domingo, 17 de março de 2013

Antero ou a Noite Intacta. Eduardo Lourenço. «De todas as maneiras, para os fascinados e para os ofuscados por ela, um lugar de obrigada visita e de não menos obrigatório desafio. O Liberalismo “purificara” essa mesma Religião da sua “materialidade”, do seu excesso de poder temporal»

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(I)recuperável Antero
«[…] quer dizer, com a crença tal como o catolicismo a encarnava entre nós, desde sempre, e em seguida o projecto, ou a missão profética de substituir o que ele mesmo sabia insubstituível. Antero não é o único poeta do seu tempo, ou mais latamente, homem de cultura, para quem as relações com o religioso tradicional, referi-la como crença é vocabulário de descrente, quer no plano especulativo quer prático ou afectivo, se tornam motivo de perplexidade, de interrogação, de inquietude ou mesmo de angustiosa dúvida, essa mesma Dúvida a que ele conferirá foros de nova recusa da cultura moderna entre nós. Basta lembrar qualquer itinerário romântico de qualidade, Herculano, Garrett, basta sobretudo ter presente a trama profunda da ficção camiliana, para saber até que ponto, no Portugal citadino do Liberalismo, a antiga espiritualidade de milenária raiz cristã podia oscilar, nos mesmos personagens, da confiança mais absoluta na Providência ao cepticismo mais radical. Mas esta oscilação mesma mostrava (pela última vez?) como a inscrição na esfera religiosa definia não apenas a atitude subjectiva dos indivíduos, mas o inteiro sistema que conferia sentido às múltiplas expressões da vida portuguesa, desde a política à estética, à moral. A própria hipocrisia ou relativa indiferença com que se podia viver no interior dessa vivência colectiva em nada alterava a sua função de horizonte regulador da existência. No mundo da Religião, não abstractamente visada, mas concreta, institucional, se conjugavam todos os valores, desde os de Pátria aos de Justiça, Ordem, Família.
O Liberalismo purificara essa mesma Religião da sua materialidade, do seu excesso de poder temporal, sublimando-a. Sabendo-o ou não, o País estava com século e meio de atraso, em relação à Europa das Luzes num inconsciente Deísmo. É esse Deísmo que Antero não só tornará consciente de si mesmo, mas questionará (e com ele o Liberalismo), submetendo-o a uma crítica, de início mero eco triunfalista de toda a Crítica Histórica ou simbólica da Religião (Strauss, Feuerbach, Proudhon, Renan, entre outros) e, em breve crítica da própria crítica, busca inconclusiva, senão vã, de uma religião-outra a da Consciência como expressão imanente do divino em nós.
Como o palácio encantado da ilusão não lhe revelou o novo deus da sua aventura espiritual, mau grado o impulso heróico e ético que a suscitou, a sua geração e o futuro retiveram, sobretudo, a visão pessimista, ou melhor, trágica, da vida, novidade absoluta entre nós e por essa mesma excepção, escandalosa ou incompreensível. Pode dizer-se que toda a dialéctica interna da cultura portuguesa no último século obedece ao intuito de sepultar, rasurar, o discurso cultural inaceitável implícito no pessimismo anteriano que não foi mera expressão psicológica de um homem incapaz de suportar positivamente a realidade do mundo, da sociedade e da história, mas visão pensada e sofrida da ausência de sentido da mesma realidade. Em suma, combate senão contra o niilismo anteriano, ao menos contra a pulsão niilista de que a sua Obra é a estela negra, fascinadora e repulsiva. De todas as maneiras, para os fascinados e para os ofuscados por ela, um lugar de obrigada visita e de não menos obrigatório desafio. Ao menos se esperaria que fosse, mas não é bem o acaso». In Eduardo Lourenço, Antero ou a Noite Intacta, Gradiva, 2007, ISBN 978-989-616-181-1.

Cortesia de Gradiva/JDACT