«Se é certo que as crónicas de Fernão Lopes
constituem documento precioso e imprescindível na reconstituição de uma das
mais agitadas e fecundas épocas de toda a história lusitana, não menos certo é
que nem tudo nesses belos escritos se deve aceitar como artigo de fé. Impõe-se-lhe uma meticulosa revisão, que já
alguns historiógrafos modernos iniciaram e que pode ocupar ainda muitos anos de
aturado labor de investigação e análise. E o que se verifica em relação a
Fernão Lopes repete-se em referência a todos os outros cronistas dos mais
sumptuosos séculos da vida nacional. Registaram muitas e valiosas verdades,
mas, em contrapartida, por simpatia pessoal ou por momentânea conveniência
política, deturparam inúmeros factos e até caluniaram ou apoucaram homens, que,
em boa justiça, largamente mereciam mais alto relevo.
Um dos grandes, dos verdadeiramente gloriosos
vultos portugueses, durante séculos vítima da má vontade dos cronistas peitados
pelos seus inimigos, que só não apagaram totalmente a sua presença na história,
porque ele vinculou profundamente a seu lugar, foi o infante Pedro, filho de
João I e de D. Filipa de Lencastre. Uma cilada traiçoeira o arredou deste mudo,
numa idade em que tantos serviços ainda poderia prestar à nação; e uma espécie
de conjura, a de cronistas, adulterou, minimizou e por vezes esqueceu os actos
mais brilhantes da vida deste príncipe, que tão alto ergueu na Europa o
prestígio de Portugal e tão equitativa, progressiva e humanamente governou o
reino, durante a sua curta, mas fecunda regência, que ninguém agradeceu.
Começa-se agora a fazer-lhe justiça. Embora por vezes tardiamente, a história nunca
deixa de repor os homens e os sucessos no seu devido lugar. E para o regente
Pedro, irmão do rei Duarte I, a sua hora de glória já chegou.
A Ínclita Geração
Pode afirmar-se que nenhum dos filhos que resultaram
do enlace matrimonial de João I com D. Filipa de Lencastre, saiu de inferior
qualidade. Numa prole muito numerosa, raramente se aproveitam todos os rebentos.
Há quase sempre um, pelo menos, que destoa do conjunto. O povo chama-lhes a
ovelha tinhosa do rebanho. Mas
os régios cônjuges que fundaram a segunda dinastia lusitana, a mais sumptuosa
da história nacional e porventura a mais importante e progressiva da Europa de
então, não tiveram a lamentar senão os filhes que morreram em tenra idade,
porque os outros, os que chegaram a adultos, distinguiram-se por predicados fora
do comum e alguns deles vincularam o seu lugar neste mundo por forma indelével.
O epíteto de Ínclita Geração, com que a história qualificou os filhos de D.
Filipa, tão britânica no aspecto e na índole, e do mestre de Avis, tão
português em seu sangue meio plebeu, ajusta-se-lhes de uma maneira perfeita.
O matrimónio de João I e de D. Filipa de Lencastre
celebrou-se no Porto, em 1387. Cerca
de dois anos mais tarde, em 1390,
nasceu o primeiro filho, Afonso, que não durou mais de duas escassas
primaveras. Quando este faleceu, já entretanto, em 1391, tinha nascido Duarte, que viria a ser rei. Em 1392, surgiu Pedro, que tão
honroso e vasto lugar ocuparia na política portuguesa e tão espontânea simpatia
havia de conquistar nas cortes da Europa por onde iria passar. Em 1394, nasceu Henrique, para, com
suas insistentes iniciativas marítimas, mudar a face do mundo. Uma menina,
vinda à luz em 1395, faleceu de
pouca idade. Malogrou-se em seguida outro parto; mas, em 1397, surgiu a infanta Isabel, que, em 1430, na cidade de Bruges, casaria com Filipe, o Bom, duque de Borgonha, e, falhando por um triz vir a ser rainha
de França, daria ao mundo o célebre Carlos, o
Temerário, que tanto se orgulhava de ser neto de João I de Portugal.
Não se deteve D. Filipa no seu afã de aumentar a família
real, pois em 1400 deu à luz o
infante João, moço esclarecido e recto, que faleceu ainda jovem. Por
fim, em 1402, de novo a metódica e
cumpridora inglesa, já quarentona, num derradeiro esforço para bem desempenhar
a sua missão de esposa e rainha, enriqueceu a nação com o infante Fernando,
que viria a falecer cativo em Fez, garantindo ao reino, com o seu martírio, a
posse de Ceuta.
Foram os infantes Fernando e Pedro os que sofreram morte
mais injusta e cruel, embora cada um por motivos diferentes, e ambos em
consequência de erros cometidos por um irmão:
- Se o cativeiro e morte dramática do jovem infante Fernando tiveram sua origem na leviandade com que o infante Henrique intentou a conquista de Tânger;
- a desgraça, e morte do infante Pedro resultaram das ambições e da inveja de Afonso, bastardo de João I, que não podendo conformar-se com sua bastardia, ambicionava o trono, do qual o pai, esquecido de que também era bastardo, sempre o afastara discreta, mas firmemente.
O mestre de Avis, antes de conhecer D. Filipa, mesmo
muito antes de sonhar que viria a ser rei de Portugal, nas suas andanças pelo Alentejo,
tomara-se de amores por uma jovem plebeia de olhos negros, filha de Mendo da
Guada, de Veiros. Desses
amores nascera Afonso, em 1377.
A mãe foi metida pelo mestre no convento de Santos, em Lisboa. Vergado ao
desgosto da mancha que caíra sobre a honra da família, o pai da jovem resolvera
deixar crescer a barba, pelo que lhe veio o apodo de Barbadão. Nutria pelo sedutor
um estranho ódio. Conta-se que João,
ao tempo ainda mestre de Avis,
encontrando-o uma vez no seu caminho, lhe perguntou:
- Não havereis já de acabar com essa melancolia? Sim, quando acabar convosco, respondeu de pronto o Barbadão.
E arremeteu sobre ele com tanto ímpeto, que
tê-lo-ia prostrado, se um, galão providencial do cavalo o não desviasse do
golpe. Pois, este neto do Barbadão, que teria uns dez anos de
idade quando seu pai se casou com D. Filipa, viria a ser duque de Bragança e, depois
do monarca, o fidalgo mais rico do reino. Todas estas riquezas e honrarias,
porém, lhe pareciam coisa pouca. Só o trono, para ele, ou para os seus
descendentes, satisfaria a sua imensa sede de grandeza. Mas essa sede só viria
a mitigar-se no Outro Mundo, após a
queda dos Filipes, na Restauração,
mais de dois séculos decorridos sobre as torpes intrigas e as traiçoeiras
conjuras da história desse período. A primeira vítima inocente da luta dos Braganças
pela posse do trono foi precisamente o infante Pedro, o mais nobre e mais leal
príncipe europeu da primeira metade do século XV». In Mário Domingues, O Regente
Pedro, Príncipe Europeu, Empresa Nacional de Publicidade, Colecção de História
de Portugal, nº 7, Lisboa, 1964.
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