O Bastardo. Na Ribeira das Naus
«(…) A pouco espaço, singelamente vestido e quase isolado da sua
brilhante comitiva, aparece El-rei, lívido, altivo, inconfundível, montando um
soberbo cavalo de opulentos jaezes. No Tejo estrondeiam então as bombardas e os
berços (pequenas peças de artilharia)
da nau de mil tonéis e das grandes
caravelas de guerra. Sente-se que vem ali a figura gigantesca de uma grande
época, resumindo na velhice precoce, na palidez funérea, no olhar de condor, a sua
história de sangue e a sua história de glórias. O povo sabe a história desse
Rei; conhece a tragédia imensa desse homem. Aos dezasseis anos, ainda imberbe,
é dos mais bravos entre os valentes de Afonso V, na conquista de Arzila, e ao
cabo da peleja, com a .espada vermelha de sangue, embotada nas cimeiras
moiriscas, recebe de joelhos, junto do cadáver de um herói, o conde de Marialva,
na mesquita transmudada em templo católico, a sagração do seu primeiro feito de
cavaleiro, como na pragmática heróica dos velhos tempos medievos.
Na batalha de Toro foi ele o vencedor. Fica à frente da sua hoste, que
os castelhanos não puderam repelir, fica no campo de batalha como um triunfador
antigo, e na página em que a história espanhola assinala uma vitória, porque a
ala de Afonso V recuou destroçada, alastra-se como um desmentido enorme a sombra
formidável daquele homem. No trono, que estivera deprimido pelo poder imenso da
nobreza e do clero, no trono, outrora sombreado pelos espantosos privilégios de
uma fidalguia insubmissa, ergue-se como um trágico antigo, luta como um
gladiador indomável e, buscando no povo oprimido e espoliado a aliança e a
força que lhe sustente o sólio, quebra em volta de si as arrogâncias rebeldes,
faz relampejar o cutelo do algoz sobre a cabeça do duque de Bragança e apunhala
impiedosamente, como um sicário, o moço duque de Viseu, o indicado chefe de uma
conspiração.
Terrivelmente fero na sua luta de defesa, mas imensamente grande nos seus
desígnios de homem de estado! O povo
sabia-lhe a história e compreendia-o. Aquele braço, que brandira um
punhal, desoprimira-o; aquela alma, implacável para a vindicta, suscitara-lhe
os queixumes de agravos contra as classes privilegiadas e ouvira-lhos clemente.
A voz daquele homem, sinistro para quantos lhe afrontavam o poder, sabia falar
destemidamente à audácia estrangeira, e no cérebro, que tantas vinganças…,
vivia o pensamento inabalável do engrandecimento e da glória da pátria portuguesa.
Sabia o povo que por vezes se planearam conspirações de morte contra aquele Rei
e que o punhal, o arcabuz e o veneno estiveram a ponto de o derribar do trono.
Vencera talvez o veneno, pois estava-o denunciando a terrível palidez do seu
rosto.
Os humildes não podiam esquecer as cortes de 1481, aquelas cortes de Évora, em que os procuradores dos
concelhos, os antigos deputados do povo, haviam exposto, a instigações
indirectas do filho de Afonso V, todos os agravos e todas as violências e
extorsões que desde muito eram oprimidos pelos grandes privilegiados. Fosse ou
não sincera a aliança daquele soberano com o braço popular; houvesse-o movido
apenas o interesse de consolidar o trono e erguê-lo acima da sobranceria
semifeudal dos fidalgos e dos príncipes da igreja; fosse como fosse, o povo
reconhecia-lhe o patrocínio e percebia o grande vulto que era, a despeito de
todas as suas máculas. Estimava-o. Não seria amor; era decerto gratidão.
Sentia-lhe a grandeza, e pagava-lhe os benefícios estimando-o». In
António Campos Júnior, Guerreiro e Monge, Romance Histórico, Livraria Romano
Torres, Lisboa, 1952.
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