Contra o Silêncio que Cala o Mal
«O sentido crítico de um trabalho considera-se
correctamente perspectivado quando assenta no aprofundamento psicológico e
procede a uma reflexão alargada para lançar os alicerces de uma reforma o mais
séria possível. Por isso nesta obra não se usam arredondamentos, e denunciam-se
sem meios termos realidades que, no Vaticano, estão sob os olhos de todos.
Quando se enfeitam os discursos, ofuscam-se as ideias. Poderá parecer uma
análise impiedosa, mas deseja ser um bisturi purificador aplicado a uma chaga
profunda e purulenta.
E uma repreensão que se exprime em formas
pitorescas e severas que açoitam como uma chicotada no dorso do corcel. Trata-se
de um livro escrito em equipa, com as virtudes e os defeitos de uma obra a várias
vozes; daí deriva uma repetição dos conceitos mais significativos, de difícil
convergência redaccional em razão de pontos de vista e perspectivas diferentes.
Todavia repetita iuvant, especialmente os menos conhecedores do mundo
que se quer interpretar. Num tempo como o nosso em que de certezas se morre ao mesmo
tempo que morrem as certezas, a verdade não muda e permanece idêntica quer seja
ensinada por um grande orador quer seja ensinada por um qualquer charlatão: o
eloquente não a enriquece e o gago não a empobrece. S. Pedro adverte a Igreja:
- Chegou o momento do início do juízo a partir da Casa de Deus, que começa em nós.
Diz o Vaticano II:
- A Igreja, que ao contrário do Cristo inocente, reúne no seu seio pecadores, santa e ao mesmo tempo necessitada de purificação, nunca abandona a penitência e a sua própria renovação... A Igreja peregrina é chamada por Cristo a esta contínua reforma da qual, enquanto instituição humana e terrena, tem necessidade permanente.
Chegou o tempo de a Igreja, primeiro que aos
homens, pedir perdão a Cristo por tantas infidelidades e traições dos seus
ministros, em especial daqueles que foram constituídos em autoridade no vértice
da hierarquia eclesiástica. Não está em discussão a instituição divina da
Igreja, mas sim o seu invólucro, o vaticanismo, que corre o risco de
conferir mais relevo à moldura do que ao quadro, fazendo-se essência
sacramental da Igreja. É necessário romper o casulo em que a realidade histórica
e a verdade cristocêntrica permanecem cativas como uma crisálida asfixiada.
Reformar a Igreja de 2000 significa mudar o seu governo burocrático que já não
a congrega. Para Clemenceau, governar é tornar tranquilos os bons cidadãos e
tornar intranquilos os desonestos; o contrário é a inversão da ordem natural.
A Igreja herdou do seu divino fundador a missão e a
capacidade de se inserir nas situações temporais do presente, assimilando sem
se corromper e fermentando sem desvirtuar. O Concílio Vaticano II deu um abanão
à Igreja que se pôs a trabalhar com entusiasmo. Para muitos, no entanto, o Concílio
é como um veículo de distribuição porta a porta: sobe ou desce segundo as próprias
conveniências. Impaciente, um jornalista desabafou: À luz do espírito do Concílio, como é
possível que, nos mesmos documentos, se tenha dito tudo e o contrário de tudo,
cedendo a todos?
É como se a Igreja de hoje tivesse sido assolada
por uma espécie de explosão nuclear mais forte que a da força atómica encerrada
no bunker
de cimento de Chernobyl. O organismo é estruturalmente o mesmo de
sempre mas, fisiológica e dinamicamente, submete-se à mentalidade dominante de
um mundo que lhe não pertence. Sopramos a trompa do aríete à espera da era
messiânica do Jubileu de 2000, aniversário bimilenar de Cristo, fundador da
Igreja. O cristianismo de 2000 coloca a humanidade em peregrinação à procura da
sua própria salvação». In I Millenari, Via col vento in Vaticano,
Kaos Edizioni, 1999, O Vaticano contra Cristo, tradução de José A. Neto,
Religiões, Casa das Letras, 2005, ISBN 972-46-1170-1.
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