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segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Latino Coelho. «Magalhães atravessou o Pacifico, trazendo nas suas aguas no rumo de noroeste uma loxodromia de mil e oitocentos e cincoenta myriametros da nossa actual medida iteneraria, que se chama Polynesia»

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NOTA: De acordo com o original

«(…) A necessidade obriga muitas vezes os que governam a parecerem duros de coração para não faltarem aos essenciaes deveres do cargo e a tornarem cruenta a justiça em alguns maus para salvarem de maiores calamidades a muitos bons e innocentes, e sobretudo para levarem a cabo a traça de que depende uma nova conquista social. A idéa, com ser immaterial e, ao parecer, inerme e inoffensiva, tem deixado muitas vezes na sua marcha triumphante um sulco de sangue em seu caminho. Absolvamos pois o nosso Fernão de Magalhães do que teve de cruel o seu procedimento, e sigamol-o outra vez em sua derrota. A 24 de Agosto de 1520 se fizeram de novo ao mar as caravellas. Pouco depois naufragou, na violência de uma borrasca, a nau Santiago, em que ia o piloto-mór João Serrano, sem que houvesse que lastimar a perda da tripulação e da fazenda. Navegaram as quatro caravellas que ainda restavam, até darem fundo n’um rio a que pozeram nome Santa Cruz, e guarecendo-se ali contra os temporaes, e fazendo aguada e provisão do que a terra podia ministrar, a 18 de Outubro se aventuraram de novo ao Oceano.
Em breves singraduras deram vista de um promontório, e por ser em dia em que a egreja celebra as onze mil virgens, lhe pozeram nome Cabo das Virgens, com que ainda hoje é conhecido, e demora quasi no extremo austral do continente americano. Notaram os da nau Victoria que a sul do cabo o mar se ia internando. Reconhecida então a costa, se descobriu que era ali a boca de um estreito a que os homens da caravella chamaram ao principio estreito da Victoria (Gaspar Corrêa diz que lhe pozeram o nome de rio da Victoria. Então se partiu do rio e correu ao longo da costa até chegar a um rio, a que poz nome da Victoria, que tinha a terra alta de ambas as bandas. In Lendas da Índia, tomo II, parte II). Mandou o capitão-mór que as três naus, Concepcion, Victoria e Santo António, se fossem a alcançar noticias mais exactas d’aquelle estreito, em quanto Magalhães na Trinidad os ficava esperando por cinco dias, e indo as caravellas pelo estreito dentro, succedeu rebellar-se a tripulação contra Álvaro Mesquita, que ia n’uma d’ellas por capitão, prendendo-o e fazendo-se logo á vela para Hespanha.
D’este rio, diz Gaspar Corrêa, (chama rio n’este logar ao estreito de Magalhães, como se deprehende do que diz mais adiante: … então o Magalhães, com os três navios, que tinha, se foi pelo rio dentro, porque correu passante de cem legoas e saiu da outra banda do rio) lhe fugiu a nau de Mesquita, que não soube se o mataram ou se foi por sua vontade ; mas um adivinhador estrolico (astrólogo) lhe disse que o capitão ia preso e se tornaram para Castella, mas que o imperador lhe faria mal. Voltaram as duas naus trazendo ao capitão-mór apraziveis novas acerca do que suppunham ser estreito. Como não chegava a caravella de Mesquita, esteve o capitão-mór á sua espera por muitos dias, até que tomando conselho com os outros capitães, determinou engolfar-se no estreito, e navegando sem descobrir em uma e outra costa outros signaes de habitadores, mais do que os fogos que via accesos sobre os serros, saiu a final no Mar do Sul, a 27 de Novembro de 1520, depois de ter gastado vinte e dois dias n’esta derrota. O estreito novamente descoberto recebia o nome de Magalhães, que ainda hoje conserva, e mais uma gloria portugueza ficava memorada nos fastos da moderna geographia.

Um portuguez descobriu o Oceano  navegando sempre desde Hespanha, sem haver como Balboa descoberto das alturas de Quarequa, no isthmo de Panamá, aquelle mar desconhecido, (alguns dias depois de haver Balboa descoberto o Mar do Sul, o hespanhol Alonso Martin achando um caminho desde Quarequa até ao porto de S. Miguel, foi o primeiro europeu que sulcou o Mar do Sul navegando sobre elle n’uma canoa). Magalhães atravessou o Pacifico (que assim ficou sendo chamado aquelle mar pela fama de bonançoso), trazendo nas suas aguas no rumo de noroeste uma loxodromia de mil e oitocentos e cincoenta myriametros da nossa actual medida iteneraria, e na vasta região que se chama Polynesia. Por 16º e 15’ de latitude deu vista de uma ilha deserta, a que chamou de S. Paulo, e mais adiante em 11° e 18’ passou n’outra ilha, a que poz nome dos Tubarões». In Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira, Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.

Cortesia de Imprensa Portuguesa/JDACT

sábado, 5 de outubro de 2013

Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela. Latino Coelho. «Partiu-se das Canárias de Tenerife e foi demandar o Cabo-Verde, d'onde atravessou á costa do Brasil, e foi entrar n'um rio que se chama Janeiro…»

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NOTA: De acordo com o original

«(…) Dêmos a palavra ao incorrecto chronista das Lendas, para lhe ouvirmos narrar, em sua rude mas pittoresca linguagem, as coisas da expedição desde que largou das costas hespanholas até ao ponto da conjuração. A qual armada concertada com a gente paga por seis mezes, partiu de San Lucas (San Lucar) de Barrameda em Agosto do anno de 1519. Com que navegou ás Canárias e fez aguada. Onde estando lhe chegou um barco com cartas de seu sogro, em que lhe dava aviso que tivesse em sua pessoa boa vigia, porque tinha sabido que os capitães que levava disseram a seus amigos e parentes, que se elle os anojasse que o matariam e se levantariam contra elle. Ao que lhe respondeu que elle lhes não fazia aggravos porque elles tivessem razão de o fazer; que por isso elle os não fizera, mas os regedores lh'os deram, que os conheciam; que, bons ou maus, elles trabalhariam por fazer o serviço do imperador, que a isso ofFereceram a vida. A qual resposta o sogro mostrou aos regedores, que muito louvaram o coração de Magalhães.
Partiu-se das Canárias de Tenerife e foi demandar o Cabo-Verde, d'onde atravessou á costa do Brasil, e foi entrar n'um rio que se chama Janeiro… E d'aqui foram navegando até chegarem ao cabo de Santa Maria, que João de Lisboa descobrira no anno de 1514, e d'aqui foram ao rio de S. Julião, onde estando tomando agua e lenha João de Cartagena, que era sota capitão-mór, se concertou com os outros capitães que se levantassem, dizendo que o Magalhães os levava enganados e vendidos. E porque elles entendiam que o Gaspar de Quesada era amigo do Magalhães, o João de Cartagena se metteu no seu batel, de noite, com vinte homens e se foi á nau de Gaspar Quesada e entrou a falar com elle, e o prendeu, e fez capitão da nau um seu parente, para logo todos três irem abalroar o Magalhães e o matarem. E logo renderiam a outra nau de João Serrano e tomariam o dinheiro e fazenda, que esconderiam, e se tornariam ao imperador, e lhe diriam que o Magalhães os levava vendidos e enganados, fazendo traição a seus regimentos, porque ia navegando pelos mares e terras d'el-rei de Portugal: do qual feito primeiro haveriam seguro do imperador. Com que se ordenaram na traição, que lhe saiu mal.
Usou Fernão de Magalhães de extrema severidade para com os capitães, que se haviam alevantado contra elle e andavam apostados para o matar. Foi summarissimo o processo, com que os sentenciou a pena capital, porque nem houve sequer allegação, antes sem que n'isso cuidassem, nem houvesse tempo para prevenções, os salteou em seus navios e fez n'elles justiça cruelissima. Porque a Luiz de Mendonça o colheu á traição, e em sua mesma caravella o degolou com uma adaga (segundo conta Gaspar Corrêa), o meirinho Ambrósio Fernandes, com quem se concertara para este effeito o capitão-mór. E chegando Magalhães á nau de Luiz de Mendonça, com a gente armada e artilheria prestes, elegeu para capitão a Duarte Barbosa, homem portuguez seu amigo, e mandou enforcar nas vergas seis homens, que se alevantaram contra o meirinho, e pendurar pelos pés o corpo de Mendonça que o vissem das outras naus. Veiu depois Fernão de Magalhães junto da caravella de João de Cartagena, e por ardil de que usou para evitar um recontro, onde poderia derramar-se muito sangue, entrou na embarcação e ao Cartagena prendeu e mandou esquartejar com pregão de traidor; e elegeu por capitão a Álvaro de Mesquita, que o rebelde castelhano tinha preso em ferros, porque o reprehendeu do alevantamento que fazia.

