«(…) Leduc, disse Austin, o da cadeira de rodas. Quando Molero
ouviu falar nele, não o situou imediatamente, colocou-o mais tarde no devido lugar,
há muitas píginas do relatório dedicadas a Leduc. Esse é o ginasta, não é?, perguntou Mister Deluxe. Quando Molero
soube de Leduc, disse Austin, soube logo que ele tinha sido o ginasta, a
questão não é essa, é outra, Mister DeLuxe. Ele tinha feito ginástica a vida inteira,
especializou-se em argolas, a sua ambição era fazer um Cristo perfeito e
demorado, trabalhou quinze anos pata isso. Tudo aconteceu no dia seguinte, como
se o destino quisesse brincar com ele. Austin acendeu um cigarro e prosseguiu:
Ele tinha feito um Cristo perfeito e demorado, os braços bem abertos e o
cronómetro a marcar o tempo que era a sua meta, isto ao fim de quinze anos a
erguer o corpo nas argolas, acima abaixo, acima abaixo. No dia seguinte, ele
foi celebrar, ergueu a taça de champanhe um pouco acima do nível dos olhos, via
as bolhinhas estalarem no líquido dourado, não chegou a beber o champanhe,
deu-se a desordem, Leduc não em para ali chamado, um tipo deu-lhe com uma cadeira
nas costas e ele ficou reduzido àquilo.
Quinze anos para fazer um Cristo perfeito e demorado e depois,
estupidamente, a cadeira de rodas para o resto da vida. Mister DeLuxe levantou-se
e abriu a janela. Para sair o fumo, explicou. Eu apago o cigarro, disse Austin,
rapidamente. De modo nenhum, Austin, é só para arejar o ambiente. Mister Deluxe
voltou a sentar-se. Leduc foi um homem e um homem é um drama, disse ele, foi
feliz quinze anos com essa história um tanto frívola do Cristo, outros são
felizes quinze dias, outros não chegam a saber o que é a felicidade, palavra
que de resto, se quer a minha opinião pessoal, Austin, ninguém sabe explicar o
que é. Digamos que a vida tem os seus bocados bons. Austin acenou com a cabeça e
pensou um pouco. Molero fala numa espécie de matéria onírica, disse ele, Leduc passou
a viver dos sonhos, foram muito amigos, o rapaz tinha-lhe grande afeição, a
explicação é a seguinte, segundo Molero: o rapaz via-o numa cadeira
de rodas e isto era o suficiente para lhe transmitir algo de tão importante
como a circunstância de ser útil, a prática da utilidade pode levar um homem a
reconciliar-se, aqui e além, consigo próprio, resolver em momentos propícios
muitas das suas contradições. Leduc fazia traduções de livros para crianças e
também gostava muito do rapaz, passavam dias inteiros a falar dos sonhos de
Leduc, ele tinha visões relacionadas com argolas, trapézios, saltos em mesa alemã,
ginástica respiratória, um plinto ao longe, o tropel com quase toda a gente que
ele tinha conhecido, saíam do plinto e espalhavam-se por diferentes direcções,
ele então erguia o corpo nas argolas, tinha uma taça de champanhe suspensa um
pouco acima do nível dos olhos, havia uma explosão de luzes, sentia uma grande
dor nas costas, começava a suar, as gotas de suor ainda sabiam a champanhe, algo
dele pairava em regiões desconhecidas, depois o sonho diluía-se nas pernas
mortas, nascia-lhe na boca, a pouco e pouco, a saliva da impotência, o sabor
acre da vida». In Dinis Machado, O Que Diz Molero, Livraria Bertrand, Amadora, 1977.
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