terça-feira, 12 de março de 2013

O Regente Pedro. Príncipe Europeu. Mário José Domingues. «Foram os infantes Fernando e Pedro os que sofreram morte mais injusta e cruel, embora cada um por motivos diferentes, e ambos em consequência de erros cometidos por um irmão»

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«Se é certo que as crónicas de Fernão Lopes constituem documento precioso e imprescindível na reconstituição de uma das mais agitadas e fecundas épocas de toda a história lusitana, não menos certo é que nem tudo nesses belos escritos se deve aceitar como artigo de fé. Impõe-se-lhe uma meticulosa revisão, que já alguns historiógrafos modernos iniciaram e que pode ocupar ainda muitos anos de aturado labor de investigação e análise. E o que se verifica em relação a Fernão Lopes repete-se em referência a todos os outros cronistas dos mais sumptuosos séculos da vida nacional. Registaram muitas e valiosas verdades, mas, em contrapartida, por simpatia pessoal ou por momentânea conveniência política, deturparam inúmeros factos e até caluniaram ou apoucaram homens, que, em boa justiça, largamente mereciam mais alto relevo.
Um dos grandes, dos verdadeiramente gloriosos vultos portugueses, durante séculos vítima da má vontade dos cronistas peitados pelos seus inimigos, que só não apagaram totalmente a sua presença na história, porque ele vinculou profundamente a seu lugar, foi o infante Pedro, filho de João I e de D. Filipa de Lencastre. Uma cilada traiçoeira o arredou deste mudo, numa idade em que tantos serviços ainda poderia prestar à nação; e uma espécie de conjura, a de cronistas, adulterou, minimizou e por vezes esqueceu os actos mais brilhantes da vida deste príncipe, que tão alto ergueu na Europa o prestígio de Portugal e tão equitativa, progressiva e humanamente governou o reino, durante a sua curta, mas fecunda regência, que ninguém agradeceu. Começa-se agora a fazer-lhe justiça. Embora por vezes tardiamente, a história nunca deixa de repor os homens e os sucessos no seu devido lugar. E para o regente Pedro, irmão do rei Duarte I, a sua hora de glória já chegou.

A Ínclita Geração
Pode afirmar-se que nenhum dos filhos que resultaram do enlace matrimonial de João I com D. Filipa de Lencastre, saiu de inferior qualidade. Numa prole muito numerosa, raramente se aproveitam todos os rebentos. Há quase sempre um, pelo menos, que destoa do conjunto. O povo chama-lhes a ovelha tinhosa do rebanho. Mas os régios cônjuges que fundaram a segunda dinastia lusitana, a mais sumptuosa da história nacional e porventura a mais importante e progressiva da Europa de então, não tiveram a lamentar senão os filhes que morreram em tenra idade, porque os outros, os que chegaram a adultos, distinguiram-se por predicados fora do comum e alguns deles vincularam o seu lugar neste mundo por forma indelével. O epíteto de Ínclita Geração, com que a história qualificou os filhos de D. Filipa, tão britânica no aspecto e na índole, e do mestre de Avis, tão português em seu sangue meio plebeu, ajusta-se-lhes de uma maneira perfeita.
O matrimónio de João I e de D. Filipa de Lencastre celebrou-se no Porto, em 1387. Cerca de dois anos mais tarde, em 1390, nasceu o primeiro filho, Afonso, que não durou mais de duas escassas primaveras. Quando este faleceu, já entretanto, em 1391, tinha nascido Duarte, que viria a ser rei. Em 1392, surgiu Pedro, que tão honroso e vasto lugar ocuparia na política portuguesa e tão espontânea simpatia havia de conquistar nas cortes da Europa por onde iria passar. Em 1394, nasceu Henrique, para, com suas insistentes iniciativas marítimas, mudar a face do mundo. Uma menina, vinda à luz em 1395, faleceu de pouca idade. Malogrou-se em seguida outro parto; mas, em 1397, surgiu a infanta Isabel, que, em 1430, na cidade de Bruges, casaria com Filipe, o Bom, duque de Borgonha, e, falhando por um triz vir a ser rainha de França, daria ao mundo o célebre Carlos, o Temerário, que tanto se orgulhava de ser neto de João I de Portugal.
Não se deteve D. Filipa no seu afã de aumentar a família real, pois em 1400 deu à luz o infante João, moço esclarecido e recto, que faleceu ainda jovem. Por fim, em 1402, de novo a metódica e cumpridora inglesa, já quarentona, num derradeiro esforço para bem desempenhar a sua missão de esposa e rainha, enriqueceu a nação com o infante Fernando, que viria a falecer cativo em Fez, garantindo ao reino, com o seu martírio, a posse de Ceuta.
Foram os infantes Fernando e Pedro os que sofreram morte mais injusta e cruel, embora cada um por motivos diferentes, e ambos em consequência de erros cometidos por um irmão:
  • Se o cativeiro e morte dramática do jovem infante Fernando tiveram sua origem na leviandade com que o infante Henrique intentou a conquista de Tânger;
  • a desgraça, e morte do infante Pedro resultaram das ambições e da inveja de Afonso, bastardo de João I, que não podendo conformar-se com sua bastardia, ambicionava o trono, do qual o pai, esquecido de que também era bastardo, sempre o afastara discreta, mas firmemente.
O mestre de Avis, antes de conhecer D. Filipa, mesmo muito antes de sonhar que viria a ser rei de Portugal, nas suas andanças pelo Alentejo, tomara-se de amores por uma jovem plebeia de olhos negros, filha de Mendo da Guada, de Veiros. Desses amores nascera Afonso, em 1377. A mãe foi metida pelo mestre no convento de Santos, em Lisboa. Vergado ao desgosto da mancha que caíra sobre a honra da família, o pai da jovem resolvera deixar crescer a barba, pelo que lhe veio o apodo de Barbadão. Nutria pelo sedutor um estranho ódio. Conta-se que João, ao tempo ainda mestre de Avis, encontrando-o uma vez no seu caminho, lhe perguntou:
  • Não havereis já de acabar com essa melancolia? Sim, quando acabar convosco, respondeu de pronto o Barbadão.
E arremeteu sobre ele com tanto ímpeto, que tê-lo-ia prostrado, se um, galão providencial do cavalo o não desviasse do golpe. Pois, este neto do Barbadão, que teria uns dez anos de idade quando seu pai se casou com D. Filipa, viria a ser duque de Bragança e, depois do monarca, o fidalgo mais rico do reino. Todas estas riquezas e honrarias, porém, lhe pareciam coisa pouca. Só o trono, para ele, ou para os seus descendentes, satisfaria a sua imensa sede de grandeza. Mas essa sede só viria a mitigar-se no Outro Mundo, após a queda dos Filipes, na Restauração, mais de dois séculos decorridos sobre as torpes intrigas e as traiçoeiras conjuras da história desse período. A primeira vítima inocente da luta dos Braganças pela posse do trono foi precisamente o infante Pedro, o mais nobre e mais leal príncipe europeu da primeira metade do século XV». In Mário Domingues, O Regente Pedro, Príncipe Europeu, Empresa Nacional de Publicidade, Colecção de História de Portugal, nº 7, Lisboa, 1964.

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