É muito para acreditar que os hespanhoes, de que pela maior parte se compunha a tripulação, tivessem ojeriza ao capitão-mór, porque sendo portuguez, posto que homem principal e promotor da expedição, recebera o governo d'aquella empresa. O que já succedêra com o genovez Colombo, agora com maior rigor e desacato á autoridade de que ia revestido, o intentaram os rebeldes capitães contra Fernão de Magalhães. Já muito de antemão iam os castelhanos apparelhados para a desobediência e rebellião, como claramente o patenteavam as cartas recebidas pelo Magalhães em Tenerife. Não era apenas a vida que o ilustre portuguez havia de perder, se chegasse a vingar a sedição dos hespanhoes. Era a própria empresa em que se empenhava, e a gloria que já sonhara para si, e os loiros immortaes de ousado aventureiro e de feliz descobridor. Dissimular a conjuração e esperal-a resoluto, era dar a victoria segura aos inimigos. Reprehender nos sediciosos o mau feito que intentavam, e oppor o prestigio moral da autoridade á força material dos conspiradores, era arriscar-se a ver desacatada a auctoridade de sua pessoa, e entregar, com resignação de bom christão, mas com imprevidência de mau soldado, a cabeça ao ferro dos conjurados, e a idéa ao desamor e desamparo de quem tinha delineado trocar a gloria própria, e o serviço do imperador, por alguns punhados de oiro, com que se volveria á pátria». In Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira, Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.

Cortesia de Imprensa Portuguesa/JDACT

domingo, 29 de setembro de 2013

Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela. Latino Coelho. «Tomada lingua com a gente da terra, que eram os celebrados patagões, de quem se phantasiavam tantas fabulas, e captivos alguns d'elles, entraram os capitães de três das caravellas em aberta insurreição contra Magalhães»

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NOTA: De acordo com o original

«(…) Mediando os concertos entre Magalhães e o imperador, succedêra enlouquecer o cosmographo Faleiro, que até então fora sócio de Fernão, com o que teve Magalhães de se embarcar sem o companheiro, tomando á sua conta exclusiva os futuros cuidados d'aquella empresa.
Designado Fernão de Magalhães por capitão-mór da expedição entrou a governar a Trinidad, que ia por capitania. A segunda caravella Santo António capitaneava João Cartagena. A terceira, por nome Concepcion, mandava Gaspar Quesada, e fazia n'ella o officio de piloto o celebrado Elcano, que mais particularmente partilhou com Magalhães as glorias d'esta longa navegação e descobrimento. A quarta, cuja invocação era Victoria, commandava Luiz Mendonça. Na caravella Santiago embarcou de capitão João Serrano, que era ao mesmo tempo piloto-mór de toda a frota. Tripulavam ao todo as cinco embarcações duzentos e trinta e sete homens, que não seriam hoje suficientes para guarnecer um só navio que se destinasse a tão diuturna e aventurosa navegação, como aquella que iam então emprehender.
Sigamos a narração de Gaspar Corrêa, descrevendo as vistas de Magalhães com o imperador, e os aprestos da pequena armada: Fernão de Magalhães foi a Burgos, onde estava o imperador e lhe beijou a mão, e o imperador lhe deu mil cruzados de acostamento para gasto de sua mulher em quanto fosse sua viagem, assentado na vassallagem de Sevilha, e lhe deu poder de baraço e cutello em toda a pessoa que fosse na armada, de que seria capitão-mór; do que lhe assignou grandes poderes; com que tornado a Sevilha, lhe foram concertados cinco navios pequenos, como elle pediu, concertados e armados como elle quiz, com quatrocentos homens de armas, em que lhe carregaram as mercadorias que elle pediu. Os regedores lhe disseram que elle desse as capitanias, do que elle se escusou dizendo que era novo na terra, que não conhecia os homens; que eles os buscassem que fossem bons e fieis ao serviço do imperador, que folgassem por seu serviço de levar trabalhos e má vida que haviam de passar na viagem. O que os regedores muito lhe tiveram a bem e bom aviso, e que aos capitães que fizessem e gentes que levasse primeiro lhes notificassem os poderes que levava do imperador. O que assim fizeram, e em Sevilha buscaram homens de confiança para capitães, que foram João Cartagena, Luiz Mendonça, João Serrano e Pêro Quesada. Esta narração de Gaspar Corrêa discorda apenas do que referem os outros historiadores em dizer que Magalhães levava em sua frota quatrocentos homens, e chamar Pêro Quesada ao que outros escrevem com o nome de Gaspar, que elle próprio depois no decurso da narração lhe restitue.
Largou de Sevilha a armada em 1 de Agosto de 1519, e aos 27 de Setembro desaferrou do porto de San Lucar, aproando ao rumo das Canárias. Tomando terra em Tenerife para refrescar e aperceber-se de vitualhas, passando na volta de Cabo-Verde e indireitando para a America, surgiram na bahia de Santa Luzia, d'onde sairam a 27 de Dezembro. Chegando ao rio da Prata, foi a nau Santiago pelo rio acima, até 25 legoas de sua foz, e veiu trazendo nova de que o rio se alargava para o norte. Foram seguindo a costa para o sul, e aos 42º e 30’ de latitude austral, entraram n'uma grande bahia, a que pozeram nome de S. Mathias, e suspeitando que por ali podesse haver passagem para o mar do sul, a andaram buscando n'aquellas aguas, por umas cincoenta legoas de navegação, sem a poderem descobrir. D'ali se foram, sempre costeando, até surgir na bahia de S. Julião.
Tomada lingua com a gente da terra, que eram os celebrados patagões, de quem se phantasiavam tantas fabulas, e captivos alguns d'elles, entraram os capitães de três das caravellas em aberta insurreição contra Magalhães. Por salvar sua auctoridade e segurar a continuação da empresa, os mandou elle punir de pena capital, depois que já não eram bastantes a reprimil-os o conselho e persuasão, com o que vieram a cessar as alterações que havia na frota e a prevalecerem os desígnios de Magalhães, o qual invernou n'aquellas paragens, em que, como diz Gaspar Corrêa, espalmou e concertou muito bem os navios». In Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira, Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.

