terça-feira, 12 de março de 2013

O Triunfo da Monarquia Portuguesa. 1258-1264. Ensaio de História Política. José Mattoso. «Herculano. A sua narrativa baseava-se na concepção de uma monarquia paternalista, militar e rude, mas que exercia os seus poderes de maneira análoga ao que foi o Estado moderno»


Cortesia de wikipedia e jdact

«Quando os autores dos séculos XVII e XVIII faziam história política, relatavam pouco mais do que os factos da guerra externa e da diplomacia internacional: era isso o que demonstrava o exercício de um poder único capaz de defender a nação, no sentido tradicional, quase étnico, não no sentido moderno, ou seja, de proteger os súbditos de ameaças externas. O mais, o exercício do poder interno, aquele que assegurava a manutenção da paz e da justiça, não tinha história: era a luta quotidiana contra a degradação do tempo; uma luta pelo restabelecimento contínuo de um equilíbrio originário e mítico constantemente ameaçado. No século XIX, a narrativa histórica enriqueceu-se com o relato de outros conflitos: guerras civis, lutas com o clero, mudanças de protagonistas. A estrutura não mudou. A componente dramática tornou-se mais variada, procurou, muitas vezes, as explicações psicológicas, teve em conta aquilo que aos olhos dos diversos autores lhes pareciam ser os costumes da época, mas raramente conseguiu fazer da própria narrativa uma forma de explicação cabal dos acontecimentos. Daí a incapacidade de o historicismo e a história factológica resistirem aos ataques dos fundadores da escola dos Annales.
A recuperação da história narrativa a que desde há uns anos se assiste tornou-a mais credível porque faz ressaltar, através da própria narrativa, como é que os acontecimentos se conjugaram de modo a produzirem um certo resultado. A narrativa tornou-se, assim, o fundamento do processo explicativo. Superou as limitações evidenciadas pelas explicações quase mecânicas que se baseavam na reconstituição das estruturas sociais, económicas e mentais e nas respectivas leis de funcionamento. Permitiu considerar a intervenção de muitos outros factores, desde o tempo atmosférico até ao puro acaso, da acção voluntária consciente ou inconsciente à interferência de factos puramente fortuitos. Tudo isto sem deixar de ter em consideração os condicionamentos que as estruturas sociais e económicas impõem à conjugação dos factos e dos fenómenos.
A história narrativa, porém, só pode atingir um verdadeiro grau de persuasão quando as informações são suficientemente abundantes, como acontece na história contemporânea e, porventura, em alguns momentos privilegiados da história moderna. Na história medieval e antiga, a escassez de dados e o seu grau de insegurança são tais que só por aproximação se pode falar numa história narrativa capaz de explicar o passado. Uma grande parte dos elementos de que se dispõe para explicar os acontecimentos, ao nível da acção individual, baseia-se em conjecturas. O historiador depara constantemente com lacunas na sequência das informações, o que o impede não só de proceder a uma reconstituição completa dos factos, mas até, por vezes, de elaborar uma narrativa simplesmente aceitável.
Estas circunstâncias condicionam o próprio género narrativo. Não é possível criar um discurso sequencial simples e directo que acompanhe de perto os factos: o relato tem de ser constantemente interrompido para demonstrar os raciocínios em que se baseiam as conjecturas com que se vão preenchendo as lacunas da informação fiável. É preciso seleccionar a cada passo os documentos credíveis, traduzir as informações para as tornar compreensíveis por um leitor actual, recorrer a observações indirectas, como a evolução do vocabulário ou os indícios das intenções do autor de um dado texto, explicar as deduções feitas para o leitor poder controlar o seu rigor, enfim, proceder a complexas demonstrações sem as quais o leitor não pode, nem deve, aceitar facilmente a reconstituição proposta. Por isso, a voz do narrador tem de se fazer ouvir constantemente. A história torna-se, assim, muitas vezes, uma narrativa do percurso seguido pelo investigador para descobrir, não o que aconteceu, mas o que poderia ter acontecido. Ou um diálogo com o leitor para tentar persuadi-lo de que a frágil reconstituição proposta não é arbitrária. A validade do discurso histórico mede-se então pelo grau de verosimilhança, tendo em conta a acumulação de conhecimentos produzidos pelos especialistas acerca de uma dada época. A narrativa torna-se uma viagem guiada a um mundo possível.
Estas limitações são especialmente válidas para aspectos da história política que interessavam pouco aos homens da Idade Média ou da Antiguidade, e mais ainda para os que, por razões de mentalidade, era preciso ocultar. Um deles é justamente a imagem de estabilidade do poder que os cronistas têm sempre de transmitir, e o valor atribuído à inalterabilidade dos princípios de governo. Daí que a intriga política interna esteja excluída das crónicas pelo menos até ao século XV. As poucas obras medievais que apresentam alguns dados sobre ela distorcem visivelmente os acontecimentos para apresentar imagens baseadas na apreciação moral das personagens em função do ideal do governante capaz de manter ou de restabelecer uma ordem intemporal não só justa, mas também sagrada. É o que acontece, por exemplo, na Historia Compostellana, onde não falta a intriga, mas apenas para demonstrar que o arcebispo Gelmírez estava do lado dos bons e todos os seus adversários do lado dos iníquos.
Daí as limitações da história política portuguesa da primeira dinastia. Até há pouco tempo, Herculano permaneceu como o autor insubstituível para a história dos reinados dos quatro primeiros reis portugueses, apesar do carácter romântico, anticlerical e liberal, e portanto parcial, das suas interpretações. A sua narrativa baseava-se na concepção de uma monarquia paternalista, militar e rude, mas que exercia os seus poderes de maneira análoga ao que foi o Estado moderno, isto é, como órgão superior de um poder público com funções legislativas, judiciais, fiscais e executivas de carácter impessoal. Para ele, a história de Portugal dividia-se em reinados, cada um dos quais se concebia como a biografia de uma personagem. Tal como faziam, implícita ou explicitamente, os seus predecessores, cada reinado terminava com a apreciação positiva ou negativa dos actos dos governantes». In José Mattoso, O Triunfo da Monarquia Portuguesa, 1258-1264, Ensaio de História Política, Revista Análise Social, vol. XXXV, 2001.

Cortesia de R. Análise Social/JDACT