«No que me diz respeito, mais importantes ainda do que para o espírito
o encontro de certas disposições de coisas, me parecem ser as disposições de um
espírito perante certas coisas; e acontece que estas duas espécies de
disposições regem sozinhas todas as formas da sensibilidade. É assim que me
descubro com Huysmans, o Huysmans de En
Rade e de Là-bas,
maneiras tão comuns de apreciar tudo o que se propõe, de escolher com a
parcialidade do desespero entre o que existe, que se, com grande pesar meu, só pude
conhecê-lo através da sua obra, nem por isso ele deixa de ser porventura o
menos estranho dos meus amigos. Mas na verdade não terá ele, mais do que
qualquer outro, levado ao seu termo extremo essa discriminação necessária, vital,
entre o anel, de aparência tão frágil, que nos pode socorrer em todas as
circunstâncias e o aparelho vertiginoso das forças que se conjuram para nos
arrastar ao naufrágio?
Huysmans deu-me notícia desse tédio vibrante que lhe causaram quase
todos os espectáculos; antes dele, ninguém soube, já não digo mostrar-me esse
grande despertar do maquinal sobre o terreno devastado das possibilidades conscientes,
mas pelo menos convencer-me humanamente da sua absoluta fatalidade e de quanto
seria inútil ir aí procurar escapatórias para mim próprio. Como lhe estou
agradecido por me ter posto ao corrente, sem cuidar do efeito a produzir,
acerca de tudo o que lhe diz respeito, daquilo que o ocupa, das suas horas mais
amargas e das outras, por não cantar absurdamente, como tantos
poetas, essa amargura, mas enumerar com paciência, na sombra, as mínimas razões
de ser, absolutamente involuntárias, que ainda consegue descobrir, e de ser,
sem saber, bem para quem, aquele que fala! Ele é, também ele, o objecto de uma
dessas solicitações perpétuas que parecem vir de fora e nos imobilizam por
alguns instantes diante de certas ordenações fortuitas, de carácter mais ou
menos novo, das quais, se nos interrogássemos porfiadamente, é provável que
encontrássemos em nós o segredo. Distingo-o, será preciso dizê-lo?, de todos os
empíricos do romance que pretendem pôr em cena personagens diferentes de si
próprios e os arrumam física, moralmente, à sua maneira, só eles sabem porquê
(nós preferimos não saber). De uma personagem real, de que julgam ter algum
conhecimento, fazem duas personagens da sua história; de duas, sem qualquer
embaraço, fazem uma. E ainda nos damos ao trabalho de discutir! Alguém sugeria
a um autor meu conhecido, a propósito de uma obra sua que ia aparecer e cuja
heroína podia ser facilmente reconhecida, que lhe mudasse ainda, pelo menos, a cor
do cabelo. Loura, vá, lá, parece que teve sorte: a mulher que traiu não era
morena. Não acho isto infantil acho-o escandaloso. Persisto em exigir os nomes,
em só me interessar pelos livros rasgadamente abertos, como portas que não
precisam de nenhuma chave. Estão felizmente contados os dias da literatura
psicológica de efabulação romanesca, e certifico-me de que foi Huysmans a
aplicar-lhe o golpe derradeiro. Por mim, continuarei a habitar a minha casa de
vidro, onde se pode ver a toda a hora quem vem visitar-me, onde tudo o que está
suspenso dos tectos e das paredes perdura como por encanto, onde repouso à
noite entre os lençóis de vidro de uma cama de vidro, onde quem sou me aparecerá,
mais tarde ou mais cedo, gravado a diamante». In André Breton, Nadja, Editions
Gallimard, 1964, Editorial Estampa, tradução de Ernesto Sampaio, Lisboa, 1971.
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