Monogamia
- Olha! Não sei sequer pregar um prego.
Por diligência só de acompanhar-te,
que mais não sei cerzir outras tarefas
para te ajudar às lidas da cozinha,
aí me sento ao canto, sem barulho,
para não ficar nenhum de nós sozinho.
Por mais de amar-te no que posso e faço
com versos amestrados mas antigos,
que hei-de fazer nas lidas da cozinha?
Vou muita vez ao lixo na Praceta,
com ironia, para fazer de conta
ser tão vulgar como qualquer vizinho.
A minha ajuda é quase serviçal,
porque eu não sei sequer pregar um prego.
Versos que escreva saem sempre mínimos.
Em casa os faço, aqui os vou escondendo,
tão clandestinos fora como dentro,
vergonha de não serem conhecidos.
Por ser concreto sem palavras lúdicas,
meu gosto é mais de gestos que dizeres,
aqui sentado ao canto na cozinha
e sem barulho, para não estares sozinha.
Mal apareço em folhas dos Jornais,
e é disto que não passo ao ser doméstico.
Ter um escritório é ficar lá dentro,
ninguém do seu escritório faz cozinha,
poeta ao mesmo tempo destes versos
que na Praceta vai também ao lixo.
- Eu que não sei sequer pregar
um prego.
Ainda assim, lá vou compondo os versos
de alguma solução que é sofrimento.
Não é silêncio não fazer barulho.
Para não ficar nenhum de nós sozinho,
aqui me sento a ver-te na cozinha,
até que vá ao lixo na Praceta.
Escrever é vício, amar é condição.
Não é com versos que se prega um prego...
... nem é com versos que o amor se faz.
Fico sentado ao canto na cozinha.
Quando amanhã vierem cá jantar
os nossos netos mais os nossos genros
e a nossa nora, rapariga atenta,
os filhos sabem que eu não prego um prego.
- Louvado seja o canto da
cozinha.
Vou lá, para dentro, aqui não faço nada.
Todos cá vêm, vai haver jantar
Que hei-de dizer senão ficar sentado?
- Sentindo quanto fazes na
cozinha
e à espera de ir ao lixo na Praceta,
à espera da alegria do jantar.
Sabes que mais? Eu vou mas é deitar-me.
Mulher de amor, não vais ficar sozinha.
Não estar sozinho é dar-se em liberdade.
Do resto, o que é que fica? - A solidão?
Quem sabe a solidão? - A liberdade?
Poeta antigo sem pregar um prego,
tenho os limites dos meus versos métricos.
Dramas - se os há, não são da poesia.
Eu tenho os meus em ti já esclarecidos.
Uma cozinha pode ser um mito,
- até, para quem souber pregar
um prego.
Pode escrever-se sem se ter escritório,
contabilistas é que o não dispensam,
qualquer poeta vive sem escritório
- mais fácil de entender que uma
cozinha,
mais acessível do que ir ao lixo.
Mas eu não me dispenso aqui sentado,
suspenso, sem barulho, em companhia,
para não ficar nenhum de nós sozinho.
Nem o silêncio é não fazer barulho.
Há solidão também na companhia
de nem sequer saber pregar um prego,
embora seja ilustre fazer versos.
Por diligência, estes são convictos.
Aqui os deixo sem fazer de conta,
por fantasia em vida dos poetas...
(...) de alguma vez sentados na cozinha,
de alguma vez ao lixo na Praceta.
Carlos Garcia de Castro, in ‘Gloria Victis‘,
Portalegre, Abril de 2000
In Carlos Garcia de Castro, Gloria Victis. Não-Poemas, Edições
Sempre-em-Pé, colecção Universos/Poesia, 2007, ISBN 978-972-8870-14-0.
Cortesia de Sempre-em-Pé/JDACT