Cortesia de Imprensa Portuguesa/JDACT

Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela. Latino Coelho. «Avistou-se em Sevilha o portuguez, já então desnaturalisado de sua pátria, com os offciaes da contratação, e lhes propoz o intento que levava. Passando depois á corte, o acolheu benignamente o ministro cardeal Fr. Francisco Ximenes de Cisneros…»

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NOTA: De acordo com o original

«(…) Foi-se Fernão de Magalhães a Castella, levando em sua companhia a Ruy Faleiro, perito cosmographo portuguez, e a outros navegantes da mesma nação, os quaes iam dispostos a seguil-o na sua boa ou má fortuna. Já então lhe era inabalável convicção a de que seria possível encontrar a desejada passagem para a Índia Oriental, navegando ao sul do Novo Mundo. O plano predilecto de Colombo achou em Fernão de Magalhães um devotado continuador.
Avistou-se em Sevilha o portuguez, já então desnaturalisado de sua pátria, com os offciaes da contratação, e lhes propoz o intento que levava. Passando depois á corte, o acolheu benignamente o ministro cardeal Fr. Francisco Ximenes de Cisneros, que tanto se empenhava pelo engrandecimento e poderio da coroa castelhana, e que desejou accrescentar os dominios hespanhoes, como bem o demonstrou na jornada de Oran, que elle próprio dirigira, vestindo o arnez sobre a purpura romana. Prometteu o cardeal a Magalhães que á volta do imperador, que então andava em Flandres, lhe seria despachada a sua justa petição.
Oiçamos o singelo historiador Gaspar Corrêa, narrando com sua nativa sinceridade os successos de Magalhães: ... Fernão de Magalhães se foi a Castella ao porto de Sevilha, onde se casou com a filha de um homem principal, com tenção de navegar pelo mar, porque entendia muito da arte de piloto, que era esperico (o mesmo que espherico, homem sabedor da esphera, ou das coisas da cosmografia). Em Sevilha tinha o imperador a Casa da Contratação, com seus regedores da fazenda, com muitos poderes, e grande tráfego de navegação e armadas para fora. Fernão de Magalhães, atrevido em seu saber, com a muita vontade que tinha de anojar el-rei de Portugal, falou com os regedores da Casa da Contratação, e lhes disse que Malaca e Moluco, ilhas em que nascia o cravo, eram do imperador pelas demarcações que havia d'entre ambos; pelo que el-rei de Portugal contra direito possuia estas terras; e que isto elle o faria certo ante todos os doutores que o contradissessem, e a isso obrigaria a cabeça. Ao que os regedores lhe responderam que bem sabiam que elle falava verdade, e o imperador assim o sabia, mas que o imperador não tinha navegação para lá, porque não podia navegar pelo mar da demarcação d'el-rei de Portugal. Fernão de Magalhães lhes disse: Se me derdes navios e gente, eu mostrarei navegação para lá, sem tocar em nenhum mar nem terra d'el-rei de Portugal. E senão que lhe cortassem a cabeça. Do que os regedores muito contentes o escreveram ao imperador, que lhes respondeu que havia prazer com o dito e muito mais haveria com o feito; que elles tudo fizessem, guardando seu serviço e as coisas d'el-rei de Portugal, que não fossem tocadas, e que antes tudo se perdesse. Com a qual resposta do imperador falaram com o Magalhães e com elle muito se affirmaram no que dizia, que navegaria e mostraria o caminho por fora dos mares d'el-rei de Portugal; que lhe dessem os navios que pedisse, gente, artilheria e o necessário, que elle cumpriria o que dizia, e descobriria novas terras que estavam na demarcação do imperador, d'onde traria oiro, cravo, canella e outras riquezas; o que ouvido pelos regedores, com grande desejo de fazer tamanho serviço ao imperador, como era descobrir esta navegação, e por fazerem esta coisa mais certa, ajuntaram pilotos e espericos, que sobre o caso disputaram com o Magalhães, que a todos deu suas razões, que concederam no que dizia e afirmaram que era homem mui sabido.
Chegando a Hespanha Carlos V, se foi Magalhães á cidade de Burgos, onde estava então o César, e perante a sua presença proseguiu nas diligencias da sua empresa. Opiniou favoravelmente o conselho de Castella sobre a proposta do navegante portuguez. Accedeu a final o imperador, e fazendo a Magalhães a mercê do habito de Santiago e nomeando-o capitão de suas frotas, ordenou que em Sevilha se lhe fizessem prestes cinco caravellas, com que havia de partir em sua projectada expedição». In Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira, Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.

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Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela. Latino Coelho. «… narra a petição de Magalhães, e o mau despacho d'el-rei: ...; o qual Fernão de Magalhães indo ao reino, allegando a el-rei seus serviços, e pedindo em satisfação que lhe acrescentasse cem réis em sua moradia por mez, o que lhe el-rei denegou…»

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NOTA: De acordo com o original

«(…) De mais, o portuguez esclarecido trazia já na mente a traça do grande commettimento que devia illustrar o seu nome, e vinculal-o perennemente nos fastos das nações. Se lhe negavam três cruzados por anno, para os quaes tinha posto a juros a sua espada na Índia, e o seu sangue em Azamor, o que não havia de ser, quando elle pedisse a el-rei que lhe desse dois navios para ir correr os mares e descobrir novos dominios á coroa de Portugal? Como havia de fiar a sua futura gloria de quem já lhe punha abertamente em duvida a passada fama de suas façanhas? Claro estava que não havia de ser mais bem succedido na petição de heroe do que fora então na de requerente e de soldado.
Eis aqui como Gaspar Corrêa, na simplicidade do seu estylo e na incorrecção habitual da sua linguagem, narra a petição de Magalhães, e o mau despacho d'el-rei: ...; o qual Fernão de Magalhães indo ao reino, allegando a el-rei seus serviços, e pedindo em satisfação que lhe acrescentasse cem réis em sua moradia por mez, o que lhe el-rei denegou, por lhe não cair em graça, ou porque assim estava permittido que havia de ser; Fernão de Magalhães d'isto aggravado, porque o muito pediu a el-rei e elle o não quiz fazer, lhe pediu licença para ir viver com quem lhe fizesse mercê, em que alcançasse mais dita que com elle. El-rei lhe disse que fizesse o que quizesse; pelo que lhe quiz beijar a mão, que lhe el-rei não quiz dar. Fernão de Magalhães desnaturalisou-se de portuguez, e foi-se a Castella pedir que o inscrevessem ali como cidadão. Fez mal? Fez bem?
Castella era n'aquelle tempo, como antes, como depois, a inimiga de Portugal, ainda quando a paz dissimulava nas apparencias da concórdia a hereditária hostilidade das duas coroas peninsulares, que aspiravam á exclusiva supremacia. Castella era a émula de Portugal nas conquistas transatlânticas. Castella era na Europa a nação perpetuamente cobiçosa da estreita orla Occidental que as lanças portuguezas haviam sempre defendido contra os partidários da unidade hispânica; era nos mares o estado que comnosco litigava o império e poderio. Renegar a pátria e ir-se a Castella era tão feia acção como na antiguidade o acolher-se um atheniense ou um espartano á corte dos reis da Pérsia, depois de haver contra elles pelejado em Marathona ou em Plateia.
Desnaturalisar-se de portuguez e ir offerecer a sua espada aos reis catholicos era porventura maior sacrilégio, então, do que renegar a pureza da verdadeira fé, e transviar-se nos erros de Luthero e de Calvino. No portuguez não foi para ser louvada a represália. No homem que havia de pertencer á civilisação e á humanidade mais do que aos estreitos limites da sua pátria, podemos relevar o impulso da offendida dignidade e do amor próprio justificado.
Para ser portuguez havia de ver menosprezada a sua gloria e mal galardoados os seus feitos. Para não faltar á religião da pátria havia de faltar á religião de honra; havia de devorar as affrontas em silencio, e reprimir no peito os rebates da sua varonil indignação. Para ser portuguez havia de votar-se talvez para sempre á obscuridade, e ver frustrado o seu empenho de conquistar para si um nome illustre, a par de quantos houve mais distinctos na historia das modernas navegações.
Com a fidelidade de Fernão de Magalhães lucrava a pátria e o rei um natural e um vassallo. Mas perdia o drama glorioso dos descobrimentos transatlânticos um eminente personagem, Portugal um nome venerando, a moderna civilisação um d'estes fervorosos operários que da espada e do navio tem feito os mais poderosos instrumentos do progresso. Fernão de Magalhães pagou-nos generosamente o desamor e affronta de renegar-nos. Servia a Castella quando circumnavegava o globo. Mas o nome de Magalhães ficou sempre portuguez, e a gloria das suas navegações ha de ser
perpetuamente gloria também de Portugal». In Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira, Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.

