sábado, 30 de março de 2013

Um País Encantado. Maria Coriel. Luís Miguel Rocha. «Acorramos, então, ao cortejo sem demoras. Importa que lhe demos um pouco do nosso tempo. Sigamos o nosso contador de muitas estórias cheias de sombra e de luz, afinal, como a própria vida»

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O importante não é aquilo que fazem de nós, mas que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós. In Jean.Paul Sartre

Jogos de Sombra e de Luz
«Este romance detém-se em Portugal na década de 30, tendo como pano de fundo a mão sombria do Estado Novo. Dá-nos conta dos amores desavindos entre a Monarquia moribunda e a República a tentar encontrar-se, representadas por duas famílias privilegiadas: a do conde Cosme e a do coronel Silveira, respectivamente. Os ódios surdos, os desencantos, as paixões, perdas e cumplicidades assumem relevo neste enredo em que o trágico e o absurdo se entrelaçam. Assistimos aos seus jogos de e pelo poder num país sonâmbulo, cristalizado no tempo, deslumbrado com o estrangeiro, pobre em ideias e recursos.
Da atracção que a Europa exerce sobre nós e do país suspenso na História, já Fernando Pessoa dava conta duma carta que escreveu ao conde de Kerserling, na qual revela a existência não de um só Portugal, mas de três, sendo o último aquele que para aqui nos interessa. Diz-nos o poeta:
  • O terceiro Portugal que encontrareis à superfície dos Portugueses visíveis, é aquele que, depois da curta duração espanhola, e durante todo o curso inanimado da dinastia Bragança, da sua decomposição liberal, e da República, formou esta parte do espírito português moderno que está em contacto com a aparência do mundo. Esta terceira alma portuguesa é apenas um reflexo mal compreendido do estrangeiro que passa, por uma hipnose, não do homem, mas só do seu caminhar.
Apesar do tempo histórico em que a carta foi escrita e da época da nossa estória, sabemos que estas palavras não perderam a actualidade. Se mudássemos os cenários, as roupas, os gestos, as falas, as personagens ficariam tão próximas, que as reconheceríamos facilmente na vida social e política do nosso tempo, se a esse esforço nos déssemos. Ainda hoje poderíamos seguir com o olhar outras estradas de pó e de silêncio, outros buracos adormecidos, outras casas faustosas em bens e pobres em afectos e outros que nem casa têm. E o mesmo espírito de adormecimento pelas causas que são nossas e o mesmo deslumbramento pelo que lá fora acontece ainda nos percorre, sem que vislumbremos o despertar. Ansiamos pelo progresso também, noção vaga que não contempla decerto o acordar da alma.
Como meninos em busca de aventura viajamos por um país sonolento, desigual, movido pela aparência das convenções. A teia do poder está oculta, mas sente-se. O Estado, na figura máxima de A. O. Salazar, serve o medo e a ignorância em doses individuais, à medida do interesse do momento, com a cumplicidade atenta da Igreja. A tudo assistimos guiados pelo olhar cinematográfico do narrador que, lúcido e com um humor límpido, leva-nos a viajar. Com ele saltamos muros, atrevemo-nos a espreitar janelas, entramos em capelas como peregrinos de verão, em casas que servem muitas causas, ouvimos conversas de alcova, sempre num passo dinâmico e vivo, correndo como crianças inquietas à procura de novidade. Cúmplices no olhar indiscreto e impiedoso, partimos sempre em busca de mais episódios, seguindo o nosso contador de estórias, soberbo no comentário, hilariante no pormenor. O sabor fresco da sua voz, porque amargura não tem, convida-nos a prosseguir na constante mudança de cenários, sem cansaços nem delongas.
Neste tempo de magras alegrias, chega Mariana Silveira ao mundo em noite aguarenta. Rola na história como uma conta de vidro transparente e luminosa e atravessa-a com uma pureza que não deixa ninguém indiferente. Ela é personagem principal e vem cumprir um destino singular embora tenha modestíssimo desempenho. Dela apenas assistimos ao nascimento, ao baptismo e à infância discreta. A presença serena e o olhar determinado desta menina despertam emoções antigas e impõem gestos outrora guardados a algumas personagens. Acorramos, então, ao cortejo sem demoras. Importa que lhe demos um pouco do nosso tempo. Sigamos o nosso contador de muitas estórias cheias de sombra e de luz, afinal, como a própria vida». In Maria Coriel, As Filhas da Lua. In Luís Miguel Rocha, Um País Encantado, Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN 972-731-176-8.

Cortesia de Planeta Editora/JDACT