Carreira dos Tolos. Modistas.
«Depois que o Sábio, e judicioso
Erasmo, pôs a última demão no Elogio da
Loucura, um herói dos nossos tempos, que o leu, ficou tão namorado deste
Elogio, que não se achando com
cabedal bastante para fazer outro tanto, comprou um barco, aplicou-se à Manobra,
e Náutica, e partiu a descobrir terra, onde pudesse comodamente alojar em paz a
nunca extinta geração dos Tolos. Depois de uma longa viagem, tendo aportado a muitas,
e mui deliciosas terras, correndo todo o Peloponéso,
avistou a famosa Ilha Anticyra,
pela grande colheita do Heleboro, um dos remédios, que a antiguidade aplicava à
loucura, virou de bordo no mesmo instante, temendo aquele empestado clima. Eis aqui
em frente da mesma descobre outra ilha, povoada de frondosos arvoredos, e pelos
seus campos em grande abundância se observava a erva Lotos, de tanta virtude, que uma vez comida, fazia desde logo esquecer
todos os males, e acontecimentos da passada idade, dando um novo realce à estupidez
dos que dela se alimentavam.
Muito se alegrou o
diligente Navegante com a descoberta, sacrificando se ao louvável fim de fazer
ditosos os que tinham nascido para o ser: e por isto destinou transportar à mesma
Ilha os Tolos que encontrasse pelos
diversos países do mundo, para que em pleno repouso pudessem gozar livremente da
sua Tolice, sem estorvo dos que imaginam
ter nascido para censurar, e emendar o género humano. Apenas ancorava em qualquer
Porto, dava parte da sua comissão, e oferecia o seu Barco da Carreira para os
conduzir depois de ter feito um particularizado exame a quem determinava transportar-se,
para que não acontecesse, que algum mais assisado fosse perturbar a paz daquele
delicioso país. Logo que o bom Arrais viu quase povoada a sua ilha com imensas
emigrações, chegou finalmente ao nosso Porto, tendo notícia da grande cópia de
Tolos, que povoa a nossa Pátria; e apenas afixou os seus cartazes, apareceram
tantos, que não podendo conduzi-los todos juntos, intentou distribui-los em diversas
classes , assinando a cada uma delas sua particular Tolice, que reduziu ao número de doze, destinando um mês para
cada viagem.
Os primeiros, que escolheu
para transportar à Ilha dos Tolos,
foram os Tolos com as Modas. Entre estes um mais lampeiro se lhe
apresenta, rogando-lhe, que o admita primeiro no seu Barco, visto que ele julgava
levar a primazia na Tolice a todos
os seus companheiros. Sem embargo desta basófia ser logo aniquilada pelos outros,
que lhe não eram somenos, o nosso discreto Arrais,
amigo da boa ordem, lhe rogou que provasse a sua capacidade, contando os factos
mais memoráveis de sua vida. Ao que o nosso estúpido Peralta satisfez do modo seguinte:
- Eu, Senhor Arrais, disse ele, fui em pequeno criado com muita sujeição; não punha o pé na rua, senão para ir à missa na companhia de minha mãe, andei de opa até à idade de vinte anos; nunca vi mais até aquela idade, que um vintém na minha algibeira; nunca tinha ido a passeios, a ópera, a touros, a partidas, ou assembleias, nunca passei em casa de meus pais de comer faceira de vaca em dias de carne; e feijão com couves, e sarda escalada em dias de peixe; porque meu pai era um forreta: nunca vi cabeleireiro em casa; atava-me minha mãe uma castanhinha no coruto da cabeça, e ficava penteado: conheci uma opa de jardo, que trouxe bons seis Invernos; uns calçõeszinhos de tripe, que meu pai deixou, e se fizeram para o meu corpo, tantas voltas se lhes deram, que duraram mais três anos e meio; meias de linha crua só dois pares estraguei em quinze meses; os sapatos levaram sete vezes solas, e outras tantas tombas. Neste aperto, em que me via, nesta apoquentação, em que me criaram, aturei vinte e quatro anos, a tempo que morreu meu pai, e deixou oitenta mil cruzados, e duas quintas».
In José Daniel Rodrigues da Costa,
Barco da Carreira dos Tolos, Obra Crítica, Moral e Divertida, RB196984,
University of Toronto, Typographia de Elias José Costa Sanches, Lisboa, 1850.
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