Cortesia de Imprensa Portuguesa/JDACT

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela. Latino Coelho. «Quasi logo ao principiar das gloriosas guerras da India se foi a provar fortuna, levando por mestre e capitão tão exemplar soldado como Francisco de Almeida, o qual ia então a governar e adiantar as conquistas portuguezas com titulo de seu primeiro vice-rei»

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NOTA: De acordo com o original

«(…) Fernão de Magalhães appareceu para continuar as façanhas e as glorias marítimas de Colombo, de Solis e Vasco Nunes de Balboa. Seis annos depois que Balboa, diz Alexandre Humboldt, com a espada na mão se mettia nas ondas até ao joelho, e pensava tomar posse do mar do sul em nome de Castella, dois anos depois que a sua cabeça rolava no cepo do verdugo, quando foi a insurreição contra o despotico Pedrarias de Ávila, cruzava Magalhães o mesmo mar do sudoeste ao noroeste n'um espaço de 1850 myriametros. Fernão de Magalhães começou a cursar os exercicios de guerra n'aquelle grande e lustroso theatro onde ceifavam as suas palmas, e os seus loiros, os Almeidas e os Albuquerques. Educado na côrte dos reis, ao serviço da rainha D. Leonor, e depois na de el-rei Manuel I, não era o seu animo varonil e aventureiro para casar-se de boamente com o remansado viver dos paços, onde o ócio é apenas temperado pelas fúteis occupações da etiqueta cortezan. Sentia-se porventura enclausurado o espirito d'aquelle que de nada menos se satisfez, que de navegar extensos mares desconhecidos e legar o seu nome aos fastos mais illustres da moderna geographia.
Quasi logo ao principiar das gloriosas guerras da India se foi a provar fortuna, levando por mestre e capitão tão exemplar soldado como Francisco de Almeida, o qual ia então a governar e adiantar as conquistas portuguezas com titulo de seu primeiro vice-rei. Logo a poucos passos se illustrou por uma acção nobilissima, que arguia ao mesmo tempo a sua galhardia e brios de navegante, e a fidalga generosidade do seu grande coração. Vinha Fernão da India para o reino em certa nau. Aconteceu dar a embarcação nos baixos de Angediva. Não desamparou Fernão de Magalhães o navio, antes com sua prudência e a auctoridade de seu animo esforçado conteve a guarnição até que vieram soccorrel-a n'esse lance. O capitão da nau propunha ao brioso portuguez que n'uma canoa se salvasse. Acceitára Magalhães o alvitre, com tanto que levasse comsigo um seu companheiro, com quem, apesar de menos illustre por nascimento e condição,
tinha tracto de amizade. Oppoz-se o capitão a que na barca se salvasse também o amigo de Magalhães; e Fernão, por um acto de generosa abnegação e de fidalga humanidade, antes quiz preparar-se para morrer, salvando o que devia á obrigação, do que comprar a vida por tão baixo preço de egoismo. Achou-se Fernão de Magalhães na primeira empresa de Malaca com Diogo Lopes Sequeira, e não desmentiu n'esta façanha gloriosa das armas portuguezas, os loiros que, por outras acções, lhe cingiam a fronte juvenil. Em Azamor, saindo uma vez a saltear os moiros, recolheu-se á praça com mais de oitocentos prisioneiros e copioso despojo dos inimigos, custando-lhe a facção uma lançada de que veiu a ficar com alguma deformidade no andar.
Depois de cruzar os mares, de pelejar na Africa e na India, julgou serem bastantes os serviços que prestara, para que el-rei lhe concedesse em galardão um accrescentamento na moradia, que, como fidalgo da sua casa, recebia. Era o rei Manuel I grande remunerador de bons serviços, e mormente dos que eram praticados nas conquistas, em cujo progresso, primeiro que tudo, se empenhava. Mas Manuel era rei, e ainda que monarcha absoluto no governo, sempre havia de ter ilhargas, por cuja conta corresse o afrouxar ou cerrar a bolsa da real munificência. Desde que houve reis e côrtes, houve também logo invejosos e cortezãos, que se adiantavam ao throno para tomar o passo aos beneméritos.
Que muito é pois que o soldado que voltava da Africa e da India, com petição tão justa quão modesta, achasse, ao entrar nos paços, quem fosse segredar a el-rei umas sonhadas malversações, uns senões calumniosos, com que a intriga de aulicos e o ciume de espíritos mesquinhos intenta sempre deslustrar a maior virtude e embaciar o mais peregrino entendimento? Também Cervantes jazeu nos ferros de Castella, por lhe arguirem más contas no officio que servia, e não lhe valeu contra a inveja nem o tiro de arcabuz, com que ficára manco, desde a jornada de Lepanto, nem o ser príncipe dos engenhos hespanhoes do seu tempo e porventura dos séculos vindouros. El-rei Manuel I, em vez do despacho que Fernão de Magalhães sollicitava, ordenou que voltasse á Africa a justificar-se das accusações que lhe faziam.
Soffreu o illustre portuguez o desaire do mau despacho, e a affronta ainda maior de lhe taxarem a honra com suspeitas. E determinando de passar á Africa, d'ali volveu pouco depois trazendo as provas que testemunhavam a falsidade das imputações. Tornou a requerer, o que sem petição lhe devia attribuir a justiça da côrte, se côrte e justiça não andassem desavindas desde tempos immemoriaes. Atravessaram-se os invejosos, e el-rei, cerrando os olhos ao merecimento, dizem que foi premiar pelos feitos de Magalhães os que n'elles tiveram menor parte. Fernão de Magalhães era portuguez, mas antes de ser portuguez era homem, e homem que se sentia interiormente predestinado para altas empresas e glorias immortaes. Podia dissimular então a injuria, indo novamente á India vingar-se, morrendo pelo rei, que assim o tinha aggravado. Fernão de Magalhães, a quem davam realce os espiritos elevados com que o dotou a natureza, entendeu que pátria e rei, que de si o demittiam, negando-lhe o honesto salário de seus serviços, e trocando-lhe o premio pela indifferença, não eram rei nem pátria a quem se devesse fidelidade». In Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira, Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.

