sábado, 7 de junho de 2014

O Que Diz Molero. Leituras. Dinis Machado. «Digamos que a vida tem os seus bocados bons. Austin acenou com a cabeça e pensou um pouco. Molero fala numa espécie de matéria onírica, disse ele, Leduc passou a viver dos sonhos…»

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«(…) Leduc, disse Austin, o da cadeira de rodas. Quando Molero ouviu falar nele, não o situou imediatamente, colocou-o mais tarde no devido lugar, há muitas píginas do relatório dedicadas a Leduc. Esse é o ginasta, não é?, perguntou Mister Deluxe. Quando Molero soube de Leduc, disse Austin, soube logo que ele tinha sido o ginasta, a questão não é essa, é outra, Mister DeLuxe. Ele tinha feito ginástica a vida inteira, especializou-se em argolas, a sua ambição era fazer um Cristo perfeito e demorado, trabalhou quinze anos pata isso. Tudo aconteceu no dia seguinte, como se o destino quisesse brincar com ele. Austin acendeu um cigarro e prosseguiu: Ele tinha feito um Cristo perfeito e demorado, os braços bem abertos e o cronómetro a marcar o tempo que era a sua meta, isto ao fim de quinze anos a erguer o corpo nas argolas, acima abaixo, acima abaixo. No dia seguinte, ele foi celebrar, ergueu a taça de champanhe um pouco acima do nível dos olhos, via as bolhinhas estalarem no líquido dourado, não chegou a beber o champanhe, deu-se a desordem, Leduc não em para ali chamado, um tipo deu-lhe com uma cadeira nas costas e ele ficou reduzido àquilo.
Quinze anos para fazer um Cristo perfeito e demorado e depois, estupidamente, a cadeira de rodas para o resto da vida. Mister DeLuxe levantou-se e abriu a janela. Para sair o fumo, explicou. Eu apago o cigarro, disse Austin, rapidamente. De modo nenhum, Austin, é só para arejar o ambiente. Mister Deluxe voltou a sentar-se. Leduc foi um homem e um homem é um drama, disse ele, foi feliz quinze anos com essa história um tanto frívola do Cristo, outros são felizes quinze dias, outros não chegam a saber o que é a felicidade, palavra que de resto, se quer a minha opinião pessoal, Austin, ninguém sabe explicar o que é. Digamos que a vida tem os seus bocados bons. Austin acenou com a cabeça e pensou um pouco. Molero fala numa espécie de matéria onírica, disse ele, Leduc passou a viver dos sonhos, foram muito amigos, o rapaz tinha-lhe grande afeição, a explicação é a seguinte, segundo Molero: o rapaz via-o numa cadeira de rodas e isto era o suficiente para lhe transmitir algo de tão importante como a circunstância de ser útil, a prática da utilidade pode levar um homem a reconciliar-se, aqui e além, consigo próprio, resolver em momentos propícios muitas das suas contradições. Leduc fazia traduções de livros para crianças e também gostava muito do rapaz, passavam dias inteiros a falar dos sonhos de Leduc, ele tinha visões relacionadas com argolas, trapézios, saltos em mesa alemã, ginástica respiratória, um plinto ao longe, o tropel com quase toda a gente que ele tinha conhecido, saíam do plinto e espalhavam-se por diferentes direcções, ele então erguia o corpo nas argolas, tinha uma taça de champanhe suspensa um pouco acima do nível dos olhos, havia uma explosão de luzes, sentia uma grande dor nas costas, começava a suar, as gotas de suor ainda sabiam a champanhe, algo dele pairava em regiões desconhecidas, depois o sonho diluía-se nas pernas mortas, nascia-lhe na boca, a pouco e pouco, a saliva da impotência, o sabor acre da vida». In Dinis Machado, O Que Diz Molero, Livraria Bertrand, Amadora, 1977.

Cortesia de Bertrand/JDACT