terça-feira, 3 de junho de 2014

Livro do Anjo. Veneza 1313. Alfredo Colitto. «Seguiu-se um momento de silêncio pesado, no qual nem a pata ousou grasnar, depois acrescentou: - Ou mudastes de ideias? - Não mudei de ideias sobre coisa alguma - apressou-se Mondino a responder. Pareceu-lhe adivinhar…»

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Bolonha, sábado, 12 de Maio de 1313
«(…) Antes de sair viu-se ao espelho de prata bem polido pendurado na parede. Alto e magro, com os olhos verdes, a testa alta e os cabelos castanhos ondulados, era considerado um belo homem e, desde que, uns anos antes, ficara viúvo, um óptimo partido. Mas estava prestes a casar-se novamente e os pais da noiva tinham-lhe feito um convite. Tentou sorrir, mas o espelho devolveu-lhe uma expressão tensa. Sentia-se nervoso, não por causa da viagem, mas pelo que ia fazer antes: dar a notícia à noiva e ao pai dela, exactamente no dia em que tinham combinado fixar a data do casamento. Vestiu um casaco preto com capuz, leve mas útil para se proteger das intempéries primaveris, e desceu até ao pátio. Ordenou ao criado Pietro que arrumasse a mala na carroça enquanto se despedia dos filhos, assegurando-lhes que voltaria em breve. Subiu para a carroça e sentou-se em cima da mala coberta com a tela encerada, enquanto Pietro se montava na sela do cavalo baio. Pouco depois, o criado deixou-o em frente do palacete de Gandone de Gandoni e continuou para o porto de Corticella, onde iria providenciar o transbordo da bagagem numa galé fluvial. Embora pensando e repensando que a sua viagem não escondia nada de reprovável, Mondino não se sentia muito à vontade. Tinha pena, na verdade, que Gerardo de Castelbretone, o jovem ex-templário com o qual estabelecera um laço de profunda amizade, não pudesse acompanhá-lo a Veneza. Preferia não fazer sozinho uma viagem que a sua consciência não conseguia justificar totalmente. Quando fora procurá-lo, assim que tomara a decisão de partir, Gerardo recebera-o vestido como um janota e recusara-se a acompanhá-lo, evocando um pretexto que lhe soara a falso. Mondino mostrara-se ofendido e só então o rapaz lhe dissera a verdade: estava incumbido de uma missão de que não podia falar-lhe. Mencionara entretanto espias franceses que o mantinham sob vigilância. Mondino deixara-lhe o endereço do lugar onde poderia encontrá-lo em Veneza caso mudasse de ideias, e fora tratar da carta de apresentação.
Em casa de Gandone, fora acolhido sem cerimónias, como um membro da família. Era o que mais lhe agradava, o ambiente tranquilo que sempre envolvia as suas visitas. Uma criadita acompanhou-o até à grande cozinha pavimentada com tijolos, onde Gandone em pessoa, com os seus gordos braços brancos nus até aos cotovelos, se dedicava a dar instruções à cozinheira, por entre uma babel de ruídos dominada pelo grasnar desesperado de uma pata a quem estavam prestes a cortar o pescoço. O patrão aproveitou para lhe perguntar se gostava de pata com molho de ervas e vinagre. Só então Mondino percebeu que, embora não o tivessem convidado, davam por certo que ficaria para o jantar, para festejar a marcação da data do casamento. Toda a alegre agitação que reinava na cozinha parou repentinamente quando disse: - Perdoem-me, mas não posso aceitar o convite. Estou de partida para Veneza. - Logo hoje? - perguntou Gandone, com uma expressão sombria. - Pensei que a reunião em que vamos decidir a data do casamento com a minha filha tivesse também alguma importância para vós. - Seguiu-se um momento de silêncio pesado, no qual nem a pata ousou grasnar, depois acrescentou: - Ou mudastes de ideias? - Não mudei de ideias sobre coisa alguma - apressou-se Mondino a responder. Pareceu-lhe adivinhar, além do alívio de Gandone, uma certa desilusão por parte da criadagem, que, como é evidente, já esperava um desfecho dramático. - Uma pessoa que me é querida está gravemente doente e tenho de partir com a máxima urgência para tentar uma cura in extremis. Soube-o há poucas horas e não tive tempo de vos prevenir.
Não disse que a pessoa em questão era uma mulher que outrora amara e da qual não recebia notícias havia algum tempo. E omitiu o motivo pelo qual não hesitara em aceitar o pedido de ajuda, que tinha que ver também com as origens dos Liuzzi, um facto que o futuro sogro conhecia, mas do qual era melhor não se falar mais. Na realidade, Adia não falara da sua doença na carta que lhe enviara naquela manhã por um jovem judeu de nome David. O pai deste rapaz é acusado de um homicídio horrível que não cometeu, e arrisca-se a pagá-lo com a vida, dizia a carta. Só vós podereis ajudar a provar a sua inocência. Em nome do que nos uniu e que talvez ainda nos una, peço-vos que venhais o mais depressa possível. Mondino ficara perturbado por ver a carta de Adia numa folha de papel, por aquele apelo desesperado e pela resposta que o rapaz lhe dera quando lhe perguntara por Adia. - Está doente com febre terçã, respondera. - Os médicos dizem que lhe resta pouco tempo de vida. Alguns meses, talvez um ano, ano e meio, com sorte. - Quereis fazer o favor de me responder? - Ouviu a voz de Gandone como que ao longe. - Desculpai, estava a pensar. O que me haveis perguntado?
O que o perturbara mais fora a força das emoções que o tinham assaltado ao ouvir a notícia da doença de Adia. Fora por isso, mais do que pelo desejo de salvar da forca um homem que não conhecia, que se decidira a partir de imediato. - Foi só para isto que viestes? Eis o que vos perguntei. - O tom frio da pergunta, tão estranho em Gandone, trouxe-o rapidamente ao presente». In Alfredo Colitto, Il Libro dell’Angelo, 2011, O Livro do Anjo, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-074-4.

Cortesia CLivro/JDACT