Cortesia de Imprensa Portuguesa/JDACT

Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela. Latino Coelho. «… occidente de Veragua havia um mar, ainda não frequentado de europeus, o qual, são as próprias palavras do almirante, poderia abrir caminho em menos de nove dias até á Áurea Chersonesus de Ptolomeu e á foz do rio Ganges»

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NOTA: De acordo com o original

«(…) Singular condição dos destinos humanos, que seja o navio o primeiro instrumento das revoluções modernas, e que sejam as proas que tracem no livro immenso do Oceano a historia mais eloquente da civilisação. Desde que o aventuroso genovez sonha a sua gloriosa expedição e pede por especial mercê aos reis catholicos, que lhe dcêem uns pobres navios, por meio dos quaes virão a ser os mais poderosos principes do mundo, o desejo das empresas maritimas chega a ser na Europa um fanatismo, uma d'estas sublimes loucuras, com que o mundo se revoluciona, se transforma, progride, melhora e espedaça as cadeias da tradição, e deixa absortos perante não sonhadas maravilhas os próprios conquistadores. O caminho mais breve entre a Europa e as regiões encantadas do Oriente é a preoccupação dos navegantes e o sonho dos cosmographos. Colombo e Amerigo Vespucci saúdam as praias desconhecidas do Novo Mundo, julgando ter tomado terra n'uma região da Ásia oriental, e haver resolvido o grande problema da cosmographia e da navegação.

NOTA: Ainda que o navegador Colombo, que por fins do século XV dirigia esta empresa grandiosa, o descobrimento da terra americana, não levava de certo o seu intento em aportar a uma nova região do mundo, se bem que seja certo haverem Colombo e Vespucci perseverado até á morte na crença de que haviam apenas reconhecido uma parte da Ásia oriental, a expedição offerece comtudo os caracteres de um plano scientificamente delineado e conduzido. Humboldt, Cosmos, tomo II.

Se não tinham ancorado junto das praias do remoto Zipangu, Japão, que se julgava o termo suspirado e o premio digno de todas as expedições transatlânticas, deixaram, em seu conceito, aberta a estrada, por onde mais felizes, mas não mais audazes navegadores, iriam rematar a empresa começada. Se a inspiração com que Martin Alonso Pinzon, o companheiro de Colombo, se dizia illuminado, alcançou que o almirante genovez desistisse de seguir a supposta derrota para o Japão, e navegando para sudoeste, tomasse terra n'uma ilha americana, sempre é certo que o Novo Mundo se patenteou aos europeus por um destes erros felizes, que valem mil vezes mais do que a verdade. Partir das costas europeias, fazer-se á vela no rumo de sudoeste, abordar ás regiões orientaes, e voltar depois pelo mar das Indias, circumnavegando o globo inteiro, era a predilecta empresa dos grandes navegadores desde a primeira expedição de Christovão Colombo.
Estando o almirante na ilha de Cuba, escrevia no seu diário, no 1° de novembro de 1492: Ficam defronte de mim, e muito próximas, Zayto e Guinsay do grão-Kan. Eram o Zaytun e o Quinsay de Marco Polo. A ser verdadeira a narração de Fernando, filho do grande descobridor, e o testemunho de André Bernaldes, cura de los Palacios, o qual tratou intimamente e em sua casa hospedou o navegador, ao voltar da sua segunda expedição, deve acreditar-se haver Colombo, sempre infatigavel no proseguimento da sua grande empresa, tentado, ao sair de Cuba, navegar para o occidente, com o propósito de voltar á Hespanha por mar, tornando por Ceylão, e costeando a peninsula africana, ou regressar por terra, fazendo-se na volta da Palestina.
Os loiros de Vasco da Gama tinham pois corrido o lance de exornarem a fronte de Colombo. A Providencia, que havia traçado em seus planos maravilhosos o engrandecimento da civilização e a propagação da verdadeira fé nas mais dilatadas regiões, deu a Colombo o que elle menos invejava, rasgando-lhe o véo mysterioso que encerrava um Novo-Mundo, a Gama a honra de descobrir, por mares nunca d'antes navegados, o novo caminho do oriente. Ambos os navegadores eram necessários aos designios da Providencia, como gloriosos operários de uma inesperada reformação. A Colombo pertence, todavia, a primitiva traça de uma longa circumnavegação. A idéa que elle buscára iniciar não ficou perdida nem esteril. Na sua esteira navegaram os mais arrojados mareantes. Ao passo que progrediam os descobrimentos na costa oriental do Novo Mundo, recrescia o mais ardente desejo de encontrar uma passagem que, pelo norte ou pelo sul, levasse ás appetecidas regiões do Cathay e do Japão.
Havia-se tornado evidente aos mais incredulos o serem todas as costas já descobertas do Novo Mundo pertencentes a um vasto continente, que ia para o sul prolongando o seu extenso littoral. Depois da empresa, que immortalisou Colombo, o facto mais notável e fecundo na historia das relações entre o antigo e o Novo Mundo é sem contestação o descobrimento do mar do sul e das costas occidentaes americanas, que tanto lustre accrescentaram ao nome de Balboa. Alguns annos antes, o espirito eminente de Colombo se havia certificado de que ao occidente de Veragua havia um mar, ainda não frequentado de europeus, o qual, são as próprias palavras do almirante, poderia abrir caminho em menos de nove dias até á Áurea Chersonesus de Ptolomeu e á foz do rio Ganges.
Lê-se numa carta de Colombo, que os littoraes oppostos de Veragua estão na mesma relativa situação em que demoram Tolosa no Mediterrâneo e Fuenterabia na Biscaya, ou como Veneza no Adriático, e Pisa na contracosta. O descobrimento realisado por Balboa era a confirmação das idéas de Colombo. O intento, sempre dominante, de buscar uma passagem directa, ao norte ou ao meio dia, para chegar no mais breve transito até ás desejadas regiões da especiaria, continuava a achar nos mais aventurosos navegadores os apóstolos praticos da grande revolução que se julgava a ponto de operar-se na geographia, e no tracto mercantil com os paizes orientaes. A civilisação esperava n'este momento um homem d'estes que a Providencia designa com o seu dedo omnipotente, quando tem determinado voltar mais uma folha no livro da sciencia e da civilização». In Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira, Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.

Cortesia de Imprensa Portuguesa/JDACT

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela. Latino Coelho. «Vasco da Gama pertence á mesma pátria que tem por cidadãos a Colombo, a Newton, a Galileu, a Raphael, a Watt, a Galvani, a todos estes espiritos illuminados, como raios de luz sobrenatural, para doirar as trevas da humanidade»

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NOTA: De acordo com o original

