I Fragmento
«Houve um uivo travar de ferros de comboio na fita magnética gravada de
desastre. Prossegue Pedro: o corpo membro a membro imaginas o que é isto de
sentir o coração o cérebro o sangue deslizando impetuoso do coração ao cérebro
ao sexo aos pés e vice-versa dos pés ao coração do sexo ao cérebro ao coração sentir
os dedos bem amarrados às coisas e ao sangue como senti há pouco dentro do
autocarro porque nós viajamos geralmente sem nos compenetrarmos de que ali
vamos dentro dum espaço fechado rolando por um mundo imenso ilimitado e é como
se fôssemos joguetes duma força qualquer desconhecida que está para além de nós
nos ultrapassa e nós não vemos. Será do peso das frases proferidas que assim se
torna esmagadora a música? Sonâmbula nocturna. Atentos como estão à sua solidão
não reparam os três na solidão dos outros. A despeito de tudo tornaram-se três
ilhas só subaquaticamente contactadas. Não reparas no suspeito silêncio de
Regina que hierática assiste ao relato de Pedro nem apreende Pedro até que
ponto vem a música ilustrar as penosas palavras de que não foi capaz. A fita fixa
sensivelmente a meio outro grito diverso que em breve arrasta novas cantantes
vozes mais iradas. Mas Pedro persiste: já viste um possesso? Interrompe Regina:
são quase nove horas se quisermos sair temos de decidir. Entretanto notara que
o casaco de Pedro tinha secado sobre o irradiador. Respondeste por fim: não não
vi acho ridículo: pois eu vi juntam-se à porta de casa dum tipo conhecido que é
meio místico e um deles eu vi isto juro-vos que vi um deles ergueu-se do solo
como tendo perdido a gravidade e isso aconteceu diversas vezes até que foi
exorcismado ficou livre ficou ele: podemos ir ao cinema aqui ao Roma vai um filme
porreiro. É Regina quem não suporta mais esta conversa e tenta sabotá-la. Perguntas:
qual? Rocco e Seus Irmãos. Ainda Pedro: tenho de justificar não já a vida que
se não justifica mas a morte e ao contrário do Alberto Soares que quer justificar a vida em face da
inverosimilhança da morte eu procuro antes justificar a morte em face
da inverosimilhança da vida: então vamos ao cinema ou preferem ficar praí a
conversar discutindo problemas que aliás não existem: vamos lá ao sonoro mas
chove a potes: é um pulo: temos de ir a butes. Levantam-se quase simultâneos. O
último talvez tenha sido Pedro que enfiou o casaco um tanto distraído atacou os
sapatos molhados embora mais que quentes. Ela vestiu a impermeável azulada
cinzenta. Só tu saíste assim em corpinhobenfeito, sem arrumar os copos as garrafas
os cálices os pires o tabuleiro as fitas do gravador o próprio gravador. Um chamou
o elevador. Outro acendeu aluz da escada. Desceram.
a calçada alagada rebrilhava. Nas sargetas a água represara. Ultrapassaram um
bêbado a cair de borracho aos bordos em ziguezague que num palco seria da zona
um prá zona cinco da zona cinco prá zona três da zona três prá zona seis da
direita prá esquerda e assim por diante. Subiam a Avenida dos Estados Unidos
quando um carro travou ruidoso vermelho ao lado do passeio. Nuno convida: aonde
vão? Ele passava por lá e se quisessem deixava-os. Calha calhava. Deram a curva
na rotunda de pedal a fundo. Estavam diante do cinema num segundo. Saltaram correndo
prá entrada apinhada da gente não só que ia entrar mas que da chuva se abrigava
ou que apenas olhava as pessoas que entravam ou ainda que olhava as pessoas que
olhavam as pessoas que entravam. Enquanto Pedro se metia na fila da bilheteira
tu reparavas num homem fantomático de fato-macaco que à chuva parecia tentar
secar poças de água com uma velha mangueira de borracha. Meteu a mangueira na
boca chupou a água veio. Mas não foi tão eficiente ou ágil que a água cheia de
terra negra lhe não entrasse na boca em brusca golfada. Depois de na sala te
sentares ficaste com a imagem daquela redução à ínfima condição de debaixo da
chuva executar um miserável trabalho num esgar escorrendo pelos lábios olhos
rasos de água de lodo misturados. Antes de o filme começar ainda teu pensamento
esteve um momento ausente fixado neste quadro». In Almeida Faria, Rumor Branco,
Editorial Caminho, 4ª edição, Lisboa, 1992, ISBN 972-21-0746-1.
Cortesia de Caminho/JDACT