«Quando
os autores dos séculos XVII e XVIII faziam história política, relatavam pouco
mais do que os factos da guerra externa e da diplomacia internacional: era isso
o que demonstrava o exercício de um poder único capaz de defender a nação, no
sentido tradicional, quase étnico, não no sentido moderno, ou seja, de proteger
os súbditos de ameaças externas. O mais, o exercício do poder interno, aquele
que assegurava a manutenção da paz e da justiça, não tinha história: era a luta quotidiana contra a degradação
do tempo; uma luta pelo restabelecimento contínuo de um equilíbrio
originário e mítico constantemente ameaçado. No século XIX, a narrativa
histórica enriqueceu-se com o relato de outros conflitos: guerras civis, lutas com o clero, mudanças de protagonistas.
A estrutura não mudou. A componente dramática tornou-se mais variada, procurou,
muitas vezes, as explicações psicológicas, teve em conta aquilo que aos olhos
dos diversos autores lhes pareciam ser os costumes da época, mas raramente
conseguiu fazer da própria narrativa uma forma de explicação cabal dos
acontecimentos. Daí a incapacidade de o historicismo e a história factológica
resistirem aos ataques dos fundadores da escola dos Annales.
A
recuperação da história narrativa a que desde há uns anos se assiste tornou-a
mais credível porque faz ressaltar, através da própria narrativa, como é que os
acontecimentos se conjugaram de modo a produzirem um certo resultado. A
narrativa tornou-se, assim, o fundamento do processo explicativo. Superou as
limitações evidenciadas pelas explicações quase mecânicas que se baseavam na
reconstituição das estruturas sociais, económicas e mentais e nas respectivas
leis de funcionamento. Permitiu considerar a intervenção de muitos outros
factores, desde o tempo atmosférico até ao puro acaso, da acção voluntária
consciente ou inconsciente à interferência de factos puramente fortuitos. Tudo
isto sem deixar de ter em consideração os condicionamentos que as estruturas
sociais e económicas impõem à conjugação dos factos e dos fenómenos.
A
história narrativa, porém, só pode atingir um verdadeiro grau de persuasão quando
as informações são suficientemente abundantes, como acontece na história
contemporânea e, porventura, em alguns momentos privilegiados da história
moderna. Na história medieval e antiga, a escassez de dados e o seu grau de
insegurança são tais que só por aproximação se pode falar numa história
narrativa capaz de explicar o passado. Uma grande parte dos elementos de que se
dispõe para explicar os acontecimentos, ao nível da acção individual, baseia-se
em conjecturas. O historiador depara constantemente com lacunas na sequência
das informações, o que o impede não só de proceder a uma reconstituição
completa dos factos, mas até, por vezes, de elaborar uma narrativa simplesmente
aceitável.
Estas
circunstâncias condicionam o próprio género narrativo. Não é possível criar um
discurso sequencial simples e directo que acompanhe de perto os factos: o relato tem de ser constantemente
interrompido para demonstrar os raciocínios em que se baseiam as conjecturas
com que se vão preenchendo as lacunas da informação fiável. É preciso
seleccionar a cada passo os documentos credíveis, traduzir as informações para
as tornar compreensíveis por um leitor actual, recorrer a observações
indirectas, como a evolução do vocabulário ou os indícios das intenções do
autor de um dado texto, explicar as deduções feitas para o leitor poder
controlar o seu rigor, enfim, proceder a complexas demonstrações sem as quais o
leitor não pode, nem deve, aceitar facilmente a reconstituição proposta. Por
isso, a voz do narrador tem de se fazer ouvir constantemente. A história
torna-se, assim, muitas vezes, uma narrativa do percurso seguido pelo investigador
para descobrir, não o que aconteceu, mas o que poderia ter acontecido. Ou um
diálogo com o leitor para tentar persuadi-lo de que a frágil reconstituição proposta
não é arbitrária. A validade do discurso histórico mede-se então pelo grau de
verosimilhança, tendo em conta a acumulação de conhecimentos produzidos pelos
especialistas acerca de uma dada época. A narrativa torna-se uma viagem guiada
a um mundo possível.
Estas
limitações são especialmente válidas para aspectos da história política que
interessavam pouco aos homens da Idade Média ou da Antiguidade, e mais ainda
para os que, por razões de mentalidade, era preciso ocultar. Um deles é
justamente a imagem de estabilidade do poder que os cronistas têm sempre de
transmitir, e o valor atribuído à inalterabilidade dos princípios de governo. Daí
que a intriga política interna esteja excluída das crónicas pelo menos até ao
século XV. As poucas obras medievais que apresentam alguns dados sobre
ela distorcem visivelmente os acontecimentos para apresentar imagens baseadas
na apreciação moral das personagens em função do ideal do governante capaz de
manter ou de restabelecer uma ordem intemporal não só justa, mas também
sagrada. É o que acontece, por exemplo, na Historia
Compostellana, onde não falta a intriga, mas apenas para
demonstrar que o arcebispo Gelmírez estava do lado dos bons e todos os seus
adversários do lado dos iníquos.
Daí as limitações da história política
portuguesa da primeira dinastia. Até há pouco tempo, Herculano permaneceu como o autor insubstituível para a história
dos reinados dos quatro primeiros reis portugueses, apesar do carácter
romântico, anticlerical e liberal, e
portanto parcial, das suas interpretações. A sua narrativa baseava-se na
concepção de uma monarquia paternalista, militar e rude, mas que exercia os
seus poderes de maneira análoga ao que foi o Estado moderno, isto é, como órgão superior de um poder público
com funções legislativas, judiciais, fiscais e executivas de carácter impessoal.
Para ele, a história de Portugal dividia-se em reinados, cada um dos quais se
concebia como a biografia de uma personagem. Tal como faziam, implícita ou explicitamente,
os seus predecessores, cada reinado terminava com a apreciação positiva ou
negativa dos actos dos governantes». In José Mattoso, O Triunfo da Monarquia
Portuguesa, 1258-1264, Ensaio de História Política, Revista Análise Social, vol. XXXV, 2001.
Cortesia
de R. Análise Social/JDACT