«(…) Se assim tivesse acontecido, porventura havia de ler-se agora na carta da península hispânica: Portugal, provinda mais Occidental da Hespanha. E lê-se: Portugal nação independente e gloriosa por seus feitos. A terra illustrada pelo mestre de Aviz e por Nuno Alvares não teria conservado o privilegio de independência com melhor fortuna do que o reino de Aragão ou a esquecida monarchia de Navarra. Podiam edificar a Batalha e o velho monumento de João I; esta epopéa cavalleirosa e christan, cinzelada em pedra, não teria assegurado a liberdade portugueza contra a lei providencial que pune pela conquista a obscuridade ou a decadência das nações.
Portugal é nação desde o dia em que saiu a cruzar os mares. Até ali era o colono humilde que lavra ignoto a estreita gleba patrimonial. Desde então foi o cavalleiro da christandade, o obreiro da civilisação. Até então era apenas Portugal. D'ali por diante começou a ser Europa, a ser mundo, a ser heroe, a ser intelligencia, a ser força, a ser luz, a ser liberdade, progresso, gloria e civilisação. A historia das nações principia e acaba onde ellas começam e terminam a sua participação nas grandes metamorfoses da humanidade. Uma nação não são quatro linhas onduladas traçadas n'um mappa geographico para a separar das outras nações; não é um povo que vive e passa sem deitar de si um brado que se escute além da pátria; não é um throno, um governo, um patriciado, uma plebe, uma sociedade que esconde o seu presente entre um passado sem memorias, e um futuro sem aspirações. Por isso a Polónia desappareceu, e as suas ressurreições são apenas a rápida tragedia do patriotismo, que lucta desesperado contra a fatalidade. Por isso a Hungria não pôde desatar os vínculos onde a estreita a monarchia austríaca. Por isso a Sicilia não pôde jamais consolidar a sua nacionalidade independente.
As nações são os órgãos d'este grande todo, que se chama humanidade. Ora não ha órgãos supérfluos, estéreis, a que não deva corresponder uma funcção. Quando a sua missão expira ou a sua inutilidade é manifesta, a Providencia sentenceia, encarnando na espada do conquistador. É assim que Veneza, a senhora dos mares, agonisa e desapparece, quando os modernos descobrimentos tornam mesquinha e obsoleta a actividade maritima e mercantil da republica do Adriático. É assim que a aventurosa Carthago, ultima representante da civilização phenicia, empallidece e cae prostrada finalmente aos pés do povo vencedor, que é chamado a dilatar por mais remotas regiões a conquista e a civiiisação. É assim que as nações americanas caem, deixando apenas a memoria dos seus nomes e o reflexo dos seus feitos. É assim que n'este portentoso turbilhão, que se chama a historia da humanidade, a cidade de hoje será a necropoles do dia seguinte, o monumento de hoje ministrará as pedras ao monumento de amanhã, a columna gentílica será o pedestal da estatua de S. Pedro, e a pyramide de Cheops dará sombra ao mameluko e ao fellah.
Está ainda por escrever a verdadeira historia nacional: ao mesmo tempo historia do povo portuguez, e capitulo eloquente e memorável da historia da civilisação. É a historia do génio portuguez, a historia da sua collaboração na grande obra do progresso pelas suas arrojadas navegações e pelas suas conquistas, se bem que ephemeras, não menos providencialmente destinadas. O que faz dos Lusíadas um poema venerado no mundo, não é a belleza dos episódios ou colorido das descripções. Não é a figura tremenda de Adamastor, ou o vulto sympathico de Ignez; não é a amenidade paradisíaca da ilha dos Amores, nem a ficção risonha das sereias, que impellem docemente as naus portuguezas na solidão do Oceano. É que o assumpto é de toda a christandade, porque é a inauguração solemne da moderna civilisação. Vasco da Gama não tem pátria. É da Europa toda, e de todo o mundo civilisado. Os homens que iniciam uma grande transformação na humanidade tiveram o berço n'uma pátria limitada, mas a posteridade agradecida inscreve-os solemnemente como proceres no livro de oiro da republica universal. Vasco da Gama pertence á mesma pátria que tem por cidadãos a Colombo, a Newton, a Galileu, a Raphael, a Watt, a Galvani, a todos estes espiritos illuminados, que Deus despede de si a espaços, como raios de luz sobrenatural, para doirar as trevas da humanidade.
É no cyclo das nossas glorias marítimas, que resplandecem os nomes mais illustres da historia nacional. É desde estes tempos, que os nomes portuguezes começaram a ser pronunciados com assombro pela Europa. Desde os primeiros navegadores que se engolfaram no Oceano em demanda das mais remotas costas africanas até aos derradeiros mareantes, que já na decadência do nosso esplendor e poderio, ainda legam um nome portuguez a uma ilha ou a um promontorio, novamente descoberto, que de appellidos illustrissimos, que de glorias venerandas, que de varões verdadeiramente beneméritos não só da pátria, que é a pátria estreito circulo para engastar uma grande gloria, mas beneméritos da civilisação e da humanidade! D'este numero é illustrissimo entre os mais illustres o nome de Fernão de Magalhães, que hoje representa a nossa estampa.

As empresas arrojadas e aventurosas de Christovão Colombo e Vasco da Gama foram o signal e o principio de uma serie ininterrupta de navegações e descobrimentos, que ainda hoje, depois de quasi quatro séculos, se proseguem com fervor no empenho de implantar a civilisação em toda a terra, e de completar a geographia.
Desde que, pelos annos 1000 da era christan, o scandinavo Leif Erik, descobriu a America do Norte, consequência dos primeiros estabelecimentos norueguezes na Islândia e na Groenlândia até á moderna circumnavegação da fragata austríaca Novara, desde os imperfeitos conhecimentos geographicos consignados no Opus majus de Roger Bacon e no Imago mundi do cardeal francez Pedro d'Ailly ou d'Alliaco, até ás exactas correctas informações que, ácerca da terra, nos offerece a moderna geographia, decorre uma successão de empresas, de aventuras e de investigações laboriosas, que é a mais alta e a mais illustre representação dos progressos da humanidade.

NOTA: Leif, filho de Erik o vermelho, aportou á America Septentrional, e reconheceu as suas praias desde o extremo norte até 41º e meio de latitude boreal. Beijarn Herjulfssen havia já descoberto as costas americanas, sem ter tomado terra no novo continente em 986.
Naddod avistou as costas da Islândia por meado do século X e Ingolf estabeleceu n'esta ilha o primeiro estabelecimento scandinavo em 875.
A Groenlândia recebeu uma colónia islandesa em 983. Till de nordislka landerna maste afven raknas Islandera, som bebyggdes af Norman. De besoekte, pasina sjoeresor, Gronland och ett land, som de kaelladde Winland, numera Norra Amerika. De hade salunda langt fóre Columbi tid upptackt Amerika. Mellin, Sveriges Historia, Stockholm. 1839.

In Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira, Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.

Cortesia de Imprensa Portuguesa/JDACT

terça-feira, 19 de março de 2013

Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela. Latino Coelho. «… quaes caminhos vão dar mais brevemente ás regiões da especiaria, quaes potentados ha lá muito ao longe pela Africa e pela Ásia a subjugar pelo terror das armas e pelo prestigio do nome portuguez»

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NOTA: De acordo com o original

