NOTA: De acordo com o original
«A formação de estados independentes
e soberanos no meio da Europa christan, é o facto vulgar da edade média. Da dissolução
do império dos Césares nasce a divisão das regiões, outrora submetidas ás águias
imperiaes. O regímen feudal é a consequência necessária da falta de um principio
commum, que sirva de liame aos povos romano-barbaros. Os estados compõem-se e decompõem-se,
agglomeram-se e disseminam-se sucessivamente no meio d'esta fermentação moral, em
que os povos modernos procuram as condições do seu equilíbrio politico. Mais tarde,
porém, as nações reconstituem-se; os grandes estados absorvem as nacionalidades
ephemeras, e os elementos políticos da Europa moderna agrupam-se em redor dos
grandes centros da civilisação.
A França estende o nivel
da unidade nacional sobre todos os estados independentes que haviam por muitos séculos
retalhado o seu vasto território. Poucos estados succedem na Itália á anarchia das
republicas e á multiplicidade dos principados. A Navarra e o Aragão prestam os seus
brazões para servirem de novas peças ao escudo da monarchia hespanhola. Das pequenas
nacionalidades, erigidas na meia edade, só Portugal consegue atravessar incólume
as épocas de transformação social e de reconstituição politica da Europa, intacto
quasi inteiramente o território em que arvorou uma vez a sua bandeira. Por que
singular privilegio resiste a nossa terra ao movimento geral de assimilação? Porque
é ella mais feliz do que o Aragão, do que a Navarra, nas Hespanhas? Do que a Borgonha,
a Lorena, e a Bretanha na antiga região das Gallias? Do que a Escócia na
Gran-Bretanha? Do que a Bohemia e a Hungria na Allemanha? Do que a Noruega na
península scandinava?
É predilecção do acaso? Ou
é decreto da Providencia? É favor da fortuna, ou necessidade da civilisação? Imagine-se
já consolidada aparentemente a monarchia do mestre de Aviz; illustradas as armas
portuguezas pela victoria de Aljubarrota; constituída a unidade nacional pela communidade
dos sentimentos, dos esforços, dos sacrifícios, em que a final se traduz esta generosa
abstracção que se chama amor da pátria. Supponhamos agora que o rei cavalleiro adormece
sobre os loiros das suas victorias e que a sua irrequieta actividade lhe não aponta
para Ceuta, para Tanger, como novos prémios de suas novas excursões. Dêmos que sae
malaventurada a primeira expedição ás terras africanas, e que os filhos do rei popular,
em vez de scismarem a verdadeira gloria, amollecem os animos e arrefecem os brios
na vida effeminada dos saraus e dos festins. Não ha loiros a ceifar nas praças de
Marrocos, não ha delicias intellectuaes para o infante Henrique nas asperezas do
promontório sacro; não ha cavalleiros que troquem os ócios da casa do infante
pelas aventurosas navegações n'esse temeroso Oceano, n'esse mare tenebrosum
que a phantasia meticulosa dos antigos povoava de tremendas tempestades e de
pavorosas apparições.
Concedamos que Portugal,
sem cobiçar glorias peregrinas em empresas nunca d'antes nem sonhadas, se aninha
no seu recanto do occidente, a deliciar-se como que no seu lar domestico, bem aquecido
por um sol vivificador, bem assombrado de suas deliciosas primaveras, bem refrigerado
pelas suas auras ameníssimas, bem acobertado pelo seu esplendido ceo meridional
Supponhamos que as suas barcas apenas se aventuram á navegação costeira, ou quando
muito até aos portos estrangeiros, que lhe demoram mais á mão. Dêmos que se contente
com a sua honesta mediania, penduradas na choça ou no castello as armas ainda retinctas
no sangue castelhano, com a mão no arado patriarchal, mal cuidando na sua discreta
ignorância, quaes terras vão discorrendo ao longo do Atlântico, quaes caminhos vão
dar mais brevemente ás regiões da especiaria, quaes potentados ha lá muito ao longe
pela Africa e pela Ásia a subjugar pelo terror das armas e pelo prestigio do nome
portuguez». In Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos.
Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos &
Vieira, Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.
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