sábado, 7 de junho de 2014

Guerreiro e Monge. Romance Histórico. Campos Júnior. «Terrivelmente fero na sua luta de defesa, mas imensamente grande nos seus desígnios de homem de estado! ‘O povo sabia-lhe a história e compreendia-o’. Aquele braço, que brandira um punhal, desoprimira-o; aquela alma…»

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O Bastardo. Na Ribeira das Naus
«(…) A pouco espaço, singelamente vestido e quase isolado da sua brilhante comitiva, aparece El-rei, lívido, altivo, inconfundível, montando um soberbo cavalo de opulentos jaezes. No Tejo estrondeiam então as bombardas e os berços (pequenas peças de artilharia) da nau de mil tonéis e das grandes caravelas de guerra. Sente-se que vem ali a figura gigantesca de uma grande época, resumindo na velhice precoce, na palidez funérea, no olhar de condor, a sua história de sangue e a sua história de glórias. O povo sabe a história desse Rei; conhece a tragédia imensa desse homem. Aos dezasseis anos, ainda imberbe, é dos mais bravos entre os valentes de Afonso V, na conquista de Arzila, e ao cabo da peleja, com a .espada vermelha de sangue, embotada nas cimeiras moiriscas, recebe de joelhos, junto do cadáver de um herói, o conde de Marialva, na mesquita transmudada em templo católico, a sagração do seu primeiro feito de cavaleiro, como na pragmática heróica dos velhos tempos medievos.
Na batalha de Toro foi ele o vencedor. Fica à frente da sua hoste, que os castelhanos não puderam repelir, fica no campo de batalha como um triunfador antigo, e na página em que a história espanhola assinala uma vitória, porque a ala de Afonso V recuou destroçada, alastra-se como um desmentido enorme a sombra formidável daquele homem. No trono, que estivera deprimido pelo poder imenso da nobreza e do clero, no trono, outrora sombreado pelos espantosos privilégios de uma fidalguia insubmissa, ergue-se como um trágico antigo, luta como um gladiador indomável e, buscando no povo oprimido e espoliado a aliança e a força que lhe sustente o sólio, quebra em volta de si as arrogâncias rebeldes, faz relampejar o cutelo do algoz sobre a cabeça do duque de Bragança e apunhala impiedosamente, como um sicário, o moço duque de Viseu, o indicado chefe de uma conspiração.
Terrivelmente fero na sua luta de defesa, mas imensamente grande nos seus desígnios de homem de estado! O povo sabia-lhe a história e compreendia-o. Aquele braço, que brandira um punhal, desoprimira-o; aquela alma, implacável para a vindicta, suscitara-lhe os queixumes de agravos contra as classes privilegiadas e ouvira-lhos clemente. A voz daquele homem, sinistro para quantos lhe afrontavam o poder, sabia falar destemidamente à audácia estrangeira, e no cérebro, que tantas vinganças…, vivia o pensamento inabalável do engrandecimento e da glória da pátria portuguesa. Sabia o povo que por vezes se planearam conspirações de morte contra aquele Rei e que o punhal, o arcabuz e o veneno estiveram a ponto de o derribar do trono. Vencera talvez o veneno, pois estava-o denunciando a terrível palidez do seu rosto.
Os humildes não podiam esquecer as cortes de 1481, aquelas cortes de Évora, em que os procuradores dos concelhos, os antigos deputados do povo, haviam exposto, a instigações indirectas do filho de Afonso V, todos os agravos e todas as violências e extorsões que desde muito eram oprimidos pelos grandes privilegiados. Fosse ou não sincera a aliança daquele soberano com o braço popular; houvesse-o movido apenas o interesse de consolidar o trono e erguê-lo acima da sobranceria semifeudal dos fidalgos e dos príncipes da igreja; fosse como fosse, o povo reconhecia-lhe o patrocínio e percebia o grande vulto que era, a despeito de todas as suas máculas. Estimava-o. Não seria amor; era decerto gratidão. Sentia-lhe a grandeza, e pagava-lhe os benefícios estimando-o». In António Campos Júnior, Guerreiro e Monge, Romance Histórico, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1952.

Cortesia de L.R.Torres/JDACT