«A formação de estados independentes e soberanos no meio da Europa christan, é o facto vulgar da edade média. Da dissolução do império dos Césares nasce a divisão das regiões, outrora submetidas ás águias imperiaes. O regímen feudal é a consequência necessária da falta de um principio commum, que sirva de liame aos povos romano-barbaros. Os estados compõem-se e decompõem-se, agglomeram-se e disseminam-se sucessivamente no meio d'esta fermentação moral, em que os povos modernos procuram as condições do seu equilíbrio politico. Mais tarde, porém, as nações reconstituem-se; os grandes estados absorvem as nacionalidades ephemeras, e os elementos políticos da Europa moderna agrupam-se em redor dos grandes centros da civilisação.
A França estende o nivel da unidade nacional sobre todos os estados independentes que haviam por muitos séculos retalhado o seu vasto território. Poucos estados succedem na Itália á anarchia das republicas e á multiplicidade dos principados. A Navarra e o Aragão prestam os seus brazões para servirem de novas peças ao escudo da monarchia hespanhola. Das pequenas nacionalidades, erigidas na meia edade, só Portugal consegue atravessar incólume as épocas de transformação social e de reconstituição politica da Europa, intacto quasi inteiramente o território em que arvorou uma vez a sua bandeira. Por que singular privilegio resiste a nossa terra ao movimento geral de assimilação? Porque é ella mais feliz do que o Aragão, do que a Navarra, nas Hespanhas? Do que a Borgonha, a Lorena, e a Bretanha na antiga região das Gallias? Do que a Escócia na Gran-Bretanha? Do que a Bohemia e a Hungria na Allemanha? Do que a Noruega na península scandinava?
É predilecção do acaso? Ou é decreto da Providencia? É favor da fortuna, ou necessidade da civilisação? Imagine-se já consolidada aparentemente a monarchia do mestre de Aviz; illustradas as armas portuguezas pela victoria de Aljubarrota; constituída a unidade nacional pela communidade dos sentimentos, dos esforços, dos sacrifícios, em que a final se traduz esta generosa abstracção que se chama amor da pátria. Supponhamos agora que o rei cavalleiro adormece sobre os loiros das suas victorias e que a sua irrequieta actividade lhe não aponta para Ceuta, para Tanger, como novos prémios de suas novas excursões. Dêmos que sae malaventurada a primeira expedição ás terras africanas, e que os filhos do rei popular, em vez de scismarem a verdadeira gloria, amollecem os animos e arrefecem os brios na vida effeminada dos saraus e dos festins. Não ha loiros a ceifar nas praças de Marrocos, não ha delicias intellectuaes para o infante Henrique nas asperezas do promontório sacro; não ha cavalleiros que troquem os ócios da casa do infante pelas aventurosas navegações n'esse temeroso Oceano, n'esse mare tenebrosum que a phantasia meticulosa dos antigos povoava de tremendas tempestades e de pavorosas apparições.
Concedamos que Portugal, sem cobiçar glorias peregrinas em empresas nunca d'antes nem sonhadas, se aninha no seu recanto do occidente, a deliciar-se como que no seu lar domestico, bem aquecido por um sol vivificador, bem assombrado de suas deliciosas primaveras, bem refrigerado pelas suas auras ameníssimas, bem acobertado pelo seu esplendido ceo meridional Supponhamos que as suas barcas apenas se aventuram á navegação costeira, ou quando muito até aos portos estrangeiros, que lhe demoram mais á mão. Dêmos que se contente com a sua honesta mediania, penduradas na choça ou no castello as armas ainda retinctas no sangue castelhano, com a mão no arado patriarchal, mal cuidando na sua discreta ignorância, quaes terras vão discorrendo ao longo do Atlântico, quaes caminhos vão dar mais brevemente ás regiões da especiaria, quaes potentados ha lá muito ao longe pela Africa e pela Ásia a subjugar pelo terror das armas e pelo prestigio do nome portuguez». In Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira, Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.

Cortesia de Imprensa Portuguesa/JDACT

Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela. Latino Coelho. «Portugal é hoje nação, não porque conquistou aos árabes á ponta da sua lança estes territórios extremos da peninsula, não porque, por um acto de feliz insurreição, quebrou as cadeias que o prendiam…»

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NOTA: De acordo com o original

[…]
«O desafogo de recordar os que amámos tem o doloroso prazer, que sentimos, ao arrancar um espinho.

Se tivesses baqueado aos echos da batalha,
vendo egual decisão nos bravos da fileira!...
Se, ao beijares o pó, tivesses, por mortalha,
a bandeira da pátria, a que já foi bandeira!...

Se aqui, onde nasceste, e onde rebenta a flor
nos impervios da serra, á luz do sol radiante,
podesses contemplar um iris salvador,
ao voltar para o ceu a pupilla expirante!...

Feliz, feliz de ti! Felizes nós, também!
Que unir, no extremo alento, a bocca aos lábios pulchros
da mãe que nos creou, da pátria, a santa mãe.
É ver o sol da aurora á beira dos sepulcros!

Eu, tão chegado á morte, eterna companheira!
Espero que amanhã, no mundo sideral,
aquelles que adorei, durante a vida inteira,
os tenha em seu regaço essa amante ideal!

[…]
Sobre a serra de Cintra e os valles nemorosos
batia a prumo o sol! Ao ires a enterrar,
foram dignos de ti os kyries magestosos
dos echos da montanha e das costas do mar!

Que importa que depois, nas ruas da cidade,
te não prestasse a turba as pompas triumphaes,
ephemero brazão da popularidade?!...
Para ser popular eras grande de mais!

Eu não te choro a ti, mas choro os que deixaste!
Que noite no teu lar, onde tu refulgias!...
Assim Deus te poupasse, á hora em que acabaste,
A sinistra visão de tantas agonias!
Poema de Bulhão Pato

Fernão de Magalhães
Está ainda por escrever uma grande e gloriosissima historia nacional. Não é apenas a averiguação minuciosa de todas as particularidades da fundação da monarchia. Não é a amplificação rhetorica dos recontros que no occidente da península tiveram nossos maiores com os sectários do propheta; não é a narrativa das intrigas cortezans, nem a lenda das guerras civis, nem mesmo a critica das instituições municipaes, que tenderam a lançar no solo portuguez as primeiras sementes da liberdade e a assegurar as imunidades populares contra a opressão dos nobres ou contra as invasões da monarchia absoluta. Estas investigações, posto que úteis e necessárias, resumem a historia domestica de um povo, ainda segregado em grande parte da civilisação geral, ainda não activo e grande collaborador nos progressos da humanidade. São a monografia de um orgão, a analyse de um tecido que pertence a um organismo consideravel cujas funcções e cuja evolução não pode ser comprehendida em quanto o historiador, erguendo-se a mais altas regiões, não estudar as relações da sua patria com a civilisação christan, com a civilisação universal.
A historia de Portugal começa com as primeiras expedições e conquistas africanas. É desde então que esta orla Occidental da península hispânica começa a inscrever o seu nome entre as nações cultas. Até então é uma província de Hespanha, que por uma longa elaboração se emancipa da coroa castelhana. D'ali por diante, é uma nação varonil, que justifica por actos de arrojada iniciativa a sua própria autonomia. Até ao principio das conquistas é uma familia quasi esquecida e ignorada pela Europa no seu ultimo occidente. D'ali por diante a familia, a tribu, eil-a tornada em povo e em nação. A provinda, que sacode o jugo da mãe-patria, é já império, é já povo, é já efficaz e fecunda participação nos grandes acontecimentos que transformam a face do mundo e inauguram solemnemente a moderna civilisação.
Portugal é hoje nação, não porque conquistou aos árabes á ponta da sua lança estes territórios extremos da peninsula, não porque, por um acto de feliz insurreição, quebrou as cadeias que o prendiam á velha monarchia de Pelayo, não porque soube em guerras diuturnas firmar o pavilhão das quinas contra as invasões de seus visinhos, mas porque fez d'esta bandeira gloriosa, não somente a insígnia de uma pátria, mas o emblema de uma nova civilização». In Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira, Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.

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Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela. Latino Coelho. «... na variadissima multiplicidade dos seus trabalhos literários e politicos não esquecia então a escola de que fora sempre ornamento, quer na qualidade de discípulo, quer na de professor»

Latino Coelho, por António Carneiro
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NOTA: De acordo com o original

