(Continuação)
«Contra tais ambições quando vierem ferir os direitos dos cidadãos
úteis, das verdadeiras maiorias, é que o Portuguez
há-de sempre combater. Os interesses dessas maiorias que trabalham, produzem e
calam são complexos quanto às cousas e quanto às pessoas. Abrangem o capital
produtivo em todas as suas manifestações e o trabalho em todas as suas formas: dizem
respeito ao proprietário na significação mais extensa da palavra, e ao
salariado, ao proletário em todas as variadas gradações da sua existência
económica. Tais interesses parecem às vezes contrariar-se, mas são muitas vezes
evidentemente homogéneos: os progressos lentos da verdadeira ciência política que
se estriba na experiência e na observação dos fenómenos sociais há-de
gradualmente ir delindo essas antinomias aparentes. Entretanto cumpre sustentar
e defende contra as demasias do poder e contra as teorias muitas vezes erradas das
escolas e dos partidos aqueles interesses que indubitavelmente são comuns às
duas grandes classes dos produtores contribuintes. É o que o Portuguez tentará fazer. Se algum
a vez errar será por defeito de inteligência; não de boa e sincera vontade.
Aceitando todas as verdades económicas incontestáveis adquiridas para a
ciência do governo, o Portuguez
dará sempre a primazia à mais importante de todas elas, a prudência na sua
aplicação. Essas verdades achadas por uma poderosa generalização de fenómenos
longa e atentamente observados não são mais do que a síntese deles. Quando os
factos a que temos de aplicá-los são, pelas circunstâncias peculiares do país,
discordes daqueles em que a doutrina se fundou, a aplicação absoluta,
irreflectida dessa doutrina será sempre absurda e fatal. Dous dos princípios
mais indubitáveis da ciência económica são o da liberdade de indústria e
comércio, e o da simplificação dos tributos até os reduzir a um imposto único,
directo, justo pela proporcionalidade. Dentro talvez de um ou dous séculos,
eles reinarão na Europa sem contradição. Aplicai porém estes dous princípios a
Portugal onde todas as indústrias, as que devem morrer como as que devem
vigorar e crescer, vacilam ainda na fraqueza infantil, a Portugal, que ignora a
estatística das suas forças económicas, onde os métodos agrícolas estão atrasados,
onde a propriedade territorial tem condições de existência peculiares; onde, enfim,
se dão mil circunstâncias excepcionais; aplicai-lhe sem discernimento esses
princípios absolutos, e tereis obtido um resultado imenso mas terrível, a
dissolução da sociedade.
É por isso que o Portuguez
nem sempre se há-de extasiar diante de certas providências que se tenham
adoptado ou hajam de adoptar em relação a diversas questões da fazenda púb1ica».
In
António José Saraiva, Herculano Desconhecido. 1851-1853, Edições SEN, Porto,
1953.
continua
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