vez te disse isto? Pensavas tanto e tão bem que intercalavas
sempre as citações nos sítios certos. Não precisavas de as engolir e vomitar
como pérolas próprias. Tornaste-te ostra, sim; molusco, ou menos pessoa, se
preferires. A princípio eu ofendia-me, replicava, fazia teatro. E isso era a verdade.
Mas desisti; tu não fazias teatro nenhum. Que
importância é que isso tem? Não me vais agora fazer uma cena de ciúmes
por uma história que eu me esqueci que era tua. A Lia era assim. O
Partido era assim: um clube onde
ganha o que mais depressa conseguir caçar e comer as qualidades dos outros.
E isso, explicavas-me, não era mentir. Entraste no mundo especializado onde
mentir era diferente de omitir. Muito menos grave. E a traição só existia
quando muito repetida, nos mesmos lugares, com as mesmas pessoas. O resto, inconfidências,
sexo, intrigas, queixas, eram apenas escapadelas humanas. O teu código
moral burocratizou-se; havia alíneas para todas as infracções. E mesmo as
maiores passaram a ter pouco valor. Aprendeste que é mínima a distância entre
um deslize e um crime. Que todos podemos, num dado instante, escorregar para o
negro. Uma bebida, duas, um bêbado, um assassino; um charro, um cheiro de coca,
uma dependência, um ladrão. A vida tornava-se assim. Incontida. Demasiado simples
e complexa. Música em crescendo, ensurdecedora. Sem qualquer verdade de
partida. Que importância é que isso
tem? Pior é quando eles pegam num projecto meu e proclamam que é deles.
E eu já me habituei: são homens, são muitos, sempre governaram assim. Se a
guerra se faz com mísseis, não adianta cansar-me a atirar-lhes pedras. Tinhas
resposta para tudo, raios te partam. No tempo em que estudavas História, a tua
especialidade eram as perguntas. Interrogavas o passado com veemência e método:
porque é que isto foi assim?
Porque é que as outras possibilidades não
puderam ser? Onde é que está a
verdade, para além dos factos?» In Inês Pedrosa, Fazes-me Falta, Publicações
Dom Quixote, Lisboa, 2002, ISBN 972-20-2253-9.
Cortesia de Quixote/JDACT