A Misteriosa Protectora
«Era pequena e linda aquela aldeia. As casas a branquejarem muito pela
encosta do monte, muito à vontade se avistavam de longe e dava gosto vê-las cá
de baixo, das terras planas, todas cobertas de trigais e de flores. Abençoado
torrão chamavam os velhos àquela terra que dava pão e linho e era consolo dos
olhos nos dias carinhosos da Primavera, com o céu todo azul e o sol como se
fosse de oiro. Dizia-se que era aquele o mais belo pedaço dos campos de
Coimbra, por onde correm cantando as águas do Mondego, que passa por ser o mais
formoso rio de quantos nascem em terras de Portugal. As águas dos rios também
têm os seus cantares como as águas das fontes. O caso está em as saber ouvir e
entender.
E então, as árvores? Que lindas árvores em volta da aldeia e por
aqueles campos fora! Umas, as mais pequeninas, todas em flor mal chegava o mês
de Abril e pelos dias calmosos de Julho já a vergarem ao peso dos frutos, num
encanto de cores; outras mais altas, mais corpulentas, algumas delas já
velhinhas, a darem sombra e frescura aos encalmados, agasalho e carinho, como
de mães, aos ninhos do passaredo, que tinha vindo com a Primavera, como se
fosse filho dessa linda estação e irmão das flores. Nas amorosas madrugadas de
Abril a Julho como eles todos cantavam a sua alvorada, cada um a seu modo, antes
de irem para a labutação da vida, pois que também os pássaros têm a sua obrigação,
a sua tarefa, o seu encargo!
Os que têm filhos pequenitos, mais que os outros e sempre no receio, e
na amargura de que lhos roubem e lhes desfaçam os ninhos, as suas casas pequeninas,
que eles próprios fizeram, Deus sabe com que trabalho e canseiras e com que
risco da vida! Mas os melhores cantores, toda a gente o dizia, eram os que tinham
pousada nos choupos e salgueiros das margens do Mondego e mais aqueles que
viviam em dois grandes freixos antigos de um largozito à entrada da aldeia,
muito avizinhados da casa da Escola. Era um regalo ouvi-los. Cantavam docemente
a suave alegria de viver e cada madrugada era para eles uma nova aleluia.
Na aldeia a casa maior era a da escola e o mais estimado dos seus moradores,
a par do pároco, era o professor primário. Tinha ido para lá, havia três anos, para
substituir o antigo mestre de primeiras letras, um velhito mirrado, que passara
quarenta anos a ensinar rapazes e afinal se aposentara e por ali se deixou ficar
à espera da morte como ele próprio costumava dizer. Mas de onde viera e quem
vinha a ser aquele professor que a gente da aldeia e dos arredores tinha na
mais subida estima e ouvia com enternecida devoção e profundo respeito, como se
ele fosse o mais benfazejo dos homens, a maior e mais rica pessoa do concelho?
Ninguém o sabia naqueles sítios e ninguém também se dera ao cuidado de
o indagar. Homem novo ainda, todos viam que era. Trinta anos, se tantos, mas
uns trinta anos entristecidos por qualquer dor de alma, dessas que ficam para
sempre e a ninguém se dizem. Vivia com a mãe, uma velhinha de cabelos muito brancos
e olhos pisados, como de quem muito houvesse chorado e sofrido, e de tal modo
desmaiadita de rosto que parecia uma santa de marfim. E era tão amorável e
carinhosa que os mais novitos rapazes da escola tanto lhe queriam como se fosse
mãe de todos eles.
Pouco importava, porém, saber donde viera o professor João Alberto. O que todos viam e sabiam era que, ao fim de três meses, a escola ,era outra, tinha muito mais alunos e até a própria casa nem sequer parecia a mesma! Da sua tristeza, por alguma dor de alma que não findava, todos tinham dó mas ninguém se aventurava a indagar qual tamanha má fortuna haveria sido a sua para assim lhe pôr nos olhos e nas faces tal lutuosa sombra de pesares». In Campos Júnior, Pedras Que Falam, romance histórico, edição Romano Torres, Lisboa, 1953.
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