(Continuação)
Uma Revolução em Lisboa
Lisboa, 7 de Dezembro de 1383
«A seguir, mandou a Fernão de Álvares e Lourenço Martins que fossem
fechar as portas do palácio para que ninguém entrasse, e dissessem ao seu pajem
que corresse pelas bradando que queriam matar o Mestre. Era o sinal
combinado com Álvaro Pais para o levantamento. Entretanto a Rainha, que tinha
ouvido o ruído daquela cena, mandou ver o que se passava; ao ser informada do
sucedido, rompeu em lamentações pela morte do seu amado conde, mas, cheia de
temor, não ousava condenar os matadores. Ordenou apenas que preguntassem ao
Mestre se ela ia morrer também. - Dizei lá à Rainha, minha Senhora, - respondeu
ele - que esteja sossegada em sua câmara, porque não tem que temer. Eu vim unicamente
para fazer isto a este homem, que bem mo havia merecido.
No Paço espalhou-se um pavor tal que João Gonçalves e os outros
escrivães largaram de súbito o livro dos vassalos e puseram-se a fugir, cada um
por sua banda. Os outros criados da Rainha não procuraram as portas, mas as
janelas, para se verem fora dali. Alguns saltaram para os telhados. Perante
esta debandada, Lourenço Martins foi-se à cozinha e de lá trouxe uma soma de
prata que apresentou ao Mestre: - Já aqui tendes, Senhor, para a despesa de hoje!
Mas ele retorquiu-lhe asperamente que fosse repor a prata donde a tirara, pois
não fora para isso que voltara a Lisboa.
Os fidalgos partidários do conde não tornaram a aparecer, porque,
quando voltavam para o Paço, foram informados do que se passara, e, perante os magotes
de gente que já corriam pelas ruas, recearam ser chacinados e trataram de se
pôr a salvo. A partida estava ganha...
O pajem percorria a cidade aos gritos de:
- Matam o Mestre! Matam o Mestre! Acorrei que o matam!
Tudo saía à rua a ver o que sucedera e, começando a falar uns com os
outros, exaltavam-se e corriam a tomar armas, cada um como podia. Era a revolução.
Então, Álvaro Pais, que já estava a postos e armado, com sua coifa na
cabeça, montou a cavalo, o que há muitos anos não fazia, e conduziu aquele povo
miúdo, dizendo:
- Acudamos ao Mestre, amigos, que e filho de El-Rei Pedro I!
Chegaram em frente do Paço e a gente que o seguia era já tanta que nem
cabia nas ruas. A indignação cada vez maior porque todo o povo estava com o
Mestre e contra a Rainha. Ao verem as portas cerradas quiseram arrombá-las à
pedrada e houve muitos que juntavam lenha e pediam lume para pôr fogo ao
palácio e queimarem o trèdor e a aleivosa. Outros queriam
escadas para subir acima e ver onde estava o Mestre. O barulho era ensurdecedor
e já ninguém se entendia. - O Mestre! O
Mestre!
Das janelas bradavam que o Mestre era vivo e João Fernandes morto; mas
ninguém queria crer que assim fosse.
- Pois se ele é vivo, mostrai-no-lo!
O alvoroço tornou-se tamanho que o Mestre João resolveu aparecer a uma
grande janela que dá para a rua. Foi então alvo de grandes aclamações. Muitos
choravam de o ver vivo. - Ah, porque matastes o traidor do conde e não
matastes também logo a aleivosa! oh, aleivosa! Oh, aleivosa! E matavam-na se conseguissem ir lá acima.
O Mestre, para apaziguar aquela gente, é que desceu à rua e, montando a
cavalo, dirigiu-se, acompanhado de todos os seus, para os paços do almirante, ao
Rossio. Coisa maravilhosa era de ver o povoléu que o seguia, aos brados:
- Que nos mandais fazer, Senhor? Que
quereis que façamos? Ao que ele respondia que por enquanto de mais nada havia mister; e, às janelas,
as donas da cidade, a saudarem-no em altas vozes:
- - Mantenha-vos Deus, Senhor! Bento seja Deus, que vos guardou de tamanha traição!
Era já quase alçarem-no por Rei.
In Amador Patrício, Grandes Reportagens de Outros Tempos, ilustração de
Martins Barata, prefácio de Caetano Beirão, Empreza Nacional de Publicidade,
Minerva, 1938.
continua
Cortesia de Minerva/JDACT