(I)recuperável Antero
«[…] quer dizer, com a crença tal como o catolicismo a
encarnava entre nós, desde sempre, e em seguida o projecto, ou a missão
profética de substituir o que ele mesmo sabia insubstituível. Antero não é o único poeta do seu tempo,
ou mais latamente, homem de cultura, para quem as relações com o religioso
tradicional, referi-la como crença é vocabulário de descrente,
quer no plano especulativo quer prático ou afectivo, se tornam motivo de
perplexidade, de interrogação, de inquietude ou mesmo de angustiosa dúvida,
essa mesma Dúvida a que ele conferirá foros de nova recusa da cultura
moderna entre nós. Basta lembrar qualquer itinerário romântico de qualidade, Herculano,
Garrett, basta sobretudo ter presente a trama profunda da ficção
camiliana, para saber até que ponto, no Portugal citadino do Liberalismo, a
antiga espiritualidade de milenária raiz cristã podia oscilar, nos mesmos personagens,
da confiança mais absoluta na Providência
ao cepticismo mais radical. Mas esta oscilação mesma mostrava (pela
última vez?) como a inscrição na esfera religiosa definia não apenas a
atitude subjectiva dos indivíduos, mas o inteiro sistema que conferia sentido
às múltiplas expressões da vida portuguesa, desde a política à estética, à
moral. A própria hipocrisia ou relativa indiferença com que se podia viver no
interior dessa vivência colectiva em nada alterava a sua função de horizonte
regulador da existência. No mundo da Religião,
não abstractamente visada, mas concreta, institucional, se conjugavam todos os
valores, desde os de Pátria aos de Justiça, Ordem, Família.
O Liberalismo purificara
essa mesma Religião da sua materialidade, do seu excesso de
poder temporal, sublimando-a. Sabendo-o ou não, o País estava com século e meio
de atraso, em relação à Europa das Luzes num inconsciente Deísmo. É esse
Deísmo que Antero não só
tornará consciente de si mesmo, mas questionará (e com ele o Liberalismo), submetendo-o a uma crítica,
de início mero eco triunfalista de toda a Crítica Histórica ou simbólica da
Religião (Strauss, Feuerbach, Proudhon, Renan, entre outros) e, em
breve crítica da própria crítica, busca inconclusiva, senão vã, de
uma religião-outra
a da Consciência como expressão imanente
do divino em nós.
Como o palácio encantado da ilusão não lhe revelou o
novo deus da sua aventura espiritual, mau grado o impulso heróico e ético que a
suscitou, a sua geração e o futuro retiveram, sobretudo, a visão pessimista, ou
melhor, trágica, da vida, novidade absoluta entre nós e por essa mesma
excepção, escandalosa ou incompreensível. Pode dizer-se que toda a dialéctica
interna da cultura portuguesa no último século obedece ao intuito de sepultar,
rasurar, o discurso cultural inaceitável implícito no pessimismo anteriano que
não foi mera expressão psicológica
de um homem incapaz de suportar positivamente a realidade do mundo, da
sociedade e da história, mas visão pensada e sofrida da ausência de
sentido da mesma realidade. Em suma, combate senão contra o niilismo anteriano, ao menos contra a
pulsão niilista de que a sua Obra é a estela
negra, fascinadora e repulsiva. De todas as maneiras, para os fascinados
e para os ofuscados por ela, um lugar de obrigada visita e de não menos
obrigatório desafio. Ao menos se esperaria que fosse, mas não é bem o acaso». In
Eduardo Lourenço, Antero ou a Noite Intacta, Gradiva, 2007, ISBN
978-989-616-181-1.
Cortesia de Gradiva/JDACT