«Todavia,
a História de Portugal de
Herculano permaneceu como referência imprescindível até ao momento em que, já
depois da década de 70, se percebeu que a narrativa histórica da primeira
dinastia se desenrola fundamentalmente em torno da concorrência do poder régio
com os poderes senhoriais e que os principais passos da intriga histórica têm
configurações e desfechos diferentes conforme o espaço em que se dão: no Norte, no Centro ou no Sul, em terras
de regime senhorial ou de regime concelhio, na cidade ou no campo.
Creio ter dado alguma contribuição para isso. Só há pouco tempo se definiram
sociologicamente os protagonistas da acção e o quadro espacial em que agiram e
se estabeleceram algumas barreiras cronológicas que permitiram definir a
sucessão das gerações e as ligações familiares. Também neste ponto creio ter
trazido algumas novidades à historiografia portuguesa. Só há pouco tempo,
enfim, se definiram espacial e temporalmente correntes religiosas que serviram
para enquadrarem a associação dos protagonistas e orientaram alguns dos seus
comportamentos. Foi também uma matéria em que creio ter acentuado a importância
deste género de factos e proposto interpretações anteriormente ignoradas.
Muitas destas contribuições têm sido, felizmente, enriquecidas por novas
achegas que vão, a pouco e pouco, iluminando a história medieval da primeira
dinastia, sobretudo em matérias relacionadas com a história da nobreza.
Esperam-se para breve novidades importantes no capítulo da história do clero.
Todavia,
por mais descobertas que se façam, a história narrativa dos primeiros duzentos
e cinquenta anos da nacionalidade permanecerá sempre como uma matéria
enormemente conjectural ao nível dos pormenores. Não quero dizer que não mereça
a pena tentá-la. É o que vou aqui fazer para um momento que creio extremamente
importante para o conhecimento do processo de centralização monárquica e mesmo
para o que poderíamos chamar a edificação do Estado moderno. Situo
este momento decisivo muito precisamente entre
os anos de 1258 e 1264. Todos os meus leitores perceberão que a primeira
destas datas se refere ao levantamento das inquirições
de Afonso III. Mas a segunda é praticamente desconhecida. É a data da última das decisões
verdadeiramente decisivas tomadas pelo mesmo rei em virtude de uma prática
política que traduzia uma nova organização do Estado.
De
certo modo, já anteriormente, ao estudar a
crise de 1245 e a guerra civil
de 1319-1324, sobretudo no segundo caso, tinha tentado fazer história
política narrativa. Quanto ao período de 1258
a 1264, o grau de conjectura é bastante maior, como se pode desde logo
suspeitar depois de consultar as histórias de Portugal escritas até ao
princípio da década de 90, onde em vão se procura qualquer referência
significativa a este momento preciso. Chamei já a atenção para ele na História de Portugal do C.
L. (1993), mas, dadas as características da obra, não apresentei as
indispensáveis referências documentais e tive de reduzir a explicação aos dados
essenciais. Quero aproveitar o convite de Maria de Fátima Bonifácio para
colaborar neste número da Análise Social,
dedicado à história política, para fornecer as bases críticas da minha interpretação,
para desenvolver a exposição já feita, para corrigir algumas das minhas
anteriores interpretações ou informações e como exercício de género nas
condições em que é possível fazê-lo para este período. Como se verá, a minha
narrativa está muito longe de ser uma espécie de relato verídico dos acontecimentos
feito por um deus que sabe
o que se passa ao mesmo tempo em vários lugares e em várias instâncias de
decisão, que conhece todos os protagonistas principais, que adivinha até os
seus pensamentos e as suas intenções e que sabe o que irá acontecer a seguir.
O Trono
O
princípio do governo de Afonso III, depois de a morte de
seu irmão Sancho o ter transformado, de curador e defensor do reino, em rei
legítimo não só aos olhos do clero, mas também de todos os portugueses, foi
ocupado, assim parece, em firmar o seu poder e em estabelecer a ordem no reino.
Para
consolidar a sua autoridade pode ter-se feito coroar em Coimbra, mera
conjectura, cidade onde, decerto, passou, a caminho de Guimarães. Chegou aqui
pouco antes de 16 de Março de 1248.
Tendo em conta que a resistência à sua
nomeação como curador e defensor do reino se concentrou no Norte senhorial,
pode presumir-se que tenha empregue os cinco meses que passou em Entre
Douro e Minho, entre as duas vilas régias de Guimarães e Ponte de Lima, a captar o apoio dos nobres da
região, a exigir-lhes a homenagem vassálica ou o reconhecimento público da sua autoridade
e a tomar medidas destinadas a impor a ordem numa região profundamente
abalada pela anarquia dos anos anteriores. Para isso contava com o apoio dos bispos, a
quem devia a intervenção junto da cúria papal e a nomeação política feita por
Inocêncio IV. Durante este período deve ter reforçado o papel que na
cúria desempenhavam os nobres que o tinham auxiliado durante a guerra civil de 1245-1248
e que já o acompanhavam havia dois anos. Tais eram, entre outros, o nobre
castelhano Afonso Teles de Albuquerque, seu primo, por ser filho de D. Teresa
Sanches, bastarda de Sancho I, e o irmão deste, João Afonso Telo a
quem nomeou alferes-mor. Também atribuiu cargos curiais aos fiéis vassalos que
o acompanhavam desde Bolonha, como Rui Gomes de Briteiros, que fez
mordomo-mor, e Estêvão Anes, que nomeou chanceler.
Tudo
isto era de prever. Qualquer um teria feito o mesmo em iguais circunstâncias: escolher como auxiliares do governo
aqueles que já tinham dado provas de fidelidade. A decisão em que
revelou, desde logo, um talento político mais subtil foi ter
procurado também captar o apoio dos nobres que o tinham combatido de armas na
mão e que haviam acompanhado Sancho II até à morte. Procurou atrair
pelo menos alguns deles à sua corte. Foram os casos de Gil Martins de Riba
de Vizela, de Egas Lourenço da Cunha, de Estêvão Peres Espinhel,
de Pêro Anes de Portocarreiro. Ao primeiro deles viria até a oferecer
pouco depois a dignidade de
mordomo-mor, o mais importante cargo de cúria, tornado disponível
depois da morte de Rui Gomes de Briteiros, que, provavelmente, se deu em
1249. Foi, decerto, para consolidar
a sua benevolência que o rei criou na corte sua filha D. Constança Gil e lhe
ofereceu, em Fevereiro de 1258, uma
herdade no termo de Penela, talvez como dote do seu casamento com João Gil de Soverosa.
Esta inesperada generosidade, ou melhor, decerto, habilidade, trouxe-lhe, sem
dúvida, o apoio da grande maioria da nobreza tradicional, o que era essencial
para desarmar a oposição e consolidar a segurança do trono.
NOTA:
Afonso III fez muito poucas doações, excepto aos vassalos mais íntimos, como o chanceler
Estêvão Anes, o futuro mordomo-mor João Peres de Aboim, João Soares Coelho e poucos
mais. Mesmo a estes, a sua protecção revelou-se à custa das prováveis pressões
que exerceu sobre vários concelhos para estes lhes cederem parte das suas
terras. A generosidade do rei para com as suas barregãs foi mais evidente, como
veremos mais adiante. A captação dos nobres fez-se, portanto, atraindo-os à
corte, e não à custa dos reguengos. Afonso III raramente alienou o domínio
régio.
In José
Mattoso, O Triunfo da Monarquia Portuguesa, 1258-1264, Ensaio de História Política,
Revista Análise Social, vol. XXXV,
2001.
Cortesia
de R. Análise Social/JDACT