«É aqui occasião de dizer que nenhum outro publicista poderia advogar melhor do que Senibaldo de Mas a idéa da união ibérica. O caracter honestíssimo d'este cavalheiro, a sua elevada intelligencia, a variadíssima instrucção de que é dotado, o seu affecto aos portuguezes, e a delicadeza de trato e bondade de alma com que realça essas qualidades, já de si muito superiores, contribuíram de certo poderosamente para que as idéas explicadas na memoria ibérica do diplomata hespanhol, achassem no animo de alguns dos nossos escriptores acolhimento favorável. Os successos posteriores transformaram em impossibilidade pratica a hypothese da união, e deixaram á mercê dos visionários politicos o plano de Senibaldo. Algum conspirador obscuro ficaria ainda a sonhar no grande império peninsular, mas os homens de vulto nos dois reinos deixaram para logo a arena em que a discussão de uma contingência politica podia parecer tentativa criminosa e desleal.
Latino na variadissima multiplicidade dos seus trabalhos literários e politicos não esquecia então a escola de que fora sempre ornamento, quer na qualidade de discípulo, quer na de professor. Ao passo que se entregava com  incansavel actividade ás lides de que demos noticia, e que se applicava com egual tenacidade ao estudo das principaes línguas da Europa, escrevia um Curso de Elementos da Historia Natural para uso dos alumnos da Polytechnica, e preparava de accordo com outros professores a Encyclopedia das Escolas d'Instrucção Primaria, que mais tarde foi publicada, com approvação do cardeal Patriarcha na parte concernente á doutrina christã. Na Revista Peninsular, que temos deante de nós, foi Latino Coelho um dos mais notáveis colaboradores, escrevendo diíferentes artigos no idioma hespanhol, no qual se mostrou tão copioso e aprimorado como na lingua portugueza.
E não só n’aquelle jornal mas em muitos outros publicou escriptos excellentes, cujo exame e noticia pediria mui larga escriptura. Nas eleições supplementares de 1854 foi eleito deputado por Lisboa, e em 28 de Março de 1855 estreou-se como orador, ganhando n'este primeiro ensaio a consideração e sympathia da Camara, e os applausos do publico. Os jornaes de então compararam o joven orador a Cicero e a Mirabeau, e apenas lhe notaram uma certa propensão epigrammatica, que todavia, sendo dirigida com sobriedade discreta, pode ser na tribuna um dote precioso. Em 1856 e em 1860 voltou á Camara dos Deputados a representar os povos da Ilha do Fayal, que acudiram benévolos a reparar o ostracismo com que os eleitores do reino tinham correspondido ás brilhantes qualidades parlamentares do illustre professor. O povo tem seus quartos de hora de ingratidão, e não é sempre á superioridade do talento, e á grandeza e elevação das idéas que elle presta voluntariamente o testemunho publica do seu voto.
O governo chamou em 1852 Latino Coelho para a Commissão Central de Pesos e Medidas; em 1854 nomeou-o Membro do Conselho Dramático, e em 1859 deu-lhe no Conselho Superior de Instrucção Publica o logar que só desarrasoada inveja, mais honrosa que a própria nomeação, lhe poderia ter negado. A Academia Real das Sciencias já tinha a esse tempo aberto as suas portas a Latino Coelho, que de sócio effectivo passou em breve a ocupar o cargo de secretario, exercido em todos os corpos scientificos e literários da Europa por homens qualificadíssimos. O Diário de Lisboa foi também entregue á direcção d'este mancebo». In Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira, Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.

Cortesia de Imprensa Portuguesa/JDACT

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela. Latino Coelho. «Olhavam então para Portugal com virtuosa inveja do governo reformador e livre, que n'este reino ia melhorando as instituições, aperfeiçoando a legislação, e dissipando os ódios e rancores políticos»


Latino Coelho, por António Carneiro
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NOTA: De acordo com o original

Biografia
«[…] O publico é que não estava satisfeito. Habituado a ver manifestar na imprensa periódica as primicias de todos os engenhos, admirava-se de não encontrar ali o nome do sr. Latino Coelho; invejava a fortuna da Escola Polytechnica, e queria que dos fructos de tão vasto engenho lhe fosse destinada uma porção. Amiudavam os convites, mas a modéstia quasi sempre inseparável do verdadeiro saber, ou a deliberação formal de consagrar-se inteiramente aos seus deveres de professor, arredou por muito tempo da arena jornalística o joven tenente de engenheiros.
O biographo da Revista Peninsular, que, por nos parecer bem informado, seguimos n'estes apontamentos, attribue a um padecimento nervoso, a uma melancholia entranhada e invencível a resolução tomada pelo sr. Latino Coelho de entrar na redacção do Farol, bem que já a esse tempo a Época tivesse tido a fortuna de publicar algumas delicadas poesias do distincto professor. Foi em princípios de 1849 que o sr. Latino Coelho encetou a carreira de escriptor litterario e politico, e desde os primeiros ensaios mostrou logo com quanta rapidez e facilidade a devia percorrer, deixando após si muitos que de longa data o precediam. O Farol em que, se a memoria nos não engana, collaborava o sr. António de Serpa, foi n'essa quadra um dos periódicos mais apreciados e lidos em Lisboa e no reino.
Era então a Revolução de Setembro o primeiro jornal politico de Lisboa não só pela qualidade dos homens que n'elle escreviam, como pelo renome que lhe dera a lucta constante e corajosa, em que andara por largo espaço contra o poder. O sr. Latino Coelho estreou-se n'esse jornal como escriptor politico, e a collecção da Revolução de Setembro encerra matéria para muitos volumes, devida á penna do nobre professor. Ali nos coube amiudadas vezes ser testemunha da incomparável facilidade com que o sr. Latino Coelho enriquecia as columnas d'aquelle diário, e observar a especialissima aptidão com que sabia adornar das mais finas galas de estylo e de linguagem os assumptos mais triviais ou mais áridos.
Não nos é possivel seguir o joven escriptor n'esse trabalho incessante, nem julgamos necessário recordar aos leitores cada um dos artigos de que os sabemos lembrados. Basta dizer que foi geral o espanto ao ver que o mancebo que consagrara os seus primeiros annos ás sciencias exactas, e que n'ellas ganhara uma após outra todas as coroas, parecia ter passado esse tempo no estudo reflectido dos nossos melhores clássicos, a colher-lhes todas as belezas, e a accomodal-as elegantemente ás exigências e uso do nosso tempo.
Redactor principal da Emancipação, collaborador da Revolução de Setembro, redactor da Semana em 1851, o sr. Latino Coelho escreveu também na Revista Popular e no Panorama, onde publicou a biographia de Almeida Garrett. No Portugal Artistico deixou paginas de incontestável importância. Ha entre ellas uma consagrada a Cintra, que é um documento eterno da riqueza e formosura da nossa linguagem portugueza, e uma das mais bellas producções do sr. Latino Coelho.

No anno de 1852 publicou o sr. Senibaldo de Mas, antigo embaixador de Hespanha na China, uma memoria em favor da união pacifica de Hespanha e Portugal, e na edição portugueza coube ao sr. Latino Coelho escrever o prologo, que foi lido com ávida curiosidade. A idéa de fazer dos dois reinos da Península uma grande nação, devia agradar a um espirito elevado, como o do sr. Latino Coelho, nas circunstancias politicas de então, a todos os respeitos diferentes das actuaes.
Andavam os hespanhoes mal avindos com o seu próprio governo; prevendo uma grande revolução em Hespanha, estudavam com affinco os meios de a dirigirem de modo que para o futuro ficassem suficientemente asseguradas as instituições liberaes. Parecia-lhes a eles que a dynastia hespanhola odiava a liberdade, e que antes quereria succumbir na lucta do que ceder ás reclamações do partido liberal. Olhavam então para Portugal com virtuosa inveja do governo reformador e livre, que n'este reino ia melhorando as instituições, aperfeiçoando a legislação, e dissipando os ódios e rancores políticos. D'ahi brotou de novo nos animos hespanhoes a idéa ibérica, que por impossível que fosse na pratica, era sempre uma homenagem ao nosso bom juizo e ao progresso incontestável da nossa civilisação.


A revolução de Hespanha em 1854 reconciliou os hespanhoes com a dynastia. A rainha D. Isabel attendeu aos votos dos seus subditos com benevolencia maternal e os liberaes que tinham derramado tanto sangue para fazer triumphar a causa d'aquella princeza, esqueceram desde logo a idéa de uma mudança que não encontrava em Portugal apoio algum nas pessoas, de cujo consentimento essencialmente dependia». In Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira, Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.

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